No curto espaço de dois anos, foram lançados no Rio de
Janeiro dois livros que, usando um artifício histórico parecido, tentaram
analisar o modo como no começo do século 20 o samba deixou de ser visto com
preconceito e hostilidade pelas elites cariocas e passou a ser aceito como uma
manifestação legítima da cultura popular, e mesmo como uma espécie de símbolo
do povo brasileiro.
Em 1995, saiu O mistério do samba de Hermano Vianna, em
que ele faz essa análise da aproximação entre os dois Rios de Janeiros a partir
de um encontro famoso entre Gilberto Freyre (representante da cultura letrada,
acadêmica, elitista) e Pixinguinha (representante da música popular mas com conhecimento
suficiente para se ombrear com um erudito). Em 1996, André Gardel publicou o
trabalho com que ganhou o Prêmio Carioca de Monografia: O encontro entre
Bandeira e Sinhô, em que trata das crônicas de Manuel Bandeira em que este se
refere ao sambista Sinhô, e os numerosos pontos de convergência biográfica,
boêmia e poética entre os dois.
O livro de Hermano Vianna é mais conhecido, mas o de André
Gardel faz também um retrato fascinante do Rio de Janeiro nas primeiras décadas
do século 20. Naquele tempo, o samba horrorizava tanto quanto o baile funk
horroriza hoje. Misturar-se com ele era sinal de grave contaminação plebéia.
Bandeira se misturava; não sozinho, mas acompanhado de amigos como Jaime
Ovalle, Villa-Lobos, Catulo da Paixão Cearense, Di Cavalcanti, todos eles
mergulhados na boemia insone das madrugadas, das rodas de samba, dos cafés, dos
bordéis, dos bares da Lapa.
Gardel faz uma aproximação cuidadosa e veraz da poética de
Bandeira, maculada propositalmente pela “fala errada do povo”, pela
musicalidade das ruas que entra pelas janelas abertas à noite; e do modo como
Sinhô, que espertamento tornou-se o primeiro a gravar um samba, sabia estar
presente na cidade inteira ao mesmo tempo, cantando, compondo, bebendo,
conversando, divulgando seus trabalhos, tornando-se conhecido, angariando
encomendas de sambas ou de marchinhas de carnaval.