(cartum de Matt Diffee)
Que mistério tem o futebol? (Cada um ponha nesse nicho o
esporte de sua fatalidade.) Que mistério ele tem para alterar a tal ponto nossa
pulsação cardíaca, e digo mais, nosso controle sobre a nossa própria
mente? Por causa de futebol vi cidadãos
pacíficos tresloucados, homens honestos fazerem um-em-pé-e-quatro-rodando num
instantezinho de distração de alguém (“sofri um pênalte!”), amores se
desfazerem, famílias se desmancharem, vizinhanças virarem praças de guerra
conflagradas.
No futebol o atleta faz uma amputação de si próprio,
proibindo-se de usar suas extensões mais prestas e mais acostumadas ao uso:
braços, mãos, dedos. Correr sem-braços
atrás de uma bola que quica e é chutada, podendo tocar nela só com os pés e a
cabeça, parece tortura inventada num campo de concentração grotesco. Se a beleza da imagem do cinema decorre da
limitações do retângulo do “frame”, a beleza do balé futebolístico vem desses
braços e mãos que, não podendo colidir materialmente com a bola, viram
ectoplasma, asas invisíveis, viram lemes, hélices ou remos de que se vale o
atleta em cada um dos voos curtíssimos de que é capaz.
Viram coice de cavalo, rabanada de baleia. Talvez venha dessa
amputação a impaciência das cotoveladas no adversário que assedia, uma reação
que o nosso Leonardo celebrizou na Copa de 1994 e que nesta de agora eu já vi
duzentas vezes. O braço vive nervoso, não pode fazer nada, a adrenalina é
grande e o calor é um inferno, esse braço precisa descarregar em alguma coisa.
O esporte bretão é um xadrez e um balé. O balé da cortada que faz o adversário
passar deslizando e batido, o balé do voo de tantos metros para dar só o toque
de cabeça necessário para o gol, o banho de cuia, o drible da vaca, o elástico,
a pedalada, o gol de letra, o gol chorado, o gol do meio da rua. O balé é o
jogo dos jogadores, é o duelo entre a técnica de cada um. O xadrez é o jogo dos
técnicos, o duelo entre táticas.