domingo, 24 de abril de 2011

2539) Capitalismo, uma história de amor (24.4.2011)



Este documentário de 2009, dirigido pelo mesmo Michael Moore de Tiros em Columbine e Fahrenheit 9/11, é um prolongamento de tudo que foi visto nos filmes anteriores do cineasta, e que umas pessoas gostam e outras detestam. (Eu estou entre os que gostam.) Moore não faz cinema, no sentido “artístico” do termo. Faz o que se chama de agit-prop, agitação e propaganda: o registro parcial, subjetivo e militante de uma situação política. Não se espere dele aqueles enquadramentos amorosamente estudados, nem aquelas imagens que fazem um fotógrafo marejar os olhos de felicidade e inveja. A câmara é uma câmara de telejornal e morreu aí. O roteiro também inexiste; Moore deve trabalhar apenas com uma lista das pessoas a serem entrevistadas e seus endereços. E seu objetivo é muito claro: provar que os EUA estão sendo destruídos por um capitalismo selvagem, predador, sem ética, sem fiscalização e sem freios.

As partes mais criativas ocorrem na montagem, quando ele, com mais tempo para pensar e ter idéias, solta os cachorros do bom e do mau humor. Porque, ao contrário da grande maioria dos diretores de filmes agit-prop, Moore é um cara bem humorado, frequentemente engraçado na frente e atrás das câmaras. Sua arma contra os defeitos do seu país é a “ira santa” mas também a galhofa e o ridículo. Neste filme, é impagável a sequência inicial, em que um texto lamenta a decadência e queda de um grande império, e as imagens se alternam entre a Roma dos Césares (canastronamente recriada por Hollywood) e os EUA de hoje.

O filme dá uma boa sacudida na política norte-americana, porque acompanha a crise econômica de 2008-9 e termina com a eleição de Barack Obama para presidente (mas não de um modo tão otimista quanto isto pode levar a crer). E revela coisas estarrecedoras. Eu não sabia que é uma prática de grandes empresas norte-americanas fazer seguro de vida para seus funcionários, e faturar com a morte deles. Moore mostra duas famílias que perderam pessoas, encheram-se de dívidas contraídas com hospital, médicos, etc., enquanto por baixo do pano a WalMart faturava centenas de milhares de dólares com o seguro de vida do funcionário. É uma prática habitual: Moore mostra que as empresas chamam isso de “Dead Peasants”, “camponeses mortos” (procurem esse termo no Google).

Este filme recuperou uma imagem rara (que mesmo nos EUA ninguém tinha visto): F. D. Roosevelt, meses antes de morrer, propondo uma nova Lei para estabelecer que todo norte-americano teria direito a emprego, moradia, escola, etc. Estes poucos minutos de filme estavam perdidos desde os anos 1940 e Moore os encontrou. (Não adiantou muito: a lei não foi promulgada.) Há um momento de humor cruel quando ele pede aos especialistas de Wall Street para explicar o que são “derivativos”, um dos papéis mais lucrativos no cassino financeiro. Todos gaguejam, todos se atrapalham, nenhum consegue. Sugiro essa pauta aos coleguinhas da área econômica.

2538) Idéias de virar a cabeça (23.4.2011)





(ilustração: Artem Ogurtsov)

Imagine o leitor um mundo muito diferente do nosso, um mundo sem Natureza, sem ar livre, sem espaços abertos. Um mundo onde todo mundo vive trancado em apartamentos que são como caixas de onde nunca se pode sair. Um mundo irreal, claro (nenhum mundo realista se sustentaria dessa forma – de onde vem a comida, por exemplo?). Mas um mundo que, para efeitos de ficção pode ser imaginado por um autor e visualizado por um leitor. Só que neste caso há uma diferença essencial. Imagine que uma família de tamanho equivalente ao nosso vive ali, num espaço cúbico muito parecido com um palco de teatro. Nesse espaço cúbico eles comem, dormem, etc. O espaço tem paredes, chão, teto, tudo normal, com duas exceções.

A primeira exceção é que a parede dos fundos é dividida em cem pequenos cubículos, dispostos em dez fileiras horizontais e dez colunas verticais. Cada um desses cubículos é um espaço idêntico (só que em tamanho muitíssimo menor) ao espaço onde vive a família. E em cada um deles vive uma familiazinha diferente. São familiazinhas minúsculas, liliputianas, que estão ali tocando seu dia a dia, enquanto que na sala grande a “nossa” família, proporcionalmente gigantesca em relação a elas, acompanha na parede dos fundos de seu espaço esses 100 pequeninos palcos onde acontecem cem historiazinhas diferentes.

E a segunda exceção diz respeito à parede oposta. Porque quando nossa família, de tamanho normal, se vira para o lado oposto à parede dos fundos, quando ela se vira para o que seria em termos teatrais a “quarta parede”, a parede invisível que separa palco e platéia, ela vê um gigantesco espaço cúbico onde mora uma família de gigantes, num espaço parecidíssimo com o dela própria. E, se conseguisse espiar de lado, essa família de tamanho normal veria que sua casa não passa de um entre cem cubículos de tamanho normal, lado a lado, formando a parede dos fundos da casa do gigante! (O qual por sua vez, etc. etc.)

Esse universo foi imaginado por Marc Laidlaw, que já teve pelo menos um livro (com outra temática) traduzido no Brasil (A Usina Nuclear de Papai). A idéia de Laidlaw tem a mesma ousadia dos universos de paradoxos espaciais construídos por M. C. Escher em suas gravuras cheia de jogos geométricos e de perspectiva. A ficção científica usa idéias assim, capazes de virar a nossa cabeça no esforço de entendê-las. 

Acha difícil visualizar esse mundo que descrevi? Eu também achei quando, sem aviso nenhum, comecei a ler um desses contos e tive de deduzir por conta própria o formato do mundo surrealista em que aquele pessoal vivia. (O conto se chamava “Middleman’s Rent”, na revista Fantasy & Science Fiction). A vantagem é que depois que a nossa mente assimila conceitos desse tipo, nunca mais fica pequena de novo. A ficção científica é uma literatura de aventuras, sim, mas de aventuras mentais, onde a nossa mente se arrisca em espaços e conceitos nunca antes imaginados.