Existe um tipo especial de tragédia que nos faz sofrer ainda mais vividamente, seja uma tragédia da ficção ou uma da vida real. É aquela tragédia que só aconteceu por um triz, que teve tudo (ou pelo menos uma grande possibilidade) de ser evitada, mas que por um pequeno detalhe acabou acontecendo.
Diferentemente daquelas tragédias
gregas em que o Universo e o Olimpo em peso parecem conspirar para a
infelicidade de um personagem, estas outras tragédias doem ainda mais porque se
devem a uma besteira, um detalhe, àquilo que o jagunço Riobaldo, de Guimarães
Rosa, chamava “o nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos”.
O telefone tocou com a mensagem salvadora, mas não havia
ninguém para atender. O socorro chegou, mas não deu mais tempo. Um parafuso
qualquer se soltou, e o terrível acidente aconteceu. Uma frase foi ouvida
casualmente, e daí em diante vidas foram desgraçadas. A pessoa perdeu um voo
por alguns minutos, e foi reencaminhada para o voo fatal. São tantas as
possibilidades.
Uma destas, que lembro de vez em quando, é a que chamo de O
Desespero Precoce. É quando em função de um problema grave ou de uma catástrofe
o personagem se deixa abater por ela, sem saber que ela poderia ser cancelada
se ele pelo menos tivesse tido, diante desse problema inicial, um pouco mais de
paciência, de serenidade, de cabeça fria.
Um exemplo clássico é o do Romeu e Julieta de Shakespeare. Frei Lourenço, querendo ajudar na fuga
dos jovens, sugere a Julieta tomar um narcótico e ser dada como morta, para
despertar depois de 24 horas. Fazem isso. Julieta é pranteada, e colocada no
sepulcro da família, enquanto Frei Lourenço manda alguém avisar Romeu do plano.
O aviso não chega a Romeu: chega a notícia (de conhecimento geral) de que
Julieta morreu. Quando ele vai ao sepulcro e a vê em estado meio cataléptico,
ele se desespera e se mata.
Esse é o elemento trágico: o Desespero Precoce. Se Romeu
tivesse ficado ali se lamentando durante mais umas horinhas, a namorada iria
despertar, lépida e fagueira, e os dois seriam felizes para sempre. Mas Romeu
reage apressadamente ao primeiro sinal negativo do Destino, e se mata. Fico
imaginando um milhão de platéias ansiosas erguendo milhões de braços para o
palco e gritando: “Não se mate! Ela está viva!”. O Destino é um dramaturgo
cruel.
Há um versinho atribuído a Piet Hein (1905-1996) que diz (o
original é em dinamarquês; achei uma
versão em inglês na web):
Losing one glove is certainly
painful,
but nothing compared to the pain
of losing one, throwing away the other,
and finding the first one again.
Conheço esta quadra desde pequeno, sob esta forma (muito
bem traduzida, aliás):
Perder
uma luva é uma dor profunda,
mas
não se compara à dor pungente,
de
perder essa luva, jogar fora a segunda,
e
encontrar a primeira novamente.
É um mito persistente em nossa memória cultural.
Reza outra lenda que quando Teseu partiu para enfrentar o
Minotauro no Labirinto de Creta, seu navio usava velas negras; ele prometeu ao
seu pai, o rei Egeu, que se voltasse vitorioso as trocaria por velas brancas.
Teseu derrotou o Minotauro, mas na comemoração ele e os marinheiros devem ter
tomado tanta cerveja que esqueceram de trocar as velas. O rei, ao avistar de
longe o navio se aproximando com velas pretas, teve o famoso acesso de
Desespero Precoce e jogou-se no mar, morrendo afogado. (Ariano Suassuna usou
uma variante deste episódio em seu romance Fernando
e Isaura, de 1956).
Penso nessas coisas sempre que leio alguma coisa de ou
sobre Walter Benjamin (1892-1940), um filósofo que conheço pouco mas que
escreveu textos memoráveis sobre literatura. Benjamin era judeu, e durante a II
Guerra tentou fugir da França invadida, para escapar à perseguição nazista. Chegou
à Catalunha, de onde esperava seguir para Portugal e dali para os EUA.
Benjamin foi detido na fronteira com um grupo de fugitivos,
e ali recebeu a péssima notícia de que o governo espanhol iria repatriar todos eles
de volta para a França, para serem entregues aos nazistas. Abatido, exausto,
ele se suicidou na noite de 25 de setembro. No dia seguinte, no meio do tumulto
da guerra, o grupo de que fazia parte teve seu acesso liberado, e chegou a
Lisboa no dia 30.
Romeu só faz falta a Julieta, um rei grego a mais não faz
falta a ninguém, mas perder um autor como Walter Benjamin aos 48 anos de idade
é algo pra fazer a gente sentir na carne a tragédia do Desespero Precoce. Dá
vontade de morrer também.
Existe remédio contra essa síndrome? De que maneira reagir
ao primeiro sinal de que não há mais esperanças, de que está tudo acabado? O
único contraexemplo que me ocorre é o de Anthony Burgess, o autor de Laranja Mecânica.
O episódio é meio controvertido, porque ele costumava
fantasiar muito a própria biografia. Mas consta que Burgess trabalhava no
Serviço Colonial inglês na Malásia, e em 1959 foi dispensado, ao receber um
diagnóstico de câncer terminal. O escritor ficou apavorado, entre outras coisas
pela perspectiva de deixar a família passando necessidades. E danou-se a
trabalhar.
Reza a lenda que Burgess escreveu cinco romances ao longo
do ano de 1960, e em 1964 tinha concluído um total de onze livros, entre eles o
famoso A Clockwork Orange, e enquanto
isso nada de câncer. Ele podia ter pulado de um prédio, não é mesmo? Mas ao
invés de ceder ao Desespero Precoce o nosso amigo sentou no teclado e mandou
brasa. Só foi morrer, coitado, em 1993, mais de trinta anos depois da sentença
de morte proferida pela medicina.
Seu caso não é o único, pois grande parte da obra do
chileno Roberto Bolaño, o autor de Os
Detetives Selvagens e de 2666,
foi escrita após o diagnóstico de uma doença grave, da qual acabou morrendo
mesmo, mas bem depois do previsto, e não sem produzir uma quantidade enorme de
livros para garantir o leite das crianças.
Não sei bem como batizar esse impulso; talvez a gente possa
chamá-lo de Teimosia Esperançosa, ou a Persistência Obstinada. Não salva a vida
de ninguém, mas dá, para um jogo que parecia perdido, a chance de ir para uma
prorrogação. E numa prorrogação tudo pode acontecer, inclusive o jogo não
acabar.