(ideograma do Tao)
A TV-Globo mandou ao ar recentemente, no programa Linha Direta, uma reportagem sobre o naufrágio do “Bateau Mouche” no reveion do Rio de Janeiro, quando morreram 55 pessoas. Uma reconstituição muito bem feita, mostrando um episódio arrepiante da História do Capitalismo Selvagem. Uma noite de coragens e de egoísmos, em que algumas pessoas arriscaram a vida para salvar os náufragos, e outras viram tudo mas levaram seus iates para longe, para não perder a queima-dos-fogos. No meio das crises nervosas e dos desabafos pós-salvamento, uma pessoa resgatada dizia: “Foi Deus, foi Deus quem me salvou, eu sentia o tempo inteiro que ele estava junto de mim...” Não discuto o conceito, e entendo até demais a emoção, mas a pergunta que os incrédulos fazem nesta hora é: E por que Deus não salvou os outros?
Uma das piores contradições de quem se esforça para acreditar em Deus é a idéia de um Deus bom, compassivo, misericordioso, mas ao mesmo tempo capaz de permitir que coisas assim aconteçam. Uma das justificativas para a existência de guerras, crimes, barbaridades, é o livre-arbítrio. Deus nos deu a liberdade de escolher, de errar, de pecar, de pintar o sete e desenhar o oito... e de arcar com as conseqüências, que muitas vezes envolvem o fogo do Inferno. Tudo bem – mas e as crianças queimadas no supermercado de Assunção, e os meninos que perdem os braços no bombardeio de Bagdá, e as crianças indefesas seviciadas por pedófilos ou por psicopatas? O mal que lhes acontece não provém de uma escolha sua, do exercício de sua liberdade.
Sei que a questão é complexa, e antiga; aliás, na Biblioteca do Vaticano deve existir uma dúzia de livros que responde isto tudo, tintim por tintim. Mas não há como negar que realidades dessa natureza são um forte argumento em favor daquilo que eu chamo de “religiões impessoais”, onde o Universo não é explicado em termos de uma Divindade dotada de emoções humanas (Deus é bom, Deus é carinhoso, Deus se aborrece com isto, Deus se enfurece com aquilo...), mas em termos de processos. O Taoísmo é um pouco assim, conforme vemos em livros como o I-Ching ou o Tao Te King – O Livro do Caminho Perfeito. O universo é um conjunto de processos que envolvem nascimento e morte, expansão e contração, teses e antíteses. É uma dinâmica abstrata, e cabe a nós ter discernimento suficiente para perceber que tipo de processo está ocorrendo em nosso país, em nosso grupo social ou em nossa vida, e nos comportar de acordo.
As religiões impessoais não defendem a existência de um Deus com emoções humanas e valores humanos, mas um Deus responsável pelo funcionamento do Universo como um todo, sem se preocupar com nossos destinos individuais, que são assunto nosso. Mas somos humanos, demasiado humanos, e só nos sentimos à vontade quando pensamos num Deus feito à imagem dos nossos pais, um Deus que nos premia e castiga, que nos embala no colo e que nos expulsa de casa quando fazemos uma besteira.