Um dos mitos mais persistentes com relação a essa nobre geringonça de execução penal é que ela foi inventada por um tal “Dr. Guillotin”, na época da Revolução Francesa, e que o tal teria sido morto através da própria máquina que criou.
Vi algumas discussões a respeito e preferi tirar as dúvidas lendo o educativo A History of the Guillotine (London: John Calder, 1958) de Alister Kershaw, com boas ilustrações de época e copiosas notas bibliográficas. Estas últimas me deixam pensando na quantidade de documentos de 200 anos atrás que existe pelo mundo afora, principalmente em assuntos que envolvem a burocracia governamental européia, onde tudo fica registrado.
Primeiro os fatos básicos: o dr. Joseph-Ignace Guillotin não inventou esse instrumento, que aliás já existia em diferentes versões em outros países. Ele era apenas um deputado que desejava atenuar a brutalidade das decapitações em praça pública. Um contemporâneo o descreve desdenhosamente como “um político insignificante, mas incômodo, que costumava meter o bedelho em todos os assuntos”.
E não foi ele quem morreu na guilhotina, e sim um homônimo. Ele morreu em casa, de morte natural, em 1814.
Outro mito é o de que a guilhotina serviu para a França se livrar dos seus aristocratas. Não foi tão simples. Durante a época do Terror, bastava muitas vezes a denúncia de um vizinho para que uma pessoa fosse jogada na masmorra sem julgamento e depois fosse levada à fila da guilhotina. Diz Kershaw: “Das 2.567 mulheres executadas pelo entusiasmo libertário, 1.447 pertenciam às classes mais baixas.” (p. 6)
A guilhotina foi um capítulo high-tech na história brutal da crueldade humana. No reinado de Luís XVI havia uma hierarquia de castigos para diferentes crimes: a fogueira era o castigo dos magos, feiticeiros e heréticos; o suplício da roda ficava para os assassinos e os salteadores de estrada; esquartejamento era para os crimes de lesa-majestade; e para outros 115 delitos punidos com a pena capital, a gente do povo ia para a forca, e os nobres eram decapitados com um machado, ou com aquele espadagão que se empunha com as duas mãos.
Um jornal francês de 1792 observava:
[Este novo instrumento, a guilhotina] não mancha de sangue as mãos de quem quer que seja, ao executar um semelhante, e a velocidade com que funciona está mais de acordo com o espírito da lei, que muitas vezes é severa mas nunca deve ser cruel.” (pág. 65, trad. BT)
Antes da guilhotina, as execuções com espada eram cheias de problemas técnicos. Kershaw refere a “épica decapitação” do Conde de Chalais, em 1626, cuja cabeça só foi separada do corpo após vinte e nove golpes de espada, e ainda vivia mesmo após o vigésimo. Ele se apressa a registrar, contudo, que o autor da façanha não foi um carrasco oficial, “mas apenas um miserável amador que salvou o próprio pescoço ao consentir cortar o do Conde.” (pág. 65)
Um dos mais célebres carrascos franceses, Charles-Henri Sanson, “o Senhor das Altas Obras”, afirma numa carta às autoridades:
“Depois de cada execução, a espada fica inútil para outra; é absolutamente essencial que a espada, que é sujeita a perder estilhaços, seja afiada novamente, caso haja vários condenados a serem executados na mesma sessão; é necessário portanto haver um número suficiente de espadas prontas. Deve-se observar também que é frequente uma espada se quebrar no ato da execução.” (pag. 30-31)
Tinha ele motivos para se preocupar. Em 1537, um carrasco chamado Florant teve uma performance tão incompetente, ao tentar uma execução, que foi perseguido pela multidão, escondeu-se numa casa e ali foi queimado vivo.
Sanson foi uma figura histórica à altura da época em que viveu. Kershaw comenta:
O Rei e a Rainha e a amante do Rei; Robespierre e Danton; aristocratas e gente do povo; santos e criminosos; Sanson decapitou a todos mantendo, em geral, uma esplêndida imparcialidade, tal como coube a Desfourneaux, em nossa época, fazer o mesmo sem problemas – antes, durante e depois da ocupação nazista.” (p. 100)
Entre
os muitos precursores do instrumento, o escocês “Halifax Gibbet” era um
protótipo já com as características básicas (estrutura vertical, lâmina
descendo através de ranhuras, condenado deitado com o pescoço preso a uma peça
de madeira), em uso desde o reinado de Edward III, no século 14. Um historiador
registra o hábito curioso: “todos os
homens presentes deviam tocar na corda [que acionava o mecanismo] ou estender o
braço em sua direção, o mais que pudessem, confirmando seu desejo de que a
justiça fosse assim administrada” (pág. 22). Isso foi muito antes do Dr. Guillotin: Walter Scott, em sua History of Scotland (1830) descreve uma
dessas execuções, ocorrida no ano de 1581.
Não devemos esquecer que o século 18, ironicamente chamado O Século da Razão, praticou com altivez a tirania do interesse científico sobre o sentimento humano. As primeiras provas da guilhotina definitiva se deram nos arredores de Paris, em Bicêtre, uma mistura de hospital, manicômio e asilo para velhos, onde a mortandade natural era alta. Cadáveres não faltaram para os primeiros testes do protótipo cuja fabricação (por Tobias Schmidt) foi supervisionada pelo Dr. Antoine Louis (1738-1814), secretário da Academia Cirúrgica e, ele sim, mais responsável pelo instrumento do que o pobre Guillotin.
Os testes foram realizados em abril de 1792. Foram precisos vários, para se chegar aos índices ideais de peso da lâmina, ângulo de corte, altura da armação, etc. Diz Kershaw: “Com um belo senso de precedência, o carrasco iniciou os testes através das mulheres e crianças” (pág. 47). No intervalo, o Dr. Colletier, diretor da instituição, ofereceu às autoridades presentes um passeio pelos jardins e um almoço, no qual “fez-se ampla justiça ao capão e aos vinhos da excelente adega” (pág. 48).
A alucinação coletiva que cercava os guilhotinamentos gerou cenas em que “aristocratas não identificados recebiam com desdém os insultos da turba. Davam gargalhadas entre si enquanto aguardavam a vez, já no cadafalso, e despediam-se cerimoniosamente uns dos outros”. Muitas lendas “folclóricas” sem corroboração histórica, contudo, se perpetuaram, algumas delas através do entusiasmo folhetinesco de Honoré de Balzac (“Um Episódio sob o Terror”, em Cenas da Vida Política).
Alister Kershaw dedica um capítulo inteiro (cap. 9) às pesquisas dos médicos sobre quantos segundos restam de consciência a uma cabeça decapitada, uma experiência que se eternizou no conto de Villiers de l’Isle Adam, “O Segredo da Guilhotina” (1886).
Mais interessantes são os capítulos finais, que ele dedica ao “bourreau”, ou carrasco. Era uma guilda de homens vistos com desconfiança e uma certa repulsa. Já na época pré-Revolução Francesa, um carrasco, ao se servir nos mercados públicos, recebia uma comprida colher de madeira para recolher suas mercadorias, a fim de que suas mãos não tocassem os produtos destinados a outras pessoas (pag. 97). Henry Sanson (um dos muitos Sanson a exercer o ofício) tinha o cuidado de não mergulhar os dedos na caixa de rapé que um amigo lhe oferecesse (pág. 117).
O filho de um carrasco devia tornar-se carrasco também; suas filhas só se casariam com carrascos da mesma geração. Essa “tradição dinástica” se afirmava não apenas pelo lado negativo, de um certo isolamento social, mas pelo fato do carrasco ter sido durante alguns séculos, na França, um funcionário bem pago, e com direito a mordomias que em linguagem do século 21 se traduziriam por Auxílio Açougue, Auxílio Hortifruti, Auxílio Peixaria e assim por diante. O livro transcreve (pág. 134-136) um longo documento de Luís XIV descrevendo em detalhes esses privilégios, que foram sendo cortados por sucessivos governos republicanos nos séculos 19 e 20.
Esse isolamento criou o costume dos casamentos entre famílias. Diz Kershaw:
“Para uma mulher jovem, casar-se com um carrasco era automaticamente condenar suas irmãs e sobrinhas e primas a continuarem solteiras ou a aceitar como maridos apenas homens que exercessem a mesma profissão” (pág. 105).
E comenta:
Se pelo menos soubéssemos um pouco mais sobre essas damas tenebrosas, se pelo menos tivesse chegado até nós algum registro das conversas travadas quando seus maridos voltavam para casa após uma manhã de trabalho! (pág. 106)
Não devemos esquecer que o século 18, ironicamente chamado O Século da Razão, praticou com altivez a tirania do interesse científico sobre o sentimento humano. As primeiras provas da guilhotina definitiva se deram nos arredores de Paris, em Bicêtre, uma mistura de hospital, manicômio e asilo para velhos, onde a mortandade natural era alta. Cadáveres não faltaram para os primeiros testes do protótipo cuja fabricação (por Tobias Schmidt) foi supervisionada pelo Dr. Antoine Louis (1738-1814), secretário da Academia Cirúrgica e, ele sim, mais responsável pelo instrumento do que o pobre Guillotin.
Os testes foram realizados em abril de 1792. Foram precisos vários, para se chegar aos índices ideais de peso da lâmina, ângulo de corte, altura da armação, etc. Diz Kershaw: “Com um belo senso de precedência, o carrasco iniciou os testes através das mulheres e crianças” (pág. 47). No intervalo, o Dr. Colletier, diretor da instituição, ofereceu às autoridades presentes um passeio pelos jardins e um almoço, no qual “fez-se ampla justiça ao capão e aos vinhos da excelente adega” (pág. 48).
A alucinação coletiva que cercava os guilhotinamentos gerou cenas em que “aristocratas não identificados recebiam com desdém os insultos da turba. Davam gargalhadas entre si enquanto aguardavam a vez, já no cadafalso, e despediam-se cerimoniosamente uns dos outros”. Muitas lendas “folclóricas” sem corroboração histórica, contudo, se perpetuaram, algumas delas através do entusiasmo folhetinesco de Honoré de Balzac (“Um Episódio sob o Terror”, em Cenas da Vida Política).
Alister Kershaw dedica um capítulo inteiro (cap. 9) às pesquisas dos médicos sobre quantos segundos restam de consciência a uma cabeça decapitada, uma experiência que se eternizou no conto de Villiers de l’Isle Adam, “O Segredo da Guilhotina” (1886).
Mais interessantes são os capítulos finais, que ele dedica ao “bourreau”, ou carrasco. Era uma guilda de homens vistos com desconfiança e uma certa repulsa. Já na época pré-Revolução Francesa, um carrasco, ao se servir nos mercados públicos, recebia uma comprida colher de madeira para recolher suas mercadorias, a fim de que suas mãos não tocassem os produtos destinados a outras pessoas (pag. 97). Henry Sanson (um dos muitos Sanson a exercer o ofício) tinha o cuidado de não mergulhar os dedos na caixa de rapé que um amigo lhe oferecesse (pág. 117).
O filho de um carrasco devia tornar-se carrasco também; suas filhas só se casariam com carrascos da mesma geração. Essa “tradição dinástica” se afirmava não apenas pelo lado negativo, de um certo isolamento social, mas pelo fato do carrasco ter sido durante alguns séculos, na França, um funcionário bem pago, e com direito a mordomias que em linguagem do século 21 se traduziriam por Auxílio Açougue, Auxílio Hortifruti, Auxílio Peixaria e assim por diante. O livro transcreve (pág. 134-136) um longo documento de Luís XIV descrevendo em detalhes esses privilégios, que foram sendo cortados por sucessivos governos republicanos nos séculos 19 e 20.
Esse isolamento criou o costume dos casamentos entre famílias. Diz Kershaw:
“Para uma mulher jovem, casar-se com um carrasco era automaticamente condenar suas irmãs e sobrinhas e primas a continuarem solteiras ou a aceitar como maridos apenas homens que exercessem a mesma profissão” (pág. 105).
E comenta:
Se pelo menos soubéssemos um pouco mais sobre essas damas tenebrosas, se pelo menos tivesse chegado até nós algum registro das conversas travadas quando seus maridos voltavam para casa após uma manhã de trabalho! (pág. 106)