quarta-feira, 16 de setembro de 2009

1264) Ariano Suassuna e Ray Bradbury (1.4.2007)




Não é brincadeira minha. Existe algo em comum entre o paraibano nascido em 1927 e o norte-americano nascido em 1920. Ambos criaram uma paisagem espaço-temporal própria que se identifica com sua própria infância, e ambientaram nela a parte mais emotiva e autobiográfica de sua obra. Nenhum dos dois é um saudosista que viva do Passado; ambos, apesar da idade, são hoje indivíduos ativos, lúcidos, e mergulhados nas lutas culturais e políticas do momento presente, em seus respectivos países. Mas na obra de ambos a infância e a memória têm uma importância crucial.

Bradbury passou a infância, nos anos da Grande Depressão, na cidadezinha em que nasceu: Waukegan (Illinois), um vilarejo do Meio Oeste. Quando tinha 14 anos seus pais se mudaram para Los Angeles. Ali ele se tornou escritor profissional e roteirista de Hollywood, mas em seus livros retornaria repetidamente para o ambiente de sua infância, onde situou alguns dos seus livros mais poéticos e imaginativos, como O País de Outubro (1955), O Vinho da Alegria (1957) e Algo sinistro vem por aí (1962). O ambiente da cidadezinha do interior é magicamente reconstituído e poetizado. Lá se misturam a excitação pelas descobertas da adolescência e o terror ao entrar em contato com os perigos do mundo. É de se notar a importância que tem na obra de Bradbury o “carnival”, que não é carnaval: é uma instituição tipicamente norte-americana, uma mistura de circo e de parque-de-diversões ambulante, cheio de brinquedos, prodígios e criaturas extraordinárias.

Ariano passou sua infância em Taperoá, até se mudar para Recife, onde mora. Foi numa Taperoá mítica, poetizada, que ele situou suas obras mais importantes, entre elas A Pedra do Reino. O Circo tem uma grande importância na formação da visão-do-mundo do autor e de seus personagens, como Quaderna. E nos folhetins em que a infância deste é recontada (O Rei Degolado e As Infâncias de Quaderna), a descoberta das belezas da vida (as caçadas, os cantadores, os folhetos de cordel, o teatro de mamulengos, as cavalhadas sertanejas) se dá juntamente com a descoberta da violência humana (as guerras políticas da Paraíba) e da tragédia cósmica (a Morte Caetana, mulher que se transfigura em Onça quando chega a hora de arrebatar as vidas humanas).

O romance mais importante de Bradbury, Fahrenheit 451 (1953) é, involuntariamente, uma homenagem ao Romanceiro Popular Nordestino, que Ariano sempre defendeu e sempre cultivou. Numa sociedade totalitária do futuro, onde a TV é obrigatória, os bombeiros são encarregados de queimar todos os livros. Os subversivos desse tempo são indivíduos que, para não serem presos por possuirem esses objetos proibidos, resolvem decorá-los, preservá-los na memória. (Nesse mundo, talvez Bradbury quisesse decorar Moby Dick e Ariano Os Sertões.) Não pode haver homenagem mais poética aos poetas da Tradição, ao Romanceiro, às cantigas antigas, às Literaturas da Voz.


1263) Nós, os paulistas (31.3.2007)




Em seu saboroso e enriquecedor livro Tropicalista Lenta Luta Tom Zé afirma a certa altura uma coisa que sempre me deixou, se não de cabelo em pé, pelo menos com a pulga atrás da orelha. Diz ele à pag. 97: 

“Outro paulista, Pedro Taques, historiador, hoje nome de estrada enganjenta, disse em Nobiliarquia Paulista que o caboclo nordestino descende dos primeiros bandeirantes de São Paulo, que chegaram ao Nordeste e preservaram a fibra e a vigilância moral justamente graças a esta solidão desamparada de migrantes. Ao contrário dos que, cá no Sul, degeneraram em ‘cruzamentos’ e maus costumes de uma vida cortesã”.

Apesar de ser basicamente um elogio, sempre li isto meio com o pé atrás. Parece coisa de baiano, dizer que nós paraibanos somos, no fundo, um bando de paulistas. 

Foi necessária a intervenção do carioca Euclides da Cunha (nascido, para ser escrupuloso, em Cantagalo) para confirmar esta teoria migratória em “O Homem”, a parte intermédia de Os Sertões, onde a certa altura ele diz:

“Da absorção das primeiras tribos surgiram os cruzados das conquistas sertanejas, os mamelucos audazes. O paulista – e a significação histórica deste nome abrange os filhos do Rio de Janeiro, Minas, S. Paulo e regiões do sul – erigiu-se como um tipo autônomo, aventuroso, rebelde, libérrimo, com a feição perfeita de um dominador da terra, emancipando-se, insurreto, da tutela longínqua, e afastando-se do mar e dos galeões da metrópole, investindo com os sertões desconhecidos, delineando a epopéia inédita das Bandeiras...”

A verdade é que o Rio São Francisco foi a vagarosa avenida que ao longo de séculos fez o escoamento destes aventureiros rumo ao Nordeste. Uns vinham em busca de ouro ou esmeraldas. Outros, mais afeitos aos livros de aventuras, vinham em busca de cidades como o Eldorado. Outros queriam apenas o que tanta gente prefere ter: uma vida livre, sem prestar contas a Seu Ninguém, e nas horas de aperto contando apenas consigo mesmo. 

Foram se fixando no vale do São Francisco, subiram, cruzaram o rio, cruzaram a fictícia fronteira entre o noroeste da Bahia e o sul do Piauí, derivaram na direção dos altos sertões do Cariri cearense, e dos extremos da Paraíba e de Pernambuco.

Criaram aqui uma civilização inteira, erigiram fazendas, mataram índios e onças. Um belo dia, parou à sua porta uma charrete e dela desceu um senhor de terno preto com uma pasta na mão. Era o fiscal do Governo, que vinha cobrar os impostos. “Governo? Que Governo?” exclamaram os “paulistas”. “Quem inventou isto aqui foi a gente”. 

Uma das principais tarefas civilizatórias do Brasil para o século 21 será integrar estas duas civilizações: a que veio por fora, em navios, atracando no porto e fundando capitais de Estado, e a que veio por dentro, desbravando o mato a facão, plantando algodão e criando gado. Todos são brasileiros. Problema vai ser achar um Brasil que atenda a todos.




1262) Ave Modigliani (30.3.2007)


(Modigliani)

Modigliani era um gênio, um dos grandes pintores do começo do século 20. O tratamento visual que ele deu à figura humana é inesquecível. Imprime-se em nossa memória para sempre, basta ter folheado aos quinze anos um álbum de seus quadros. Sua pessoa tem também aquela aura de romantismo e tragédia tão importantes para os tais adolescentes que adentraram o mundo da Arte em coleções como “Gênios da Pintura”. Consta que quando ele morreu no hospital, sua namorada, Jeanne Hébuterne, voltou correndo para a água-furtada onde os dois viviam, jogou-se lá de cima e morreu também. O que me lembra, ao revés, uma frase cínica e irretocável de H. L. Mencken: “Não importa o quanto uma mulher ama um homem, ela o amará muito mais se ele se suicidar por ela”.

Modigliani transformava todas as mulheres em silhuetas esguias, altas, longilíneas, como se, ao caminharem nuas pelo interior do quarto, elas estivessem sendo atraídas pelo Céu, pelo Grande Atrator da Beleza que provavelmente reside num Ponto Ômega qualquer do espaço. Elas têm uma sensualidade lânguida, epidérmica, mas inesgotável, capaz de ser ativada pelo toque da impressão digital correta. Uma vez, no Museu de Arte, exibimos O Ano Passado em Marienbad de Resnais, mas como o projetor não tinha a lente Cinemascope, exibimos o filme com a imagem distorcida, horizontalmente achatada, e o rebatizamos como “O Ano Passado em Modigliani”.

Mas Modigliani morreu jovem. Pintou sei lá quantos quadros, mas pintou pouco em comparação ao que teria pintado se tivesse vivido mais. Por falar nisso, Picasso, que morreu com mais de 90, também pintou pouco, porque se estivesse vivo até hoje ainda estaria pintando até com um mouse. Todos os grandes artistas morrem cedo, morrem jovens a qualquer idade, porque nos dão a impressão de terem acessado, por acaso ou por obstinação, algum veio profundo da Criação, o qual lhes possibilitaria a produção ininterrupta de grandes obras enquanto vida tivessem.

Suponhamos, então, a existência de um admirador de Modigliani, um jovem pintor de talento chamado Leon Zebriskovsky, que estudou a fundo a obra do mestre, tinta por tinta, pincel por pincel, e é capaz de reproduzir de olhos fechados suas composições ziguezagueantes, seus contrastes figura/fundo, suas anatomias que brotam de uma região limítrofe entre o ídolo africano, as madonas renascentistas e a aparente desproporção que têm os corpos quando experimentados tatilmente no meio das trevas. Um pintor dotado de todas estas qualidades produziria, um século após a morte do Mestre, quadros que o Mestre não pintou mas poderia ter pintado caso vida tivesse. É uma maneira de prolongar no tempo aquele olhar único e aquela mão sem paralelo, que nos deram tantas epifanias de beleza. Falsário? Imitador? Plagiário? Ou simplesmente um Artista em Grau Menor, que não tem a bênção da originalidade, mas tem, como seu Mestre, um poço artesiano em contato com a Fonte da Beleza?