quinta-feira, 2 de junho de 2011
2572) Drummond: “Festa no Brejo” (2.6.2011)
É um dos poeminhas menores, quase invisíveis, de Alguma Poesia (1930), primeiro livro de Carlos Drummond, cujos 80 anos foram comemorados no ano passado, e que eu recebi (de mim mesmo) a incumbência de comentar, poema por poema. “Festa no brejo”, se enviado anonimamente para a maioria das revistas literárias de hoje, dificilmente emplacaria uma publicação. O poema diz: “A saparia desesperada / coaxa coaxa coaxa. / O brejo vibra que nem caixa / de guerra. Os sapos estão danados. // A lua gorda apareceu / e clareou o brejo todo. / Até a lua sobe o coro / da saparia desesperada. // A saparia toda de Minas / coaxa no brejo humilde. // Hoje tem festa no brejo!”.
Parece uma pequena polaróide caipira, registro da observação de um capiauzinho à beira de sua palhoça, contemplando o brejo ao luar. Ilusão trêda! Para mim o poema de Drummond é citação, homenagem e piscadela-cúmplice-de-olho na direção do famoso poema de Manuel Bandeira “Os Sapos” (no livro Carnaval, 1919). Diz Bandeira: “Enfunando os papos/ saem da penumbra. / Aos pulos, os sapos / a luz os deslumbra. // Em ronco que aterra, / berra o sapo-boi: / - Meu pai foi à guerra! / – Não foi! – Foi! -- Não foi!” // O sapo-tanoeiro / parnasiano aguado, / diz: -- Meu cancioneiro / é bem martelado. // Vede como primo / em comer os hiatos! / Que arte! E nunca rimo / os termos cognatos”.
Já se viu, né? É Bandeira mangando dos poetas acadêmicos que só tem o academicismo para lhes valer, dos poetas que esquartejam o poema no leito de Procusto dos tratados de versificação. Consta que o poema é de 1918, ano da morte de Olavo Bilac. Isso será Bandeira perturbando o velório do outro? Ou terá sido justamente o poema que precipitou o desenlace? Difícil saber a esta altura, e desnecessário. Drummond e sua festa no brejo estão fazendo uma referência clara ao inconformismo generalizado contra o Modernismo, de que Bandeira é considerado uma espécie de precursor, de São João Batista vindo para anunciar quem virá depois.
Os sapos de Drummond, que estão desesperados, podem ser os críticos ou os poetas acadêmicos mineiros, horrorizados com os modernistas, essa quadrilha de diferenciados que surgiu para agredir a Norma Culta do idioma. (Naquele tempo, amigos, era agressão à Norma Culta dizer “que nem”, e um adjetivo como “danado” só se usava em contextos teológicos e canônicos.) O retrato que o poeta nos dá do brejo é o de uma imensa aflição que, linha a linha, vai meio que desmentido a “festa” do título. O que a gente vê é uma situação ansiosa, pois os sapos coaxam de fúria, ou de irritação, ou de desespero. No fecho do poema, contudo, vem uma frase inesperada e triunfante: “Hoje tem festa no brejo!”. Como se dissesse: “O brejo é nosso! Eles estão aí, reclamando pra valer, mas não adianta! A lua não lhes dá ouvidos, ninguém lhes dá ouvidos, viemos aqui pra fazer a festa no brejo. O brejo é nosso! Urrú! Urrú! O brejo é nosso!”
2571) História curta (1.6.2011)
(ilustração: Gustave Doré)
Como eu ia dizendo, faz uns quinze anos.
Eu tinha ido passar o feriadão na fazenda de um amigo, no interior de Pernambuco. Perto de lá ficavam as ruínas de um antigo Engenho abandonado. Durante o dia a gente caminhava e tomava banho de rio; de noite, cerveja e violão. Depois do terceiro dia ninguém agüentava mais uma rotina tão estafante.
Começamos a procurar alternativas. O dono da casa sugeriu que ficássemos fazendo hora até meia-noite e fôssemos para as ruínas do Engenho, aproveitando que era noite de lua. Por quê?, perguntamos. Ele explicou que o Engenho era mal-assombrado, e que à meia-noite apareciam coisas esquisitas lá.
As esposas (havia várias esposas na turma) disseram que “nem mortas”, e que fôssemos nós, o contingente masculino. Um dos caras piscou o olho discretamente e disse que tudo aquilo era pretexto nosso para um encontro clandestino com algumas moçoilas da vila próxima. Houve um certo reboliço, e, para encurtar a história, acabou indo todo mundo.
A verdade é que estávamos mesmo curiosos para ver os possíveis fantasmas, e não havia mulher nenhuma envolvida. Ou melhor: havia agora, as nossas, e íamos ter que agir de acordo.
Entrar num engenho mal-assombrado é um desafio para qualquer sujeito, requer atenção, concentração, dedos cruzados, fé no agnosticismo e assim por diante. Mas, e quando são três caras e três mulheres? Não é preciso nenhum ectoplasma para que fiquem em polvorosa, porque em qualquer sombra elas veem uma cobra e em qualquer folha roçagante um lacrau.
Mas subimos a colina, forçamos uma porta, entramos lá dentro, lanternas em punho; e, pra encurtar a história, a verdade é que apareceu mesmo uma alma.
Não sei se era alma, mas era sem dúvida uma luminosidade difusa que persistia mesmo quando apagávamos nossas luzes. Surgia por trás de umas coisas enormes e bojudas que imaginei serem caldeirões.
Pelas brechas do telhado em ruínas entrava uma luz muito pouca, mas não era avermelhada como aquela. Víamos diante de nós um círculo vermelho que em certo momento pareceu uma fogueira vista verticalmente de cima e em outros uma rosa desabrochando.
Fomos chegando perto; não sei o que pensavam os outros, todos em silêncio, mas eu achei que era um reflexo de alguma fogueira de ciganos, sei lá o quê. Ao chegarmos perto da parede aquilo pareceu se expandir; não era fogo, era algo hologrâmico, impalpável, e mal essa luz nos envolveu eu vi, através dessas volutas de luz vermelha, que as formas bojudas punham-se em movimento, desdobrando patas articuladas que rascavam nas pedras do chão, erguendo tentáculos bífidos que meneavam na penumbra rósea.
Não senti medo. Senti uma espécie de paz, como se uma ampola de anestesia mental me estivesse sendo injetada por inteiro, sossegando-me, imobilizando-me, preparando-me para o que viria a seguir. Nem me dei o trabalho de saber se o mesmo estava acontecendo com os outros, mas a verdade é que, pra encurtar a história, nenhum de nós voltou.
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