sábado, 13 de março de 2010

1787) As palavras encantadas (30.11.2008)




(Machado, por Cláudio de Oliveira)


Guimarães Rosa dizia que as palavras tinham “canto e plumagem” como os pássaros; Olavo Bilac escutava na língua portuguesa instrumentos contraditórios: “tuba de alto clangor, lira singela”. Palavras têm um encantamento próprio e quanto mais mistério guardam mais poder sugerem. Pablo Neruda conta num poema como descobriu a palavra “orégano” e saiu a gritá-la pelas ruas, fazendo com que os leões se ajoelhassem com temor e espanto. Toda palavra é mágica quando a ouvimos pela primeira vez e não sabemos o que quer dizer. Muita tinta da USP já correu para nos tranquilizar a respeito de tutaméias e nonadas.

A FC tem suas palavras misteriosas. O romance de Robert Heinlein Um Estranho numa Terra Estranha conta a história de um marciano que, na Terra, usa a torto e a direito o verbo “grokkar” (“to grokk”), que não se explica a não ser pelo contexto. Grokkar exprime o ato em que sujeito e objeto se fundem numa única entidade mental. É um “comprender” que produz identificação total entre aquele que compreende e aquilo que é comprendido. É muito mais que isto, claro. A cada passo o marciano põe-se a grokkar de forma diferente. Quando beija as mulheres terrestres, todas se apaixonam pelo seu beijo. Por que? Porque ele grokka enquanto está beijando.

Na última linha do romance de A. E. Van Vogt As Casas de Armas, um alienígena, após uma complicada trama de enfrentamento com os terrestres, afirma sobre eles: “Essa é a raça que irá dominar o sevagram!” O romance se encerra com esta palavra misteriosa, que traz consigo doses maciças de estranheza e promessa. Foi descoberto depois ser um termo em Hindi para “vilarejo”, mas seu uso, fazendo encerrar um romance com uma incógnita algébrica, teve um tremendo impacto literário quando a história foi publicada (abril de 1943).

A palavra encantada pode ser simplesmente uma palavra velha num contexto novo. O conto de Machado de Assis “Caso da Vara” mostra um seminarista que foge do colégio contra a vontade do pai. E o texto diz a certa altura: “O pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não, senhor, que o peralta havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube ou na presiganga”. Já pensou que ameaça mais terrível? Tenho certeza de que quando li este conto pelas primeira vez, aos dez anos, grokkei de imediato que tanto o Aljube quanto a presiganga deveriam ser sádicas punições da época.

Por razões mágicas, nunca as busquei num dicionário ou enciclopédia. Não quis me sujeitar ao anticlímax de que o Aljube fosse uma mera casa de correção (espécie de Febem) e a presiganga, talvez, um colar de ferro com correntes, que se aferrolhava ao pescoço dos escravos. Melhor nunca ficar sabendo, e deixar que as palavras valham pelo seu som e, mais ainda, pelo contexto de ameaça terrível que as envolve. Quando ameaçarem alguém, amigos, esqueçam o feijão-com-arroz. Engrossem o tom da voz e disparem uma palavra desconhecida. Faz muito mais efeito.




1786) A moral na FC (29.11.2008)



(Ursula Le Guin)

Na coluna de Roberto Causo no “Terra Magazine”(http://tinyurl.com/yf2zvhv)leio, a propósito de um romance de ficção científica militarista, esta citação de Ursula K. Le Guin: "Onde a FC mais freqüentemente fracassa como literatura, como boa escrita ou boa obra por qualquer definição, é na questão ética. Ela é inventiva, intelectualmente engenhosa, mas moralmente trivial; e portando falha, insensatamente, de ato em ato, de violência em violência. O que poderia ter sido dramático é meramente teatral, o que poderia ter sido imaginativo é uma fantasia estereotipada. Rocha e ferro, carne e sangue, se tornam brinquedos de plástico, e o Espaçotempo em si, o grande tema, encolhe para a mediocridade de um cenário de estúdio de TV."

Le Guin é a maior voz feminina da ficção científica, e olha que há muitas. Suas idéias são sempre sensatas, e poucas tanto quanto estas. De certo modo, LeGuin se aproxima do que Thomas M. Disch afirmou certa vez, que a ficção científica era um subgênero da literatura infantil. Isto levantou uma gritaria enorme nos arraiais da FC, mas o exagero de Disch era o exagero da caricatura, que aumenta e torna visível algo que já existia e era característico.

A FC é uma literatura típica de adolescentes quando visa à excitação da aventura, da intensa ação física, da curiosidade pelo desconhecido, do questionamento intelectual do tipo “quem somos, de onde vimos, para onde vamos”. Tais desafios são típicos da adolescência, tanto quanto a socialização, a inserção em grupos, a arte de conviver em tribos. Há uma parte considerável da FC cujas histórias, personagens e heróis se voltam para essa faixa mental (não chamo de “faixa etária” porque isso se prolonga até a velhice).

As revistas de FC nos anos 1930 pareciam os video-games de 2000. O excesso de ação física e violência se sobrepõe às escolhas morais, que se tornam rasas, oportunistas, imediatistas, egocêntricas. Os video-games ensinam a crueldade sem ensinar a coragem. A coragem só pode ser aprendida diante de desafios e perigos reais, situações que exijam sacrifícios dolorosos e responsabilidades verdadeiras. Algo ausente nos jogos, onde pode-se inclusive morrer e começar tudo de novo, como se a própria morte nunca tivesse ocorrido.

A sem-cerimônia com que a violência é tratada na FC de hoje tem origem nisto. Escritores jovens e talentosos, filhos da classe média, que nunca tiveram que enfrentar problemas de sobrevivência, de adaptação num meio hostil, nunca tiveram que começar a trabalhar cedo, nunca fizeram grandes sacrifícios... E eles se divertem falando de canibalismo, mutilações, massacres, serial-killings, tortura e assim por diante. Vivem num mundo virtual, na proteção de um apartamento em condomínio. Temem a violência, porque se sabem despreparados para enfrentá-la. E a exorcizam através de jogos ou livros em que parecem estar gritando: “Eu não tenho medo disso! Eu não tenho medo disso!”

1785) O custo da farra financeira (28.11.2008)



No saite BoingBoing, Cory Doctorow transcreve uma interessante analogia preparada por Barry Ritholtz (ver em: http://www.boingboing.net/2008/11/25/bailout-costs-more-t.html) sobre os valores numéricos da crise atual. Ele compara esta crise com uma série de grandes investimentos ou grandes prejuízos financeiros do passado, sempre comparando o dólar da época com o de hoje, e fazendo a devida correção monetária. Tudo isto, diz Ritholtz, para nos dar uma idéia do que significa “um prejuízo de 4,62 trilhões de dólares”.

Segundo ele, o Plano Marshall (ajuda financeira dos EUA para reconstrução da Europa após a II Guerra Mundial), custou 12,7 bilhões de dólares na época, que seriam 115,3 bilhões em moeda de hoje. A compra do estado da Louisiana, nos EUA, por 15 milhões de dólares da época, teria custado, hoje em dia, 217 bilhões. A corrida espacial para a Lua (36,4 bilhões) custou em moeda de hoje nada menos do que 237 bilhões de dólares. A Guerra da Coréia custou 54 bilhões, o que seria hoje algo em torno de 454 bilhões. A crise da poupança e dos empréstimos dos anos 1980 nos EUA (“Savings & Loan Crisis”) resultou num prejuízo de 153 bilhões de dólares pagos pelo contribuinte norte-americano, que seriam cerca de 256 bilhões em moeda de hoje. E tem também o “New Deal” do Presidente Roosevelt, para tirar o país da Grande Depressão dos anos 1930: o governo gastou na época 32 bilhões, que hoje chegariam a mais ou menos 500 bilhões.

Não pára por aí. Vamos somar a essa lista a invasão do Iraque, com um custo de 551 bilhões de dólares, que seriam 597 bilhões com o ajuste financeiro. Vamos somar a Guerra do Vietnam e seus 111 bilhões, que hoje em dia representariam 698 bilhões de dólares. E o custo da NASA (o jornalista não explica se isso é o custo total de todos os programas da NASA ou apenas as despesas operacionais, mas vá lá), num total de 416,7 bilhões, que corrigidos resultariam em 851,2 bilhões de dólares.

Parece muito dinheiro gasto, não é? E gasto em empreendimentos titânicos, que muitas vezes se estenderam ao longo de décadas. Pois bem: Ritholz diz que tudo isto, somado, não se compara ao que o mundo gastou nos últimos meses para pagar o prejuízo causado pela especulação financeira, pela “bolha de prosperidade”, pela “nuvem de dinheiro” que circulava o planeta, chovendo onde lhe dava na telha. Todos estes empreendimentos acima, somados, chegam apenas a 3,92 trilhões de dólares. São empreendimentos de porte gigantesco, que mudaram a história dos EUA e de outros países (Iraque, Coréia, Vietnam) e em alguns casos a história da Humanidade inteira, como o programa espacial. E tudo isto somado não consegue se igualar aos tais 4,62 trilhões de dólares que o conto-do-vigário neo-liberal fez evaporar, e que nós todos iremos pagar do nosso bolso nos próximos anos.

Pois é. Eu vivi para ver o fim do Comunismo, e nunca pensei que veria o fim do Capitalismo logo a seguir. Bem feito para os dois.

1784) Lendas Urbanas (27.11.2008)




Lendas Urbanas não passam de uma adaptação das lendas rurais, do mecanismo de invenção de histórias absurdas que há milênios funciona em regiões onde todos os contatos são face-a-face e toda a troca de informação é por via oral. 

A Lenda Urbana é um folclore adaptado, um mecanismo que se transplanta do campo para a cidade, confortavelmente instalado nos neurônios de gerações de migrantes. 

Na cidade os temas são outros, os ambientes, os personagens; mas a mecânica de criação de história é a mesma. “Mutatis mutandis”.

Isto não quer dizer que o meio urbano não interfira no mecanismo. 

Uma das minhas Lendas Urbanas favoritas é a história dos bombeiros que estão apagando um incêndio florestal numa montanha e encontram ali o cadáver semi-carbonizado de um mergulhador, com óculos, pés-de-pato e tanque de oxigênio. 

A explicação: os helicópteros de combate ao fogo iam até o litoral e desciam até o mar uma caçamba metálica, que enchiam de água para despejar no incêndio. Uma dessas caçambas “engoliu” o mergulhador e veio despejá-lo no fogaréu.

O que há de fascinante nessa Lenda Urbana é aquilo que os surrealistas chamavam de “dépaysement”, deslocamento, junção inesperada de duas coisas distantes, ou a colocação súbita de um elemento num ambiente totalmente distante dele. 

Encontrar um mergulhador carbonizado numa floresta de montanha é como a famosa cena visualizada por Lautréamont, “o encontro de um guarda-chuva e uma máquina de costura em cima de uma mesa de dissecação”. 

O alto grau de improbabilidade da cena parece conspirar em favor de nossa crença. É como se disséssemos; “Não, uma coisa tão fantástica não poderia ter ocorrido a uma mente humana! Somente a realidade pode produzir paradoxos desse tipo.”

E eu completaria: somente a realidade urbana, em que paradoxos desse tipo (só que em grau menor de excentricidade) podem ser observados todos os dias, desenvolvendo em nós uma sensibilidade especial para (e uma aceitação tácita de) tudo que é bizarro, incongruente, ou meramente exótico. 

Simplificando muito uma realidade complexa, a gente pode dizer que o mundo rural é bem homogêneo em seu aspecto social e humano, e heterogêneo no que diz respeito à natureza, a eterna fonte de surpresas e de fatos extraordinários. 

No mundo urbano, é o contrário – o ambiente da cidade, em si, é algo aparentemente sob controle, planejado, criado por urbanistas e engenheiros, e é na fauna humana e nas suas infinitas recombinações culturais que reside o laboratório das surpresas.

Segundo Jon Brunvand, pesquisador de lendas urbanas, muitas delas surgem da criatividade de um sujeito que vê algo acontecendo e pensa: “E se...?” E se esse helicóptero que estou vendo no “Jornal Hoje”, pegando água do mar, recolhesse um mergulhador? 

A vida urbana, com seus bilhões de possibilidades combinatórias, nos dá o começo quase pronto de uma história bizarra. Basta apenas a gente inventar o final.