sexta-feira, 30 de junho de 2023

4957) Entrevistas Transcendentais: Edgar Allan Poe (30.6.2023)



 
O sol de Baltimore, nesta tarde de outono e céu azul, brilha como se por trás de uma redoma, lançando muito pouco calor sobre a rua. Caminho devagar, olhando as fachadas, até localizar o número 203. É uma casa de esquina com tijolos marrons, dois andares, uma lucarna projetando-se para fora lá no alto, onde deve ser o sótão. Subo os degraus da entrada, toco a campainha. Sou recebido por uma curadora metódica, trajando uniforme. De iPad em punho, ela checa meu agendamento, pede meu login e senha, indica-me a escada. 
 
Olho em torno. Mobília de época: móveis pequenos, reluzentes, nenhuma toalha de mesinha fora do lugar. Vou subindo para o sótão, onde ele fez seu gabinete de escrita. Do segundo andar para o sótão a escada é meio desconjuntada, insegura, e com o teto muito baixo. Imagino com que esforço os visitantes idosos que vieram antes de mim conseguiram subir. No sótão, o teto é inclinado, mal permitindo a uma pessoa de estatura normal ficar com o corpo ereto. 


(Amity Street 203 / Google View)
 
Ele está sentado numa cadeira junto à lucarna. No parapeito largo da janela há um corvo empalhado, sobre um pedestal de madeira. Numa mesinha próxima, uma bandeja com chá.  Ele se ergue, aprumado, cavalheiresco, estende-me a mão com a pose de um gentleman que perderá os ossos antes de perder as boas maneiras. Indica-me uma cadeira próxima, serve chá para nós dois. As mãos tremem ligeiramente, mas não hesitam. 
 
Trocamos amabilidades; ele ergue uma sobrancelha diante do meu sotaque, mas estou me esforçando para falar de forma compassada, separando bem as palavras, mesmo que isso me dê um ar artificial. A voz dele é profunda, melodiosa, e passa-me pela cabeça a idéia de que em outros tempos poderia ter sido um locutor de rádio. Mas não: é o teatro, o teatro que ele nunca praticou, mas tem no sangue. Ou talvez tenha praticado a vida inteira – autor, ator e personagem. 
 
BT – Mr. Poe, o senhor produziu uma quantidade espantosa de textos em sua curta existência. Na minha biblioteca, o volume dos seus “Contos e Poemas Reunidos” tem 1.026 páginas, e o de “Ensaios e Resenhas” tem 1.472. Como vê essa produção, hoje? Preferiria ter escrito menos? Mais, talvez? 
 
POE – Sou um escritor profissional. Não penso em termos da obra acumulada, penso apenas no texto que produzo naquele momento. Vivo em função do presente, não da posteridade. Não tenho do que me queixar. Tive uma vida difícil, cheia de conflitos familiares, decepções pessoais, penúria financeira; mas não a vejo como uma vida diversa da maioria das pessoas da minha época. E, embora muitos possam me considerar um incompreendido, fui um editor respeitado, meus contos e poemas foram recebidos com admiração. Muitos contemporâneos meus, homens e mulheres de talento, não alcançaram certos patamares de sucesso que eu conheci. 
 
BT – Pessoas de talento, concordo; mas sem a sua fagulha de genialidade. 
 
POE – Sempre achei  que os maiores gênios, os mais brilhantes intelectos que a humanidade produziu, não devem ser procurados nas academias ou nos salões científicos, e sim no manicômio ou na prisão. Terão sido gênios, mas em seu século foram tidos como incoerentes ou insanos. O vigor de uma inteligência excepcional não garante que nos comunicaremos com nossos contemporâneos. Sem ter um semelhante com quem dialogar, um indivíduo desse tipo prega no deserto e amedronta até os que mais o querem. Nossas sociedades se organizaram de forma a reconhecer o talento individual e empregá-lo em seu benefício, mas o “gênio”, pelo seu caráter de incontrolável rebeldia, terá sido na maioria das vezes vítima de incompreensão, perseguições e castigos. 


(Poe, by Court Jones)
 
BT – O senhor é tido, hoje, como um dos criadores, ou precursores, de três tipos muito populares de literatura: a narrativa de mistério detetivesco, a ficção científica e o conto de horror. Não sei se, na época em que escrevia, essas distinções eram assim tão claras. 
 
POE – Não eram. Como editor, descobri cedo o quanto é útil produzir no leitor algum tipo de expectativa prévia. Algumas vezes usei o termo “contos de raciocínio”, pois este me parece um filão pouco explorado da literatura. A literatura do meu tempo era fervilhante de sentimentos, de emoções ora nostálgicas ora assombrosas, e eu também as explorei, ao meu modo. Mas minhas histórias sobre a importância do raciocínio, da interpretação correta de fatos e aspectos da realidade constituem, para mim, um gênero legítimo dentro da literatura. Contos tão diversos quanto como “O Escaravelho de Ouro”, “Descida no Maelstrom”, “Tu És o Homem” e “A Queda da Casa de Usher” abordam esse tema: o raciocínio aplicado a situações limite. 
 
BT – Ainda hoje os apreciadores da literatura policial discutem sobre a importância do detetive raciocinador nessas narrativas.
 
POE  – Considero um erro, ou pelo menos uma limitação desnecessária, apor o rótulo “policial” a essa literatura, que nem sempre envolve polícia ou criminosos. O raciocínio é uma das luzes que o Criador nos deu, e não é privilégio de policiais. (ergue-se, caminha pelo sótão enquanto com as mãos ilustra a cena que descreve) Tenho em minha casa uma gata que aprendeu sozinha a abrir a porta para sair, pulando para agarrar-se ao ferrolho, movendo-o com a pata, impulsionando a porta para abri-la, e depois pulando para o chão e saindo. Os animais têm sua forma de raciocínio; mais rudimentar que a nossa, por certo, mas real. Pude utilizá-la na justificativa para os crimes da Rua Morgue, onde um animal com instinto imitativo mata uma pessoa sem saber o que está fazendo. 
 
(Detém-se diante de uma gravura na parede, mostrando um gato preto em pose imperial, sobre uma almofada.)  Quem tem animais domésticos, sejam cães ou gatos, sabe dos seus lampejos extraordinários de inteligência na resolução de problemas práticos. No homem, esses lampejos podem ser fonte infinita de inspiração literária, para além da mera investigação criminal. Isto que chamam hoje de “detetive” não se distancia muito de um médico que em dez minutos de conversa com um doente reúne elementos suficientes para deduzir o mal que o aflige, ou de um relojoeiro, que abre o nosso relógio e rapidamente descobre a razão do seu defeito. É o raciocínio aplicado aos dados da vida concreta. 
 
BT – Esta sua tendência de pensamento nunca entrou em conflito com a sua fascinação pelos aspectos sombrios, inconscientes e indecifráveis da mente humana, e do Universo? 
 
POE – Nosso espírito tem marés que avançam e recuam, como as dos oceanos. Não nego que em vida tive fases de exaltação e fases depressivas, bem como fases de auto-confiança no intelecto e fases de pavor diante de aspectos inexplicáveis de nossa existência. Falei que o terror não vem da Alemanha, vem da alma, tentando exprimir essa percepção de que esse medo reside em nós e não podemos fugir dele. Podemos entendê-lo, interpretá-lo, e neste caso a mente raciocinadora nos ajuda, se não a eliminar o terror, a colocá-lo em palavras. Não deixa de ser um triunfo parcial. 
 
BT – A palavra nos dá uma sensação de poder, diante da realidade...
 
Ele volta a sentar. Estende o braço e acaricia a penugem do corvo empalhado, com ar distraído.
 
POE – Sim... Quando me referi ainda agora à inteligência dos animais, não mencionei o corvo, que é rapidíssimo na solução de problemas, usa instrumentos agarrados com o bico, e demonstra ter uma clareza de pensamento que nos assusta. Por isso o elegi como protagonista de um dos meus poemas. Ele é, sim, o espírito da noite, o anjo ou demônio que negreja. Mas ele se exprime através da palavra, de uma única palavra: “Nevermore”. O que esta palavra significa fica a cargo do raciocínio do narrador, e este, a cada passo, dá a ela um sentido diferente em relação a sua própria vida. Talvez sejamos como o corvo. Talvez toda a literatura da espécie humana seja essa palavra, que um dia será lida por uma espécie superior à nossa, tal como o homem é superior ao corvo. E essa espécies de seres superiores dará, ao que escrevemos, sentidos que nos escapam. 


(Poe, by Edouard Manet)

 
BT – Esta sua valoração da inteligência nos animais poderia se estender, talvez, até as máquinas?
 
POE – Em princípio, nada impede que isto ocorra, se imaginarmos a inteligência como um processo combinatório definido por uma mecânica de possibilidades e escolhas, uma faculdade meramente acessória do Espírito, e sem a transcendência deste. O senhor deve lembrar o meu artigo sobre o Turco Enxadrista. Recusei-me a crer numa máquina capaz de jogar xadrez, nas condições daquela época. Pareceu-me mais plausível, pela navalha de Occam, que se tratasse de um mero truque: um homem oculto no gabinete de madeira. Nada impede, porém, que em condições técnicas mais avançadas isso possa ser obtido. O xadrez pode ser reduzido a combinações matemáticas, e os exemplos da calculadora de Pascal ou da máquina de Charles Babbage poderiam ser direcionados para operações tão complexas quanto as que o jogo requer. 
 
BT – E quanto a operações mais complexas ainda? A criação de textos ficcionais, por exemplo?
 
POE – Em primeiro lugar, devo insistir na distinção entre a mente humana, onde brilha o Espírito, e uma máquina, por mais poderosa que seja. Com esta ressalva, não vejo por que seria impossível criar um mecanismo capaz de gravar em sua memória um número extraordinário de combinações numéricas, e depois atribuir a esses elementos as mesmas funções das nossas palavras e dos fragmentos do nosso discurso. É uma operação análoga à que descrevi em “O Escaravelho de ouro”, só que com palavras e frases no lugar de letras, portanto em outro patamar de complexidade – imenso, mas não inatingível. 
 
BT – A criação de frases seria um processo meramente estatístico? 
 
POE – Não apenas isso, mas esse aspecto é essencial para a criação de filtros de probabilidade. No xadrez, em cada momento há centenas de jogadas possíveis, permitidas pelas regras; mas o intelecto do jogador descarta de pronto todas as jogadas inócuas, contraproducentes, irrelevantes, e se concentra naquelas que têm maior peso para a disputa travada no tabuleiro naquele instante. Num criptograma, estabelecemos regras de probabilidade para as letras, sendo a letra “E” a mais frequente em nosso idioma inglês; e regras específicas, como a de haver sempre uma letra “U” após a letra “Q”, etc. Esse cálculo pode ser ampliado para pequenas frases. “Céu azul”, “céu nublado”, “céu chuvoso” são combinações frequentes; “céu cavalo” “céu xícara”, “céu assoalho” não fazem sentido e podem ser descartadas. As regras gramaticais eliminariam automaticamente bilhões de respostas possíveis, e o avanço seguinte da máquina se daria num repertório de escolhas bem mais reduzido. 
 
BT – Pode-se criar textos literários dessa maneira? Prosa, poesia?
 
POE – É discutível, mas é uma questão em aberto. Assim como não há mistério concebido pela mente humana que outra mente humana não possa esclarecer, também não existe prodígio concebido pela imaginação humana que o engenho humano não possa tornar realidade. Faço apenas a ressalva de que a um processo 100% mecânico de criação de textos faltariam duas condições essenciais à literatura humana: alma e corpo. 
 
Entre os bilhões de combinações de palavras que nossa mente analítica pode formar, é o Espírito quem decide as mais elevadas, as mais nobres, as mais carregadas de verdade humana. 
 
E há também o nosso corpo, de quem nossa linguagem tanto depende. Criamos literatura com o corpo, tanto quanto com a mente. Alguém incapaz de escutar conceberia um poema como “The Bells”? A audição e a visão são essenciais a tudo que produzi. Muitos efeitos de contos como “A Tale of the Ragged Mountains”, “The Sphinx”, “The Oval Portrait”, “A Descent of the Maelstrom” dependem essencialmente do modo como nossos olhos enxergam. Por outro lado, efeitos sonoros e percepção auditiva são essenciais em ”The Tell-Tale Heart”, “The Fall of the House of Usher” etc.  Pergunto: uma máquina combinatória, sem corpo, poderia espontaneamente produzir histórias desse teor?
 
O senhor deve recordar as críticas do Chevalier Dupin aos procedimentos da polícia parisiense, no episódio do orangotango. Ele ironizava o chefe de polícia dizendo-o “esperto demais para ser profundo” e que sua inteligência tinha apenas cabeça, e não corpo. E no caso da carta furtada, o ministro D. tinha qualidades de poeta e de matemático, porque se tivesse apenas estas últimas estaria às mãos da polícia, que tem esse tipo de raciocínio. 
 
Uma máquina-escritora, sem a inspiração divina do Espírito, e sem um corpo (incluo aqui todos os poderes de observação empática de outros seres humanos, como no caso dos jogadores de whist), não poderia ter a fagulha poética, criadora. Seria um mero mecanismo re-arranjador de frases previsíveis. 
 
O smartphone me dá um aviso vibratório e inicia a contagem regressiva de dez minutos. Ergo-me, despeço-me dele, desejo-lhe um dia produtivo de trabalho, pois não me escapou à vista, no outro extremo do sótão, a bancada coberta de folhas garatujadas, os tinteiros cheios, os porta-penas, os mata-borrões. O contrato me impede de questioná-lo a respeito do que está escrevendo, porque poderia produzir uma alteração no algoritmo. Nosso último aperto de mãos me recompensa com um olhar cálido, cheio de companheirismo. 
 
POE – Fico muito grato pela sua visita. Há tão poucas pessoas que me procuram hoje em dia. Brasil, não é mesmo?... Que surpreendente. Bem, leve consigo minhas melhores lembranças aos meus leitores de Buenos Aires.
 
BT – Tem pelo menos dois, lá, e o admiram muito.
 
A escada íngreme e a funcionária atenciosa me conduzem de volta àquela rua pacata, àquele trecho de cidade sub species aeternitatis, àquela grama que não cresce, àquele sol que não aquece, ao céu daquele corvo que não crocita nunca mais.