(provas corrigidas de Un Coup de Dés")
Gosto de colecionar erros criativos, que podem ser de
diversos tipos. Um dos mais frequentes é quando uma pessoa tenta fazer ou dizer
algo, e por uma razão qualquer acaba fazendo ou dizendo algo diferente do que
pretendia – e o resultado traz uma informação nova, um detalhe curioso que em
circunstâncias normais talvez não ocorresse a ninguém.
Não é simplesmente o erro onde a gente manga do erro. É o
erro que às vezes até parece intencional, porque o resultado poderia até ser
justificado, mesmo que com um raciocínio um pouco tortuoso.
Meu amigo Mario Bag, ilustre ilustrador da minha obra
literária, postou no Facebook tempos atrás:
Gastaram
tanto tempo discutindo se o certo era dizer que alguém entrega algo "a
domicílio" ou "em domicílio" que, talvez por causa do uso contínuo
de "Home-Office" durante a pandemia, surgiu uma outra expressão (que
já escutei de duas pessoas consideradas "do povo"): "ENTREGA A
HOME-CÍLIO".
É um erro? É, se considerarmos que a pessoa entendeu mal
algo que escutou e não reproduziu corretamente o que tinha escutado, como
talvez fosse sua intenção. Mas o ruído que ela introduziu no termo, tentando
fazer sentido dele, mostra que houve um entendimento do conteúdo.
Ou seja: a mensagem foi distorcida, mas a intenção
significativa (indicar que se tratava de “algo relativo à residência de alguém”),
se manteve, mesmo que por um caminho tortuoso.
São palavras distintas, porque em inglês “home” vem do
proto-germânico “haimaz” (=lar), enquanto que em português “domicílio” vem do
latim “domus” (=casa). A semelhança sonora, porém, resolveu poeticamente a
parada.
O mais comum, no entanto, é que por ocasião de um erro de
leitura ou de escutação o sentido vá pro espaço.
Li num artigo: “Fulano de Tal construiu canários para
peças teatrais, óperas e desfiles de modas”. Na verdade trata-se de “cenários”.
O que não me impediu de por uns cinco ou dez segundos erguer os olhos para a
parede e visualizar um profissional num ateliê, parecido com um antiquário ou
uma loja de taxidermia, rodeado por gaiolas de variados tamanhos exibindo
canários artesanais em variadas cores, e posturas imóveis.
A literatura está cheia de exemplos de mensagens
enriquecidas por ruídos telefônicos. Já mencionei, nesta série (consultem no
blog a tag “Erros Criativos”) o caso do livro Naked Lust (“Luxúria Nua”), de William Burroughs. O título foi
comunicado aos editores por telefonema internacional. Por isto mesmo acabou virando oficialmente Naked Lunch (“Almoço Nu”), e o resto é História.
Algo semelhante aconteceu com Gene Wolfe, o grande autor
da série de FC “The Book of the New Sun”. O último romance da série intitula-se
A Cidadela do Autarca (“The Citadel
of the Autarch”). Ora, autarca é uma palavra rara mesmo em português, domínio
em que talvez sejamos mais afeitos a elementos gregos do que o pessoal dos EUA.
“Autarca” significa “soberano absoluto”.
Em 1981, por telefone, Wolfe informou o título da obra-em-progresso
a Charles N. Brown, o saudoso editor da revista Locus. Brown não entendeu direito o que tinha ouvido e anunciou, no
número seguinte da revista, que Gene Wolfe estava prestes a lançar o romance The Castle of the Otter (“O Castelo da
Lontra”).
O que fez Wolfe? Correu às redes sociais, que nem
existiam ainda, para clamar-se prejudicado? De jeito nenhum. Ele simplesmente declarou
que “O Castelo da Lontra” era um nome excelente – e publicou um ano depois um livro com esse
título, reunindo material relativo à pesquisa e criação de sua série, dedicado
a Brown e à equipe da Locus.
(Na revista do mês seguinte, Charles N. Brown pediu
desculpas pelo erro e disse que o livro se intitulava na verdade “The Castle of
the Autarch”. Wolfe comentou: “Ainda não chegou lá, mas está esquentando.”)
("Oblique Strategies")
O compositor Brian Eno e seu parceiro Peter Schmidt
inventaram um “baralho de conselhos” intitulado “Estratégias Oblíquas” (Oblique
Strategies). São cerca de cem cartas, cada uma com uma frase impressa, que eles
costumavam tirar ao acaso, quando estavam encrencados num problema criativo
qualquer.
Uma dessas cartas dizia algo como: “Transforme o Acaso
num aliado.” Ou seja: quando num trabalho criativo surge uma interferência
não-prevista, mas o resultado é interessante, que motivo temos para eliminar esse
“ruído”? Apenas o fato de que “não estava no roteiro”? Dane-se o roteiro. O
roteiro é um ponto de partida para alguém começar a criar, não é uma descrição
prévia de como deve ser a obra no final da criação.
Na série de TV “Twin Peaks”, de David Lynch, um dos
principais personagens é o “espírito maligno” chamado de Killer Bob. É uma
espécie de fantasma que persegue as pessoas e impele os homens ao estupro e ao
assassinato. Como surgiu o personagem?
Durante uma gravação, o reflexo de um dos assistentes, um cara feioso,
agachado numa posição que parecia ameaçadora, foi captado pela câmera. Em vez
de cortar a imagem e filmar de novo, David Lynch a manteve, e criou o
personagem, usando o assistente (Frank Silva) como ator pelo restante da série.
Era uma cena comum, com a personagem Laura Palmer
sozinha em seu quarto. Ao ver pela primeira vez a imagem captada pela câmera,
Lynch assustou-se ao perceber, por um ou dois segundos, a imagem daquele
sujeito num quarto que se supõe quase deserto. Era como um fantasma obsessor. E
ele entendeu de imediato que se mantivesse a imagem no filme o susto do público
seria equivalente ao dele. Surgiu assim o Killer Bob.
(Killer Bob)
Reza a lenda que uma boa parte do críptico Finnegans Wake (1939) de James Joyce foi
ditado pelo autor, acamado, a Samuel Beckett, que durante um bom tempo trabalhou
como seu secretário. Durante uma dessas sessões, Joyce estava ditando o texto
quando alguém bateu à porta e ele respondeu: “Pode entrar!”.
Beckett,
obedientemente, colocou o “Pode entrar!” no texto do livro. Joyce, ao que
consta, se divertiu com o incidente, e o “erro” está lá até hoje.