domingo, 28 de fevereiro de 2010

1726) “Jack” (23.9.2008)



(China Miéville)

O conto “Jack” de China Miéville, incluído na antologia The New Weird, explora formas híbridas, heterogêneas. Em primeiro lugar há o hibridismo temporal. O universo da cidade de New Crobuzon, criado por Miéville, tem algo do gênero “steampunk”, uma fusão fascinante de elementos futuristas e elementos retrô, coisas de cem anos atrás e coisas de daqui a cem anos. Isso produz uma sensação constante de estranheza e de familiaridade. Ao visualizar esse ambiente, nossa imaginação salta em direções opostas, produz um número muito maior de sínteses (passado/ presente, presente/futuro, passado/futuro) e fica pronta para aceitar situações cada vez mais “estranhas, insólitas, bizarras”.

Existe na sociedade de New Crobuzon um hibridismo permanente entre hardware tecnológico e magia utilitária. Quando as autoridades desencadeiam uma caçada ao inimigo público no. 1, Jack Half-a-Prayer (“Jack Meia-Reza”), o autor diz que elas “utilizaram toda a taumaturgia de que dispunham, os médiuns, os leitores de mentes, e as máquinas de empatia trabalhando a toda potência”. Esta sociedade futura conseguiu fazer o elo entre energias psíquicas e mecanismos físicos, com estes podendo ser adaptados para produzir, armazenar e canalizar aquela, como o fazem com a energia eletromagnética.

O hibridismo visual mais evidente no texto são os enxertos mecânicos a que são submetidos os criminosos condenados em New Crobuzon, que não teriam vez numa narrativa de “realismo futurista” estilo Asimov ou Arthur C. Clarke, na qual seriam considerados despropositados, ou impossíveis de levar a cabo. O tom naturalista da narração de Miéville evita trazer para primeiro plano qualquer sentido alegórico que essas imagens podem ter. Elas são aceitas como parte da realidade descrita. E o Jack deste conto evoca o Spring-Heeled Jack do folclore londrino do século 19.

Em New Crobuzon, as vítimas de tais enxertos são chamadas “os Refeitos” (“the Remade”): “Jack veria essa mulher, cujas mãos foram foram amputadas e substituídas por pequenas asas de pássaros; (...) e o mesmo com aquele garoto a quem extraíram os olhos, substituindo-os por um arranjo de vidros escuros, tubos de órgão e luzes, fazendo-o tropeçar, por estar vendo as coisas de uma maneira diferente da que via desde o nascimento(...). É difícil entender as lógicas do Refazer, pois às vezes os juízes passam sentenças que não fazem sentido. Um homem mata outro com uma faca: seu braço assassino é amputado e substituído por uma faca motorizada com toda a tubulação a vapor necessária para que funcione. (...) Mas não posso explicar a mulher em quem foi implantado um colar de penas de pavão, ou o menino com pernas-de-aranha feitas de ferro enxertadas nas costas, ou as pessoas com olhos em número excessivo, ou com máquinas que as fazem queimar por dentro, ou com pernas de bonecos de madeira, ou com braços substituídos por braços de macacos, que balançam ao andar, com a graça de um gorila maluco”.

1725) Machado: “O Anel de Polícrates” (21.9.2008)





(Machado, por Sergio Leo)

Este conto de Machado (em Papéis Avulsos, 1882) inspira-se na lenda de Polícrates, tirano da ilha grega de Samos. Cumulado de favores pela sorte, Polícrates temeu que o Destino lhe reservasse algum castigo. Um assessor o aconselhou a fazer um sacrifício, desfazendo-se de um bem precioso. Ele atirou ao mar um anel que prezava muito; no dia seguinte, o cozinheiro do palácio abriu o ventre de um peixe, encontrou o anel, e o devolveu ao rei. 

É a versão benigna da tragédia grega. Não se pode fugir ao destino, e mesmo a sorte, quando insistente, parece uma maldição.

Isak Dinesen retoma a lenda (em “O Peixe”, no livro Contos de Inverno) para romancear a história do rei Erik da Dinamarca, que acha no ventre de um peixe um anel de pedra azul. Alguém reconhece nele o anel de uma dama da corte, Ingeborg, cujos olhos eram da mesma cor. O rei diz: 

– Quando as mulheres formosas usam jóias, procuram harmonizá-las com alguma parte do seu rosto ou do seu corpo. Pérolas exprimem a beleza do seu colo ou dos seus seios; rubis e granadas evocam seus lábios, suas unhas, seus mamilos. Você me diz, então, que esta pedra é igual aos olhos dessa dama?... 

A crônica se encerra dizendo: “Srig Andersen matou o rei Erik por vingança, depois que este seduziu sua esposa, Ingeborg”.

Freud comenta Polícrates no ensaio O Estranho (Das Unheimlich), observando que uma sorte excessiva, ou a sistemática realização de todos os desejos, não são algo para se desejar. Diz que o rei do Egito afastou-se de Polícrates horrorizado, ao ver que todos os desejos do amigo eram imediatamente satisfeitos, afirmando que “também o homem feliz tem que temer a inveja dos deuses”. 

Freud vê nessa crença uma manifestação da crença na onipotência dos pensamentos, como se cada desejo intenso que experimentamos fosse imediatamente convertido em realidade.

Machado usa o anel para ilustrar com ironia sua teoria pessoal dos memes, para mim uma visão satírica da vida cultural do Rio, com todo mundo copiando, plagiando, imitando e apropriando-se de idéias alheias. Desenvolve o mesmo tema em “Evolução” (Relíquias de Casa Velha, 1906): o narrador diz uma frase a um conhecido, e no correr dos anos vê o outro repeti-la com pequenas variantes, assenhoreando-se dela pouco a pouco.  

O protagonista de “O Anel de Polícrates", Xavier, é um típico personagem machadiano: o Sonhador Pródigo, o indivíduo com talento mas sem foco, que vive espalhando idéias, iniciando projetos que não leva a cabo, concebendo planos mirabolantes que nunca dão em nada. Machado reverte a alegoria da sorte, contida na lenda grega, usando o anel (a frase) como símbolo do caiporismo de Xavier. Inventor da frase, ele a ouve nos lábios deste e daquele mas não consegue memorizá-la de novo, apossar-se dela. 

A frase é anel e ao mesmo tempo um peixe escorregadio ou ave arisca que sempre lhe foge: “Quando ele supunha pôr a mão em cima da idéia, ela batia as asas, plás, plás, plás, e perdia-se no ar, como as figuras de um sonho”.





1724) O terror e o susto (20.9.2008)







Quando eu era garoto, havia uma história de terror que requeria um certo ritual para ser contada. A pessoa pedia que fossem reduzidas as luzes do quarto ou da sala onde a gente estivesse. Começava a contar a história, com rosto muito sério, voz pausada, num tom baixo, quase como uma confidência que não podia ser ouvida na sala vizinha. Era a história de um caminhoneiro que vinha viajando à noite. Ele estava ansioso, cansado, dirigindo há quase 24 horas sem parar. Passava diante de um muro branco e via que era o cemitério do vilarejo próximo. Mais adiante, um vulto acenava pedindo carona. Ele parava, pensando que conversar com alguém o ajudaria a manter-se acordado.

Abria a porta da boléia e subia uma mulher vestida de preto, com um véu escuro sobre o rosto. Ela agradecia, e o caminhão partia de novo. O motorista ficava curioso em saber o que a mulher fazia ali àquela hora, mas como ela ficava em silêncio ele não conseguia encaixar uma pergunta. A mulher pousava as mãos sobre a saia, e, olhando com um rabo de olho, ele via, horrorizado, que as mãos dela estavam cheias de cortes profundos, feitos com faca, cheios de sangue coagulado. Ele se assustava e dizia: “Meu Deus! Dona, quem foi que fez isso com as suas mãos?!” E a mulher se virava para ele, afastava o véu e dizia: “Foi você!!!”

O detalhe é que nesse ponto a pessoa que narrava a história gritava a plenos pulmões. Rapaz, era um susto que eu vou te contar. Depois de criar o clima com meia-luz e voz baixa, esse grito, vindo de repente, era um teste cardíaco pra qualquer um. Vi variantes dessa história, e a que contei é a primeira de todas, que ouvi quando tinha uns dez anos.

Muito bem. Folheando aqui o meu Oxford Companion to Children’s Literature (editado por Humphrey Carpenter & Mari Prichard, 1984) achei uma observação interessante no verbete “Little Red Riding-Hood”, que outra não é senão nossa conhecida Chapeuzinho Vermelho. A versão mais antiga dessa história foi recolhida por Charles Perrault em seus Contes de ma mère l’Oye, de 1697. No manuscrito de Perrault para essa coletânea (escrito em 1695), junto à história de Chapeuzinho há uma nota à margem do trecho em que a menina pergunta ao Lobo para que servem aqueles olhos, orelhas, etc., até a boca, que ele responde: “Pra te comer!”.

Dizem os autores: “Na margem do manuscrito há uma anotação para o contador da história, instruindo-o a dizer essa palavras (do Lobo) numa voz muito alta, para amedrontar a criança, como se o Lobo fosse devorá-la. A história, em outras palavras, é um jogo, que termina com o contador fingindo avançar sobre o ouvinte.” O mais interessante é que a história e o jogo (ou o susto) acabaram se despregando um do outro, porque ao que eu saiba ninguém conta a história de Chapeuzinho com essa finalidade, nem a história termina mais aí. Mas o recurso do susto deve estar presente em muitas outras tradições da narrativa oral.









1723) Vontade de ser artista (19.9.2008)




(Roald Dahl)

Roald Dahl tem um conto, “Mr. Botibol” sobre um personagem que busca em vão se integrar ao mundo. 

Mr. Botibol é rico, mas fracassado. Para começo de conversa, é um sujeito fisicamente repulsivo: alto, magro, cabeça disforme, sem ombros, “parecia um aspargo” vestindo terno e gravata. Tem um sentimento de profunda insegurança. 

O conto se abre mostrando um almoço dele com um possível comprador da empresa que ele herdou do pai. O comprador havia feito uma proposta inicial modesta, apenas para mostrar que estava interessado e abrir as negociações. Estaria disposto a pagar até três vezes aquele valor. Quando os dois se encontram no restaurante, Mr. Botibol, tímido, nervoso, atrapalhado, abre a conversa dizendo que aceita a proposta. Como ocorre com todo tímido, disputar contra a vontade alheia lhe produz uma sensação de imenso desconforto.

A questão é que o comprador, animado pelo sucesso, abre uma garrafa de vinho e pela primeira vez na vida Mr. Botibol se deixa inebriar pelos vapores de Baco. Volta para casa cambaleante mas eufórico, e, como é um apreciador de música clássica, põe no fonógrafo um disco sinfônico qualquer, para dar vazão àquela sensação inédita de bem estar. 

E logo ele se flagra a si mesmo de pé no meio da sala (ele mora sozinho, com um velho mordomo), regendo a sinfonia, e sente-se transportado, como nunca o sentira, para o mundo glorioso da Arte.

Para encurtar a conversa, Mr. Botibol manda construir em casa um auditório, um palco, uma bancada para maestro e um engenhoso sistema gramofônico onde os discos são substituídos sem que a sinfonia seja interrompida. 

Depois, ele compra um piano de cauda e o instala no palco, tomando o cuidado de fazer com que as teclas sejam emudecidas, para que ele possa fingir que está tocando, sem produzir som algum. 

E daí em diante, Mr. Botibol passa a tomar uma garrafa de vinho no jantar e em seguida subir ao pódio de maestro (sob os aplausos ensurdecedores de um disco de efeitos sonoros) e imaginar que está regendo, toda noite, uma sinfonia diferente. Até o dia em que...

Bom, o final da história é menos importante, aqui, que sua premissa. O que Dahl nos mostra em seu conto é o protótipo de uma multidão gigantesca que há no mundo: os “artisticamente prejudicados”, para imitar o jargão atual. Pessoas que têm sensibilidade para as coisas da arte (no caso, a música clássica) mas a quem falta o estudo e o treino necessários para praticá-la. 

Eu me identifico com Mr. Botibol porque em termos de partitura não distingo um dó de um ré, mas ainda assim sou capaz de escutar música erudita (uma dessas bem melódicas e acessíveis – um Tchaikóvski, um Mozart) e imaginar que a estou regendo ou que a estou tocando. É mais ou menos o que faz os adolescentes de hoje se amarrarem em jogos como Guitar Hero, em que você preme os botões do console e imagina que é Santana, Jimmy Page ou Jimi Hendrix fazendo aquele solo de rachar o céu em duas bandas.






1722) O massacre do apontador de lápis (18.9.2008)



Entre as muitas coisas que coleciono estão as notícias sobre a paranóia anti-terrorista nos EUA. O anti-terrorismo norte-americano trabalha em duas frentes simultâneas. A Frente Externa procura e combate os terroristas de fora, como os islâmicos da Al-Qaeda, responsáveis por atentados como o do World Trade Center. A Frente Interna combate o terrorismo apolítico dos próprios norte-americanos, cuja melhor expressão são os massacres inexplicáveis – um veterano do Vietnam que entra numa lanchonete e fuzila vinte pessoas, ou, mais tipicamente, um estudante que invade um prédio escolar e sai matando quem encontra pela frente. Até hoje não sei qual dos dois é mais absurdo, qual é mais perigoso, qual é mais invencível (pelo menos com as técnicas adotadas até agora).

O mais recente episódio na Frente Interna ocorreu em Hilton Head Island, na Carolina do Sul. Um estudante de dez anos foi visto pela professora segurando uma lâmina de metal. A professora chamou a supervisora. A supervisora chamou a polícia e avisou a mãe do suspeito. Todos se reuniram para investigar o incidente. O suspeito afirmou que, na véspera, a lâmina do seu apontador de lápis tinha quebrado, e ele resolveu trazer o pedaço, com cerca de 2 centímetros, para fazer a ponta do lápis durante a aula. A supervisora admitiu para o policial que o suspeito era um bom aluno e nunca havia se envolvido em qualquer incidente. Revistando a mochila do suspeito, o policial encontrou um pedaço de lápis com aproximadamente 2 centímetros e meio de comprimento, cuja ponta parecia ter sido feita recentemente. O policial registrou em seu relatório que a reação do suspeito (choro) deixava claro que ele compreendia a gravidade de trazer para o ambiente escolar qualquer objeto que pudesse se assemelhar a uma arma.

Pelo relatório do policial (que pode ser lido aqui: http://www.boingboing.net/2008/09/12/fourth-grader-suspen.html) julgo perceber o quanto ele procura levar o caso a sério para tranqüilizar a professora e a supervisora. Quanto a estas duas, espero não ser chamado de machista se achar que são apenas duas mulheres à beira de um ataque de nervos. Não é machismo. O mundo está cheio também de machões à beira de um ataque de nervos, por motivos ainda mais insignificantes do que este. E o mais patético é que nem mesmo esse clima kafkeano criado por pessoas super-zelosas e sem o menor bom-senso consegue evitar massacres como o da Virginia Tech.

É muito mais fácil pegar um inocente inofensivo do que um psicopata mal-intencionado. O excesso de vigilância acaba infernizando e enlouquecendo os 90% de inocentes, pegando em sua malha fina uns 9% de indivíduos problemáticos (e evitando os problemas que causariam) mas raramente consegue captar o 1% de sujeitos que saem de casa armados dos pés a cabeça, executando uma estratégia longamente planejada. Cabe às autoridades e à população decidir se essa relação custo-benefício interessa ou não.

1721) Machado: As Esperanças Decrescentes (17.9.2008)




(Machado, por Novaes)

Cada autor tem suas figuras de linguagem preferidas, às quais recorre, depois de certo tempo, quase inconscientemente. O estilo é um conjunto de cacoetes que criam um perfil reconhecível. 

Machado de Assis injeta nos seus personagens alguns gestos mentais a que eles se entregam como um sujeito que tem um tique nervoso e esquece que o tem.

Nas Memórias Póstumas... (na página intitulada “Ao leitor”), Brás Cubas nos dá a medida da sua oscilação permanente entre um Desejo autocomplacente e uma anêmica Vontade. Diz ele: 

“Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco.” 

 Assim é Brás Cubas. Tem intenções ousadas, mas, depois de dissipada a adrenalina do arroubo inicial, elas vão se conformando, resignadas, às dimensões que lhes impõe a realidade. 

Brás imagina-se grandioso, arrebatador, mas o fato de imaginar-se, curiosamente, basta-lhe. O grande gesto da intenção vai sendo diluído em miúdos pela vida real, porque o que mais lhe interessa é satisfazer sua fantasia íntima de rapaz mimado.

E há o episódio do almocreve (Cap. XXI). O jumento que ele monta espanta-se, ameaça disparar; Brás despenca da sela com o pé preso ao estribo, e ai dele se não fosse um almocreve que detém e subjuga o animal. 

Recuperado, Brás agradece ao salvador e delibera, intimamente, dar-lhe três das cinco moedas de ouro que trazia consigo. Logo pondera se não bastariam duas. Examina a roupa do benfeitor, constata que é um pobretão, e chega a tirar do bolso uma única moeda. O almocreve está de costas. Depois de uma derradeira hesitação, Brás mete-lhe na mão um cruzado de prata. Torna a agradecer, monta. 

Ao se afastar vê de longe o almocreve que gesticula, fazendo-lhe grandes cortesias, e pensa por fim que o outro foi apenas um instrumento da Providência, que estava lá por acaso, que não lhe coube mérito algum... E: 

“Fiquei desconsolado com esta reflexão, chamei-me pródigo, lancei o cruzado à conta das minhas dissipações antigas; tive (por que não direi tudo?) tive remorsos”.

Depois do arroubo inicial, tudo decresce, tudo míngua, tudo se conforma à prudente mesquinhez do nosso herói. 

E não há como não ver nisto um eco do “serrote” que protagoniza o conto “O Empréstimo” (Papéis Avulsos, 1882), um tal Custódio, que “nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho”. É um pedidor. Aquele da piada: “É colírio? Pinga aqui...” 

Nas seis páginas perfeitas deste conto, Custódio assedia o tabelião Vaz Nunes por cinco contos de réis, que caem depois para quinhentos mil réis, e para duzentos, para cem, para vinte... No fim do conto, Custódio morde cinco mil réis de Vaz Nunes, e sai de rua afora, “pisando rijo, encarando fraternalmente os ingleses do comércio”.