(Roy Andersson, About Endlessness)
A literatura da imaginação, que abarca muitos gêneros
editoriais (o fantástico, a ficção científica, o horror sobrenatural, o realismo
mágico, a ficção absurdista, etc.) depende tanto da imaginação do leitor quanto
da imaginação do autor.
De nada adianta um romancista executar piruetas e
acrobacias do pensamento se ele não conta com um leitor capaz não apenas de
acompanhá-lo nesses voos, mas de ter prazer com isto.
No caso da ficção científica, é preciso lembrar que a
ficção não pede emprestada à ciência apenas a disciplina, o amor pela exatidão,
o raciocínio rigoroso. Tudo isto pode vir no pacote, mas haverá sempre uma
lacuna se não vier também a fascinação pelo mistério e pelo desconhecido, o
prazer pela aventura mental, a busca do conhecimento, a aceitação do real mesmo
quando ele parece absurdo. Tudo isto é também da essência do conhecimento
científico.
Richard Feynman, um dos cientistas de cabeça mais aberta
que já existiram, dizia:
Eu não me sinto amedrontado pelo fato de não saber alguma coisa, pelo
fato de estar perdido num universo misterioso, sem sentido, que é o que de fato
acontece, pelo menos do meu ponto de vista. Pode ser que seja assim. Isso não
me amedronta.
Sem mistério não há possibilidade de descoberta. A
ciência não é apenas a propensão a ensinar, é a disposição para aprender. O
verdadeiro cientista sempre começa dizendo: “Não sei, e isto me dá vontade de
saber.”
Ray Bradbury colocou no seu clássico As Crônicas Marcianas (1950) esta epígrafe:
É bom renovar nossa capacidade de assombro, disse o filósofo. A era
espacial nos transformou em crianças novamente.
Essa capacidade de assombro é o que caracteriza tanto o
cientista quanto o ficcionista. Conta-se que Galileu Galilei, ainda bem jovem,
foi desprezado por uma namorada e decidiu, como todo jovem, atirar-se no rio
para matá-la de remorso. Ao se debruçar na ponte, criando coragem para o salto
final, ele ficou observando os objetos que desciam arrastados pela correnteza,
e percebeu que objetos de formato diferente desciam lado a lado, mas com
velocidades diferentes. Por quê?...
Foi o que bastou para ele esquecer o suicídio, a
namorada, e correr para casa para esboçar o cálculo matemático daquele
movimento.
Este episódio é verdadeiro? Pouco importa (está no
capítulo inicial de A Vida de Galileu,
de Zsolt Harsányi). É verdadeiro, mesmo que seja ficção, e pode nos ensinar
tanto quanto um romance de Tolstoi ou de Graciliano. É uma experiência humana,
em forma de ficção. A boa ficção não precisa ser verdade “lá fora”, desde que
seja verdadeira “aqui dentro”.
George R. R. Martin, o criador de Game of Thrones, começou sua carreira literária como autor de
ficção científica, que para ele cumpre uma função muito semelhante à da
literatura de fantasia, embora com outros recursos.
A FC é a nova fantasia. A fantasia mítica, tradicional, preenchia uma
necessidade de maravilhamento por parte do leitor, uma necessidade de
estranheza, de algo que a ficção realista comum não podia lhe dar. Historicamente,
ela usava lendas como as dos fantasmas e dos elfos, deuses pagãos com os quais
convivemos por milhares de anos, e nos quais as pessoas acreditavam pra valer.
(Locus, dezembro de 2000, trad. BT)
O desenvolvimento da ciência e da filosofia foi de certa
forma “encurtando” nosso mundo mental, tornando-o mais próximo, mais nítido e
mais explicável, mas por outro lado bem menor que o mundo imaginativo da
Antiguidade. Esse processo não parou até agora. Ganhamos de um lado – a Ciência
nos permite manipular a Natureza – mas perdemos por outro, o lado imaginativo e
simbólico.
Tenho a impressão de que perdemos nossa capacidade de assombro. Antes,
havia as Sete Maravilhas do Mundo. Você podia viajar e contemplar uma dessas
coisas capazes de produzir deslumbramento, espanto. O mundo em que vivemos hoje
não tem Sete Maravilhas. Se você parar pra pensar, vai perceber que temos um
milhão de maravilhas: edifícios, monumentos... Está tudo ao nosso redor, mas
não nos afeta. E por isso começamos a sonhar sonhos cada vez mais espantosos. E
criamos artefatos como o Ringworld. (idem)
Martin se refere ao ciclo de romances de Larry Niven
sobre o “Ringworld”, uma construção gigantesca que a Humanidade descobre em
nossa galáxia: um anel artificial, metálico, com cerca de 300 milhões de
quilômetros de diâmetro, tendo ao centro um sol. A FC está cheia dessas
“macroestruturas” ou “grandes objetos mudos” cujas meras dimensões causam
tontura.
Um balanço dessas misteriosas maravilhas artificiais está
aqui:
https://sf-encyclopedia.com/entry/macrostructures
Um aspecto interessante de toda a gigantesca aventura
humana na conquista do espaço (o avião, o foguete, os satélites artificiais, o
pouso na Lua, os super-telescópios, a Estação Espacial em órbita, etc.) é que as
descobertas da ciência são pautadas pela imaginação da literatura. É frequente
alguém observar que o escritor A ou B se equivocou nos detalhes técnicos de seu
romance espacial escrito há meio século ou mais. Essa crítica esquece que cabe
à literatura a imaginação em larga escala, não a profecia do detalhe técnico. O
voo espacial é um problema imaginado por escritores e resolvido por cientistas.
Dizia o Padre António Vieira:
"Dizem os filósofos que a admiração é filha da ignorância e mãe da
ciência. Filha da ignorância, porque ninguém se admira senão das coisas que
ignora, principalmente se são grandes; e mãe da ciência, porque, admirados os
homens das mesmas coisas que ignoram, inquirem e investigam as causas delas até
as alcançar, e isto é o que se chama ciência. Como filha da ignorância, me
ensinará a mesma admiração a perguntar; e como mãe da ciência, a responder,
posto que tão alta seja a segunda parte, como profunda a primeira. "
(Padre António Vieira)
A literatura pauta a ciência, não por um processo
organizado e metódico, mas porque ma imaginação dos escritores VALE TUDO. Ela parte
ao mesmo tempo em todas as direções possíveis, excita a imaginação de leitores
jovens, e são alguns destes que no futuro se tornarão cientistas e se dedicarão
a tornar real um ou outro detalhe (quando este é factível, realizável) do que
era apenas uma aventura fantástica.
Nem tudo pode virar ciência. O foguete e a viagem à Lua
foram concretizados. A máquina do tempo e a teleportagem instantânea talvez
nunca o sejam. (Sou cético – aposto que nunca existirão.) O que de fato se realiza, porém, deve
igualmente à imaginação de uns e ao senso prático dos que vieram depois.
Tanto o cientista quanto o ficcionista devem ser capazes
de se assustar com o mundo. Um susto que se transforma em interrogação, a
interrogação em curiosidade, a curiosidade em pesquisa, a pesquisa em
descoberta.
Dizia G. K. Chesterton, em Tremendous Trifles:
O mundo nunca sofrerá uma escassez de maravilhas, e sim uma escassez de
maravilhamento. Devíamos ser capazes de nos maravilhar com as coisas
permanentes, e não com a simples exceção. Devíamos nos espantar com o sol, não
com o eclipse. Devíamos nos assombrar menos diante de um terremoto, e mais com
a própria terra. O que é maravilhoso na infância é que para as crianças tudo é
fonte de assombro. Seu mundo não é simplesmente um mundo cheio de milagres, mas
um mundo milagroso.
Essa capacidade de se maravilhar – que na ficção
científica recebeu o nome de “sense of
wonder” – não é privilégio da FC. Está presente em outros tantos poetas e
prosadores do mainstream. É aquilo
que Carlos Drummond de Andrade chamava “o sentimento do mundo”, e que ele
glosou de forma melancólica em poemas como “A Máquina do Mundo”, ecoando um
deslumbramento terrífico experimentado por Augusto dos Anjos em “As Cismas do
Destino”.
É o que fazia Guimarães Rosa, outro menino
permanentemente fascinado pelas coisas mais pequeninas da existência, dizer,
arrebatado:
Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de
meu. Ah, esta vida, às não-vezes,
é terrível bonita, horrorosamente, esta vida
é grande.
(“Grande Sertão:
Veredas”)
Sem esse susto e sem essa descoberta é possível escrever
coisas belas e importantes sobre o mundo e a vida. Mas quem passa por essas
epifanias escreve algo que é substancialmente diferente, algo que atrai um
certo tipo de leitor como se fosse um campo magnético ou gravitacional.