terça-feira, 29 de junho de 2010

2207) E não ficou nenhum (4.4.2010)




Éramos turistas de vários países, numa excursão pela Europa. Chegamos pela manhã, de trem, numa capital qualquer, todos cansados da viagem. Uns esperavam a bagagem, outros já estavam nos guichês de câmbio adquirindo moeda local, outros consultavam mapas. 

Era uma estação enorme, uma estrutura de ferro com aparência século 19. Eu comentava com o Guia que algumas estações européias eram tão bem providas de serviços, comércio, etc., que bem poderíamos conhecer apenas elas, sem o trabalho de circular pelas cidades propriamente ditas.

De súbito, alguém do grupo soltou um grito e caiu no chão. Correram várias pessoas a acudi-lo, formou-se o tumulto. Guardas se aproximaram, depois veio um médico, afobado, puxando um estetoscópio de dentro do casaco. 

Logo fomos avisados de que nosso companheiro estava morto, um ataque fulminante. Isso nos causou inquietação e transtorno. Somente à tarde conseguimos fazer check-in no hotel. 

Naquela noite, ao sairmos do restaurante, outra pessoa tombou no chão. A morte foi constatada sem demora, e uma perturbação crescente se apossou do grupo. Dormi mal, e creio que todos também.

No dia seguinte tentamos cumprir o roteiro pré-estabelecido de passeios, mas ao cruzarmos um parque uma senhora tombou nos braços do marido. Desta vez os policiais encontraram algo: um pequeno dardo, do tamanho de meio alfinete, cravado em suas costas. “Veneno”, disse um deles.

À noite nos reunimos no hotel para tentar entender o que acontecia. O Guia, um homem baixinho e metódico, estava acompanhando as investigações, e admitiu que as três mortes tinham sido assassinatos, cometidos pelo mesmo método. Um membro do nosso grupo estava eliminando os demais, cravando-lhes aqueles dardos, ou arremessando-os à distância. 

Houve uma discussão acalorada em várias línguas. Afinal, não nos conhecíamos, nada tínhamos a lucrar com a morte daqueles companheiros casuais... À saída, parei no umbral da porta, e nesse instante senti algo passar voando perto do meu rosto. Virando-me, vi o Guia empunhando uma piteira diante da boca. Meus olhos cruzaram com os seus, e ele inseriu com calma um cigarro na piteira e começou a fumá-lo. Claro que, ao me virar, percebi o pequeno dardo cravado na madeira da porta.

Convoquei ao meu quarto dois companheiros com quem me entendia melhor, para tomar alguma decisão. Quando conversávamos, um alarido brotou no corredor. Corremos para lá. Os outros membros do grupo, inclusive o Guia, estavam dominando uma mulher loura, alta, que era uma das que mais reclamavam. Eles a tinham flagrado soprando um dardo contra outra passageira, já morta no chão. 

Uma corda foi pendurada do teto; um laço foi armado às pressas. Quando ajudei a colocar seu pescoço no laço, ela conseguiu desvencilhar um braço e cravou no meu pescoço um dos seus dardos envenenados. Sabendo que meu destino estava selado, enfiei a mão no bolso e cravei-lhe no rosto um dos meus. Depois não vi mais nada.








2206) A laranja chupada (3.4.2010)



Numa entrevista recente ao “Globo”, o treinador do Santos, Dorival Júnior comentou o estado atual do nosso futebol, e fez uma comparação interessante. Disse ele que um dos problemas no atual futebol brasileiro é a ênfase excessiva dadas aos aspectos físicos e táticos do jogo, e pouca importância dada aos fundamentos técnicos. Ele lembrou o caso do vôlei brasileiro, que se tornou o melhor do mundo através de técnicos como Bernardinho e Zé Roberto Guimarães, que criaram uma filosofia de treinamento dos fundamentos básicos do jogo: recepção, passe, cortada, saque, finta, etc. Nossos times de vôlei são os melhores do mundo (ou estão consistentemente entre os melhores do mundo há 20 anos) devido a esse foco nos fundamentos. Sem fundamentos, não adianta tática, nem preparo físico, nada, nada.

O que são os fundamentos do futebol? São o drible, o passe, o chute a gol, a cabeçada a gol (os principais) e mais a matada de bola, a condução de bola, etc. Não sei como os técnicos dividem teoricamente essas coisas, mas eu divido assim: no futebol, técnica (fundamento) é tudo que envolve um jogador e a bola; tática é tudo que envolve dois ou mais jogadores e a bola. No capítulo da tática, portanto, estão aquelas coisas como a tabelinha, a triangulação, aquilo que Cláudio Coutinho chamava de “overlapping” (quando na lateral um jogador domina a bola, é ultrapassado velozmente por um companheiro e toca a bola para que este a alcance lá na frente), etc.

Nossos jogadores eram (até o tricampeonato em 1970) os melhores do mundo em técnica. Ninguém passava, driblava ou chutava melhor do que a gente. Os europeus nos sobrepujavam, quando era o caso, no preparo físico ou na esperteza tática, principalmente na marcação. Nossos jogadores eram os mais técnicos (os mais talentosos nos fundamentos) porque se criavam jogando com laranja chupada, bola de meia, bola de plástico furada, coco seco, tampa de garrafa. A variedade de movimentos musculares e de reflexos gerada por essas atividades lhes dava muito mais recursos quando se deparavam com a simplicidade de uma bola profissional, algo próximo de uma Esfera Platônica.

Mas hoje... Meus amigos, assistir qualquer campeonato estadual, ou mesmo o Brasileiro, nos dá os mesmos calafrios de um gramático folheando um livro de poesia matuta. Os jogadores brasileiros atuais (me refiro aos dos grandes clubes, não aos do Naviraiense) levam em média cinco ou dez segundos para dominar a bola quando recebem um passe feito à distância. Isso quando o jogador que fez esse passe à distância consegue colocar a bola a menos de três metros do que vai recebê-la. Nossos chutes a gol são uma antologia de videocassetadas. Dribles? No futebol brasileiro de hoje você tira uma dúzia que sabe driblar; para os demais, driblar é rodear o zagueiro empurrando-o com o ombro. Já está na hora de jogar a garotada na rua, com uma laranja chupada, para ver se salvamos pelo menos a próxima geração.

2205) A estratégia da distração (2.4.2010)




Circula na Internet um documento atribuído ao linguista Noam Chomsky, um conhecido crítico das políticas dos EUA. Chomsky é uma espécie de Michael Moore do meio acadêmico, que investe como um tanque contra aquilo que a gente chama “o complexo industrial-financeiro-militar” do seu país. O documento que circula talvez seja apócrifo (não encontrei sinal dele em parte alguma na Net, em inglês), mas não importa. As coisas que diz ou são corretas ou são deflagradoras de um debate importante e necessário, pouco importa quem tenha sido seu autor original. O documento enumera “Dez Estratégias” usadas pelos governos atuais para impor suas políticas e manter a população sob controle, um controle ainda mais eficaz do que o das ditaduras, porque as pessoas não sabem que estão sendo controladas, e esse controle se dá de uma maneira aparentemente agradável para elas. É o que eu chamo a Ditadura do Chiclete, contraposta à Ditadura do Chicote. O primeiro item da lista diz:

“1) A estratégica da distração. O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundações de contínuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir ao público de interessar-se pelos conhecimentos essenciais, na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. “Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os outros animais (citação do texto “Armas silenciosas para guerras tranqüilas”)”.

O século XX ensinou que a melhor maneira de evitar que a população tenha acesso a determinadas informações não é proibindo essas informações. Isso foi tentado por todos, desde Hitler e Stálin até nossa ditadura brasileira; e sempre existe uma minoria sólida, atuante e incansável que acaba dando um jeito de recuperar as informações proibidas e fazê-las circular. Muito melhor do que proibir é diluir. Em vez de proibir a obra perigosa de Fulano ou Sicrano, basta estimular a produção de obras de cem Beltranos (que dizem coisas parecidas, mas inócuas) e usá-las para fazer submergir as idéias indesejáveis.

O melhor lugar para esconder uma agulha não é num palheiro, é num agulheiro. Proibir a obra de alguém significa lançar sobre essa obra e esse autor os poderosos holofotes da atenção do Poder. Melhor aparentar desprezo por essa obra, e voltar os holofotes em outra direção. É possível até ceder a esses autores incômodos uma rádio, um canal de TV a cabo, com a garantia de que eles estarão diluídos no meio de 200 rádios e 200 canais dizendo coisas mais chamativas, mais sensacionais, menos problemáticas.



2204) O matemático e as baratas (1.4.2010)



(Grigory Perelman)

Tudo quanto é jornal e websaite está dando notas a respeito de Grigory Perelman, um matemático russo de 44 anos. Ele recusou um prêmio de um milhão de dólares por ter resolvido um problema dificílimo que tirava o sono dos matemáticos há mais de cem anos. A celeuma é ainda maior quando se revela que Perelman não é um cara rico que não precisa dessa grana, pelo contrário. 

Uma vizinha do cidadão afirmou à imprensa: 

“Ele tem apenas uma mesa, um banquinho e uma cama com um lençol sujo que foi deixado ali pelos antigos donos – uns bêbados que venderam o apartamento para ele. Estamos tentando acabar com as baratas nesse quarteirão, mas elas se escondem na casa dele.” 

O mundo da Alta Matemática é um pouco como o da Poesia Surrealista: abandonai todo o senso comum, ó vós que entrais. Perelman conseguiu resolver um problema chamado “a Conjetura de Poincaré”, por ter sido formulado pelo grande Henri Poincaré (1854-1912). Não discutirei aqui as sutilezas do problema, basta-me citar a descrição que está na Wikipédia. 

Poincaré supôs (sem poder provar) que “qualquer variedade tridimensional fechada e com grupo fundamental trivial é homeomorfa a uma esfera tridimensional”. Ele supôs, mas não encontrou um meio de provar, e desde então os matemáticos vinham quebrando a cabeça atrás dessa prova. 

Perelman, em suas noites insones tendo como ruído de fundo o ciciar das baratas, conseguiu. Ofereceram-lhe o milhão de dólares do prêmio proposto, e ele declinou: “Obrigado, já tenho tudo do que preciso, não quero ficar em exibição como um bicho num Jardim Zoológico”. E bateu a porta. 

Há um filme brilhante e pouco conhecido que nos mostra por dentro o mundo desses indivíduos: Pi, de Darren Aronofsky. Foi feito com uma merreca, por uma equipe de uma dúzia de pessoas, pelas ruas de Nova York, filmando em preto-e-branco com uma camarazinha qualquer. 


O filme conta a história de um matemático que embarca numa viagem delirante de cálculos em busca do conhecimento matemático terminal. Pode ser encontrado nas locadoras ou na Internet, e vê-lo nos ajuda a entender quem são esses caras. 

A Matemática é algo como uma droga poderosa. É um estado alterado de consciência que, se não for tratado com cuidado, pode engolfar a consciência por inteiro. Todo mundo sabe dos “idiots savants”, aquele sujeitos retardados, incapazes de falar direito, de entender coisas minimamente simples, às vezes incapazes de cuidarem de si próprios, mas que conseguem fazer cálculos mentais gigantescos em alguns segundos. 

O grande matemático como Perelman é uma versão atenuada disto. Sua mente processa dados e fórmulas sem parar e não pode dedicar espaço para ações triviais como ir ao supermercado ou trocar de cuecas. Indivíduos assim deveriam ser financiados pelo Estado e viver numa espécie de retiro, apenas trabalhando, pensando, resolvendo conjeturas abstratas. Se o Estado sustenta criminosos num presídio, por que não sustentaria um matemático?