A nova tradução de A Metamorfose de Franz Kafka para o inglês já vem cercada daquelas discussões de minúcias que muitos leitores desdenham, mas quem traduz é capaz de passar ali a noite inteira. Isso se torna ainda mais interessante quando o original vem numa língua que a gente não conhece, como é o caso, pois Kafka, apesar de tcheco, escreveu sua obra literária em alemão.
A dificuldade tradutória já começa no título: Die
Verwandlung, em alemão, não sugere uma mudança natural de estado como acontece
com o termo inglês (e português) “metamorfose”. Não é algo espontâneo e/ou
inevitável. É uma mudança inesperada. A
tradução de Susan Bernofsky é discutida nestes termos numa resenha de Rebecca
Schuman na revista Slate (aqui: http://slate.me/1kqDJIq),
onde a jornalista afirma que “Bernofsky chega tantalizantemente próxima de
fazer o que nenhum tradutor conseguiu até hoje: obter uma tradução aproximada
da 19a. palavra do texto, ‘Ungeziefer’.”
O x do problema está nesse bendito Ungeziefer. Kafka começa assim: “Als Gregor Samsa eines
Morgens aus unruhigen Träumen erwachte, fand er sich in seinem Bett zu einem
ungeheueren Ungeziefer verwandelt.”
“Quando Gregor Samsa despertou, certa
manhã, de um sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa
espécie monstruosa de inseto."
Na tradução inglesa de David Wyllie, isto vira: “One morning, when
Gregor Samsa woke from troubled dreams, he found himself transformed in his bed
into a horrible vermin.”
E a tradução
de Bernofsky, agora, diz: “When Gregor Samsa woke one morning from troubled
dreams, he found himself transformed right there in his bed into some sort
of monstrous insect.”
Para a tradutora, a expressão “uma espécie de” (some sort
of), ausente no original, sinaliza a falta de especificidade, proposital, de
Kafka. Samsa não vira barata, como se diz por aí. Kafka não usou as palavras
alemãs para inseto, percevejo, besouro ou barata (Insekt, Wanze, Käfer,
Kakerlak). “Ungeziefer” designa em
Médio Alto Alemão, “criatura imprópria para sacrifício”, criatura impura,
repulsiva, não-bem-vinda numa casa. Modernamente acabou sendo identificada com
pragas domésticas, insetos de muitas pernas. É um termo não-específico, daí
Bernofsky usar “uma espécie de”, que não aparece no original. (E que vem num
contraste com o categórico “right there in his bed”, “bem ali na sua cama”).