domingo, 13 de fevereiro de 2011
2479) Itamardito (13.2.2011)
Itamar Assumpção recusava a pecha de Maldito. Um artista maldito é em geral um sujeito que incomoda pelo que diz, pelo que faz e pelo que é; mas ao mesmo tempo nos impede de ignorá-lo. É um elemento estranho, às vezes agressivo, às vezes provocador, que coloca em xeque não somente os valores estéticos de quem está à sua volta, mas também sua paciência e seus bons modos. O Maldito inquieta, e não pode ser deletado. É como um vírus que se recusa a ser expulso e fica por ali, perturbando, e despertando o receio de que possa, de um momento para outro, fazer o mundo acabar.
O SESC lançou ano passado a “Caixa Preta”, reunião da obra completa de Itamar, com todos os discos que lançou em vida, e trabalhos inéditos que ele estava preparando quando morreu em 2003, aos 53 anos. Ouvi muito Itamar na década de 80, quando a melhor coisa na música brasileira era a chamada Vanguarda Paulista: Itamar, Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Premeditando o Breque, Língua de Trapo e outros. Eram artistas e grupos reunidos em torno do Teatro Lira Paulistana, de saudosa memória, que ficava em frente à Praça Benedito Calixto, em Pinheiros. (E onde eu, Fuba e Tadeu Mathias realizamos show memoráveis há 30 anos, mas aí é outra história).
A Vanguarda Paulista foi o momento mais Frank Zappa da música brasileira. Algo desse espírito semi-erudito, semi-jazzístico, semi-dadaísta subsiste hoje na obra de Tom Zé e Jards Macalé (parceiros eventuais de Itamar). Um teste prático para saber o grau de novidade de uma música é colocar o disco como fundo musical para uma conversa entre amigos, numa sala, bebendo cerveja e batendo papo. Alguns tipos de música se prestam a servir como pano de fundo para nossas conversas, produzindo um som agradável e impregnando aquele momento de um tom emocional qualquer. Não tem nada a ver com qualidade. Pode ser um jazz, uma MPB tradicional, uma sinfonia orquestral, uma bossa nova; qualquer uma pode servir como sonoridade secundária, porque não atrapalha a nossa conversa.
Na maioria das canções de Itamar, esse encanto é impossível de manter. A música quebra o tempo todo, não tem uma continuidade rítmica que possa embalar nossos pensamentos e dispensar nossa atenção. A toda hora tem um breque! A toda hora parece que os músicos se desentenderam e resolveram dar uma parada para acertar as diferenças batendo boca. E é uma música atonal, que não segue melodias fáceis, uma música que “não é bonita” e parece estar desafinando aqui, acolá.
Não, não está, mas essa estranheza fez as platéias do começo da Bossa Nova, acostumadas ao bolero e ao samba-canção, acharem que João Gilberto estava desafinando quando cantava “Samba de uma Nota Só”. Não estava. As melodias e harmonias que a Bossa Nova propunha foram sendo entendidas e assimiladas, e se transformaram num novo padrão. Não incomodam mais, e servem de trilha sonora aos nossos saraus, ouvidas por todos, escutadas por ninguém, invisíveis como o padrão geométrico do tapete que pisamos.
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