domingo, 31 de março de 2013

3148) Apartamento 505 (31.3.2013)




(by Alex Howitt)


Ela era uma das três supervisoras trazidas pelo cara que assumiu a direção do nosso Laboratório. Depois das denúncias, dos escândalos, das prisões, o governo precisava demonstrar mão firme e investigar aquela história até o fim.  Nós, que trabalhávamos na parte burocrática e jurídica, tínhamos na verdade uma noção muito vaga do que acontecia nos andares superiores, onde nunca subíamos. De qualquer modo, não era da nossa conta. A ordem que o Interventor nos deu foi continuar trabalhando normalmente, e ficar à disposição deles para explicar qualquer assunto.

Eu e ela passamos um pente fino num complicado vai e vem de material biológico em contêiners, com alguns países; uma espécie de mala direta semanal com amostras, culturas, etc.  Isso nos aproximou, porque eu, que evidentemente não tinha nada a esconder, mostrei-lhe todas as faturas, notas fiscais, guias de importação, etc., tudo rigorosamente em dia. Ela começou a brincar dizendo que aquilo estava tão certinho que devia estar escondendo alguma coisa. Eu fiz uma cara meditativa e ponderei: “Talvez eles quisessem que este lado aqui estivesse 100% em ordem, para que ninguém viesse a voltar a atenção para aqui”. “É bem possível”, disse ela, “aliás, por que você não me convida para jantar?”. Eu tive presença de espírito para convidar na hora.

Começamos a ir para a cama naquela mesma semana e o interessante é que o próprio trabalho começou a fluir mais rápido. O novo diretor me encarregou de assinar tudo que fosse preciso nesse setor de cheques, empenhos, valores, etc.

Dez dias depois, ela me chamou para jantar na casa dela pela primeira vez. Avenida Porthos, apartamento 505, disse ela. Era uma área nobre, mas tinha umas quebradas meio derelitas, e a Porthos era uma delas. Tranquei o carro, liguei o alarme, apressei-me até o vestíbulo. O elevador estava quebrado e tive que subir.

Quanto mais eu subia menos o prédio se parecia com o que eu tinha imaginado. No quinto andar, parei na porta com o número dela. Bem, só podia ser aquela porta mesmo. Bati, e ela abriu. Estava vestindo alguma coisa oriental meio exótica, mas que caía bem nela, como tudo, aliás. Lá dentro estava muito escuro, mas me dava a impressão de ser um lugar grande e cheio de gente, que não era possível ver devido à escuridão. A pouca luz vinha de uma espécie de mesa ou de maca, a meia distância. “Jantar à luz de velas?”, perguntei. “Tem um pouco disso”, disse ela, afastando-me para me dar passagem e depois trancar a porta, com a luz das chamas brilhando em suas luvas de látex. “Que pé direito alto tem isso aqui”, comentei, e só então percebi onde estava.




3147) O sol e o mundo (30.3.2013)



Nos livros de Monteiro Lobato em que os personagens do Picapau Amarelo voltam à Grécia da mitologia, volta e meia aparece uma discussão sobre o formato da Terra, que os garotos insistem ser redondo. Os gregos negam com veemência: “Não, a Terra não é redonda, é montanhosa.”  Há uma heterogeneidade nessa conta. Os dois termos não pertencem à mesma ordem de coisas. Dizer que a Terra é redonda é ser capaz de imaginar que a está vendo à distância, “sair de dentro de si mesmo”, de certa forma. E o homem medieval não conseguia sair de si mesmo porque se julgava habitando um Universo cujo centro era a Terra, e na Terra, ele. Para ele, o universo era uma esfera e o mundo que ele via à sua volta era apenas uma secção horizontal dessa esfera, um plano infinito se estendendo de norte a sul, de leste a oeste.


Eu seria desonesto se dissesse que esse modo de ver me é estranho. Mas isto me lembrou duas frases emblemáticas sobre o poder do homem sobre a terra, o poder do Homem sobre a Terra, e concepções cosmológicas sucessivas.

No tempo da Rainha Vitória, o auge do colonialismo cuja faceta talentosa são Kipling, Rider Haggard, Conrad, Wilde, Stevenson, etc., dizia-se do império britânico ser “aquele império onde o sol nunca se põe”.  Durante a lenta rotação da Terra sobre si mesma, ao longo de 24 horas, há sempre metade dela exposta à luz do Sol, e nessa metade havia sempre algum território, havia inclusive um considerável território, de propriedade de Sua Majestade.

Já o coronel de José Lins do Rêgo dizia: “O sol que nasce no Santa Rosa, morre no Santa Rosa.” Uma bela imagem, mas uma imagem bidimensional, de quem considera o Universo o chão retilíneo (ou montanhoso!) que se expande à sua volta, com ele no centro. Ver-se no centro de tudo dá uma sensação de poder, de importância, de fazer sentido... Temos milênios dessa fantasia grandiloquente. Não é fácil aceitar que não somos o centro do Universo.

A frase dos ingleses mostra noção tridimensional do mundo, uma presunção, já espontânea, de que a Terra gira em redor do sol.  O velho senhor de engenho, por outro lado, ainda reflete um esquema visual do mundo. Uma planta-baixa do Universo, se quisermos, onde o mundo é um chapadão em volta do qual o Sol orbita, com pontualidade absoluta. O Coronel talvez não entendesse (visualmente, tátilmente) essa imagem de que o sol jamais se põe sobre a Terra inteira. O mundo dele é (como o dos gregos em O Minotauro) uma superfície plana, onde suas posses precisam cobrir 360 graus de superfície. Um sonho grandioso, respeitável, atingível (não importa por que meios) mas, aqui pra nós, insustentável por mais de alguns séculos.



sexta-feira, 29 de março de 2013

3146) A crônica (29.3.2013)



Dizem que é um gênero que se popularizou no Brasil mais do que em outras culturas. A crônica é uma espécie de transgênico literário, um texto em prosa que flutua entre gêneros diferentes de acordo com a veneta do redator naquele dia e naquela hora. 

Muitas vezes a crônica tem algo de parábola, porque envolve pequenos fatos do cotidiano em reflexões mais amplas. Ela enriquece de significados as pequenas coisas, e numa literatura diária (de jornal), como a nossa, há mais de um século que beletristas afiam suas penas-de-ganso em temas como “uma gota de chuva”, “um grão de areia”, “a ponta de um lápis”, “um cãozinho abandonado” e assim por diante. 

Começou como uma espécie de teste de habilidade: O que você consegue dizer sobre um assunto tão limitado? E hoje já subiu de nível: O que você consegue dizer sobre isto, que já não tenha sido repetido nos últimos cento e vinte anos?

A crônica é mais subjetiva do que o ensaio ou o artigo. Cabe nela, mais do que nos outros, a presença da pessoa do autor com suas idiossincrasias, suas pequenas inclinações subjetivas, que num artigo ou num ensaio pareceriam uma intervenção excessiva do “eu”. O ensaio ou artigo precisa ter um tema central, nítido. A crônica não: pode ser o simples registro de estados de espírito sucessivos, de reflexões íntimas sem um foco central.

Algumas crônicas, mais narrativas, se aproximam ora da anedota, ora do conto. Narram uma história, mas num tom mais leve e superficial do que o autor empregaria num conto. A diferença entre conto e crônica é equivalente à diferença entre cantar e cantarolar. 

Autores como Fernando Sabino ou Luís Fernando Veríssimo trabalham geralmente nessa faixa.

Outras crônicas se aproximam do poema, ou mais precisamente do poema em prosa. São textos onde o lado “factual” se minimiza e o autor se dedica ao texto em si, com ou sem certas simetrias estruturais que remetam ainda mais a esse perfil poético. Um bom exemplo é o clássico texto de Rubem Braga, “Ai de ti, Copacabana” (1958), uma crônica com ressonâncias de poema profético do Velho Testamento.

Este texto, por exemplo, não é uma crônica. Chamo isto de artigo: um texto onde, com ou sem a presença do “eu” que narra, descreve, opina, o foco está na elucidação de uma questão intelectual precisa – no caso, a definição do que é crônica. Pouca elaboração literária, pouca “viagem mental”, pouca ligação direta com a vida pessoal do redator. 

O que não significa que o mesmo redator não possa, eventualmente, discutir o sentido do gênero “crônica” numa crônica propriamente dita. O que não se dá aqui, neste artigo de viés utilitário, prático, meramente descritivo.




quinta-feira, 28 de março de 2013

3145) O Vampiro Parasita (28.3.2013)




Falei dias atrás do Vampiro Predador, caçador implacável, de porte aristocrático e dominador, explorador de escravos. O vampiro como senhor dos destinos alheios, cruel, inabalável, como um senhor de engenho ou um coronel do sertão. 

Existe outro tipo de vampiro, entretanto, que é tão perigoso quanto este, ou talvez mais, porque enquanto estamos nos precavendo contra o primeiro acabamos sendo assaltados pelo segundo.

O Vampiro Parasita é uma criatura frágil, insegura, carente. No primeiro contato não nos causa medo, antes desperta um misto de repulsa e piedade. 

É um Penitente, e um Penitente hábil: com meia hora de conversa bem encaixada vai diluindo a repulsa na piedade ou em outros sentimentos como uma vaga simpatia, uma sensação benfazeja de que estamos “fazendo o bem a um pobre coitado”, e uma impressão de que somos infinitamente mais fortes do que ele. É o contrário. Ele é mais forte do que nós, como as baratas que são capazes de resistir até a uma explosão atômica.

O Vampiro Parasita me faz lembrar aquela parábola oriental em que um rei pergunta a um sábio qual o animal mais perigoso. O sábio responde: “Entre os animais selvagens, o tirano; entre os animais domésticos, o adulador”. São, respectivamente, o Vampiro Predador e o Vampiro Parasita. 

Este último se infiltra em nossa vida fazendo, à força de blandície e puxação de saco, com que a gente se sinta bem em sua companhia. “Vamos dar uma festa! Tem que chamar Fulano. Me divirto tanto quando ele está por perto... pobre diabo, não tem quem dê uma força a ele.”.

Por trás do seu exterior sorridente e prestativo, o Vampiro Parasita é um Gollum, uma criatura sequiosa de nossa energia vital, que ele suga com o entusiasmo de Bela Lugosi abocanhando o pescoço de uma aldeã holandesa. Ele vive grudado de mil formas a um hospedeiro, porque se largado sozinho se dissolveria, em meia hora, num montículo de matéria orgânica inaproveitável. 

É o marido encostadão que obriga a esposa a sustentar os dois. É a esposa ambiciosa que induz o marido a financiar seus delírios de consumo e badalação. É o sócio espertalhão que vai aos coquetéis políticos enquanto o outro vira noites para entregar o projeto em dia. É o amigo prestativo e fofoqueiro que enreda todo mundo numa rede de culpas, segredos, traições. É o funcionário indemissível e intragável que azeda para sempre uma repartição inteira. 

O Vampiro Parasita não faz outra coisa senão induzir você a fazer tudo por ele, para ele. Em outro rasgo de sabedoria oriental, Bertolt Brecht definiu estes dois tipos de vampiros em seu poema curtíssimo: “Escapei aos tigres. Alimentei os percevejos”.






quarta-feira, 27 de março de 2013

3144) Ficção apostólica (27.3.2013)




(Chuck Palahniuk)


Os críticos literários inventam muitos termos interessantes, mas os rótulos inventados pelos meros escritores merecem atenção. 

Chuck Palahniuk, por exemplo, ao descrever seu romance Clube da Luta (que deu origem ao filme de David Fincher, com Brad Pitt e Edward Norton), disse que se trata de ficção apostólica. O que é isso? Ele explica: “Uma história onde um apóstolo, sobrevivente, conta a história do seu herói”.

O próprio Palahniuk dá O Grande Gatsby como exemplo desse tipo de livro.  Isso é o que? É um novo gênero literário? Uma nova classificação bibliográfica? Eu diria que não. É o modo como Palahniuk, ou Fulano, ou Sicrano, organiza algumas leituras suas. 

De fato, ele tem razão. Podemos considerar todas as histórias de Sherlock Holmes não apenas como ficção policial, mas ficção apostólica, devido ao narrador (não-confiável ao extremo) que é o Dr. Watson. Um modelo recolhido nos contos de Edgar Allan Poe sobre o Cavalheiro Dupin e seu anônimo narrador e amigo.

No Clube da Luta, conta-se a história do “herói” Tyler Durden; em Rant, Palahniuk traz dezenas de narradores para compor um mosaico da vida de “Rant” Casey. 

Alguém será capaz de narrar com isenção e objetividade os feitos do heróis a quem admira? Duvido. Toda vez que vemos grandeza em algo nosso impulso irresistível é de ampliar essa grandeza. O peso, a impressão, a presença, a influência que aquilo teve enquanto acontecia. Toda ficção apostólica tem algo de delírio de grandeza; um delírio sobre a grandeza alheia, no caso.

Ficção apostólica seriam talvez os Diálogos em que Platão preservou a figura de Sócrates, que sem ele talvez tivesse escorregado para um limbo onde provavelmente estão filósofos ainda mais lúcidos do que ele, mas que não dispuseram de um taquígrafo tão dedicado. 

Temos casos de não-ficção apostólica: a Vida do Dr. Johnson contada pelas anotações de James Boswell, e o Borges de Adolfo Bioy Casares, ambos baseados em décadas de anotações minuciosas, quase diárias, sobre todo tipo de conversa ou fofoca literária.

O ciclo de livros de Carlos Castañeda sobre o mago Don Juan tem esse aspecto apostólico, até pelo lado místico do personagem retratado. Essas histórias são ficção ou relato autêntico? Nunca se saberá, mas o aspecto apostólico (alguém entreviu um personagem complexo, e trouxe algo do que assimilou) está presente. 

Pode ser um narrador deslumbrado com um super-homem, como no Odd John de Stapledon. Pode ser um apóstolo perplexo como o Ismael de Moby Dick, para quem o herói, Ahab, é o maior mistério de todos. A ficção apostólica é sempre a de alguém que sobrou no fim para contar a história.





terça-feira, 26 de março de 2013

3143) O tesouro (26.3.2013)





Quando D. Valquíria faleceu, o único filho que conseguiu viajar a Montes Claros para o enterro foi Rodrigo, o caçula.  O mais velho, Paulo, estava na Índia fazendo um mestrado em computação, e não conseguiria chegar a tempo. A do meio, Alicinha, estava saindo de uma depressão no Rio de Janeiro e teve uma recaída ao receber a notícia. Rodrigo, que por sorte era o mais prático e expedito, viajou, velou a mãe, fez o sepultamento, tomou todas as providências. Examinou sem muita saudade aqueles aposentos onde passara a infância. Sua preocupação era o destino da casa. Vendê-la e repartir o dinheiro entre os três parecia-lhe o único caminho.

Então chegou um email de Paulo lembrando-lhe o tesouro. “Mamãe dizia que havia um tesouro enterrado na parede da cozinha”, recordou ele. “Não vamos vender a casa sem verificar isto, não é mesmo?”. Rodrigo ponderou que tesouros não existem, mas que se eles três espalhassem a lenda (na qual ele não ouvia falar desde a adolescência) talvez conseguissem um preço melhor pela casa, contando com a cobiça alheia. Via correio eletrônico, ficaram dois dias avaliando o que fariam (Alicinha anunciou que qualquer coisa em que os dois concordassem ela concordaria também, mas que a deixassem em paz). Mas Paulo fincou pé. “Procure o tesouro”, insistiu.

Rodrigo (que tinha tirado uma semana de férias no emprego) tinha pressa. Dias após o enterro ele invadiu a cozinha com quatro operários. Era uma cozinha antiga, ampla, toda azulejada, com um velho fogão a lenha, enorme, e mais um fogão a gás, geladeira, despensa. Durante dois dias, arrancaram tudo, desmontaram tudo, esburacaram todas as paredes, cavaram o chão até uma profundidade de três metros, e nada. Aquela terra compacta parecia não ter sido remexida há séculos.

Quando desistiu, e estava colocando o entulho de volta, recebeu o telefonema de Tia Madalena, de 90 anos, que morava no Nordeste, perguntando-lhe o que ia fazer com a casa. “Vamos vender”, disse Rodrigo, “mas estou procurando o tal do tesouro, mesmo sabendo que não existe.” Tia Madalena suspirou. “Existe, sim, e sua mãe foi muito previdente. Ela comprou num antiquário uma coleção de azulejos portugueses e cobriu a cozinha toda. Na última avaliação, há cinco anos, o conjunto estava valendo quase cem mil reais.” Rodrigo ficou com o celular colado ao ouvido, enquanto contemplava o entulho, os operários suados empurrando terra para dentro do buraco, e a montanha de cacos de azulejos que enchia a despensa quase até o teto. “Ah, tia”, disse ele, “então se é tão pouco nem vale a pena se preocupar, melhor vender a casa do jeito que está”.



domingo, 24 de março de 2013

3142) O Vampiro Predador (24.3.2013)





O vampiro é um arquétipo múltiplo, que vai recebendo diferentes projeções conforme ressurge em cada época, em cada cultura.  Cada medo customiza o vampiro de que precisa. Se o medo, como dizem os psicólogos, é um desejo ao contrário, tem a mesma força do desejo, a mesma energia vital do desejo, a mesma dinâmica do desejo. 

Quando Bram Stoker publicou Drácula (1897), saiu catando fragmentos de folclore da Europa Oriental, da Irlanda, do Oriente. Havia precedentes literários importantes (Richard Francis Burton, John Polidori, Sheridan Le Fanu, etc.), mas há um certo consenso de que a obra de Stoker foi dentro do mito o que se chama de uma “mudança qualitativa”. O jogo inteiro foi zerado em função das novas premissas.

Numa palestra recente no evento “Noites com Vampiros” (Caixa Cultural, Rio), com Júlio França e Júlio César Jeha, discutimos algumas dessas máscaras que o vampiro usa, ou melhor dizendo rostos, porque o vampiro, sendo um mito, não tem existência física a não ser no rosto que dele enxergamos. O mito é um feixe de estímulos potentes, contraditórios, imperiosos. A experiência do mito é sempre única, intransferível, porque é a soma do estímulo (um livro, um filme, uma imagem, etc.) com a nossa resposta a ele.

O vampiro criado por Stoker acabou se encarnando num aristocrata da Europa Oriental, um trecho sempre problemático do império britânico, aquele “onde o sol nunca se punha”. A Transilvânia parece um local onde o sol nunca nasce, pelo menos na severa iconografia que o livro de Stoker inspirou. É um lugar atrasado onde se acredita em bruxas, maus-olhados e feiticeiros. 

Já a Inglaterra era a Inglaterra de Allain Quatermain, Sherlock Holmes, a Inglaterra hoje romantizada e até desmedulizada numa parte do Steampunk, que esquece o lado cruel daquele processo todo, um Casa Grande & Senzala muito mais brutal. 

A Inglaterra onde o Conde Drácula surge como um aristocrata cada vez (no cinema) mais sofisticado, mais byroniano, mais baronial, mais carismático e magnético, o nobre capaz de dar uma ordem com um simples olhar – a outro nobre.

É mais simples dizer que o poder de Drácula é o poder que a Europa já teve e com o qual sonha, com seu Impossível Retorno.  Mas numa sociedade cada vez menos aristocrática e mais propensa a mitologizar o aristocrático, Drácula tem o poder e o carisma do patrão cruel visto pelos olhos do escravo agradecido.  É a versão masculina da Ayesha de H. Rider Haggard: Aquela A Quem Devemos Obediência. O cavalheiro de olhar penetrante, o herói byroniano diante de quem todos se curvam, e se curvam com gratidão e maravilhamento.



sábado, 23 de março de 2013

3141) Dez anos (23.3.2013)





Não sou de comemorar datas. Nem mesmo meu aniversário eu comemoro. Prefiro comemorar façanhas: o lançamento de um livro, por exemplo. Aí, sim tenho a sensação de estar celebrando uma coisa concreta, real, e não uma simples coincidência aritmética. No presente caso, entretanto, acho que vale comemorar, porque as duas coisas estão juntas.

Hoje, 23 de março de 2013, completo dez anos como titular desta coluna no “Jornal da Paraíba”, para onde fui trazido, pela ordem de conversa, por Rômulo Azevedo, Luiz Carlos de Souza e Guilherme Lima. Orgulho-me de afirmar que, como bom jornalista, não faltei um dia sequer, e este é o artigo de número 3.141 (tenho todos devidamente salvos e com back-up). Além do mais, todos estão disponíveis no meu blog Mundo Fantasmo (http://mundofantasmo.blogspot.com), onde procuro postá-los diariamente, para quem se interessar. Duas coletâneas deles já foram publicadas: “A Nuvem de Hoje” (Editora Latus/UEPB, Campina Grande, 2011) e “A Arte de Olhar Diferente” (Ed. Hedra, São Paulo 2012).

Ao longo deste tempo o jornal passou por algumas reformas gráficas, e a partir de setembro de 2011 o tamanho máximo da coluna, que era de 3.000 caracteres com espaços, foi reduzido para 2.680.  De início chiei, porque para mim é mais fácil escrever muito do que escrever pouco; mas a gente se acostuma, quando tem que fazer algo todo dia. O que mais me incomodou foi o limite máximo de 21 caracteres para o título, porque muitas vezes não cabe o nome inteiro do filme ou do livro que a gente está comentando.

Me perguntam sempre: Como é que você consegue escrever um artigo por dia? Respondo dizendo que jornal é assim, tem que escrever, esteja inspirado ou não, esteja com boas idéias ou não. Às vezes a gente passa uma semana sem idéias, mas escreve. Às vezes tem seis idéias geniais antes do café da manhã, e nesse caso o melhor que faz é escrever logo todas seis e ficar com a semana pronta.

Agradeço aos leitores fiéis que acompanham esta coluna desde que ela começou, e aos outros que ganhei através do blog. Nem tudo que escrevo interessa ou agrada a todo mundo, e é bom que seja assim, para a gente não ficar esperando somente a aprovação, a concordância, o elogio. Quando eles vêm, são bem vindos e preciosos. Mas a gente não escreve para agradar, escreve para interferir, para provocar, para compartilhar, para prevenir. Escreve para deixar registrada uma informação que será importante daqui a mais dez ou vinte anos. Alguns escritores passam a vida redigindo um “Diário Íntimo”. Eu acho que vale mais a pena escrever um “Diário Público”, discutindo o que interessa a muita gente – ou pelo menos a intenção é esta.



sexta-feira, 22 de março de 2013

3140) Groucho Marx (22.3.2013)




(Groucho e seu neto Andy)


Li esse episódio no saite BoingBoing de Cory Doctorow. (Em: http://bit.ly/Y8yOeS) O autor é Andy Marx, neto de Groucho Marx, que em 1973 era estudante de cinema e costumava de vez em quando almoçar na casa do avô, em Beverly Hills. No dia em questão, estavam lá, visitando Groucho, os atores Elliot Gould e Jack Nicholson e o mímico Marcel Marceau. A certa altura, tocou o telefone e o neto foi atender. Era um cara do depósito-galpão da NBC. Eles tinham lá algumas caixas de filme em 16mm contendo os programas You Bet Your Life (1947-1961) que tinha Groucho como apresentador. “Precisamos abrir espaço no galpão, e se quiserem os rolos de filme deixaremos na sua casa. Se não, eles serão incinerados”.

Andy pediu que esperasse e foi contar ao avô, que, grouchianamente, respondeu: “Podem queimar aquela porcaria, não vale nada”. Nicholson e os outros intervieram dizendo que era importante salvar o programa, etc. E foi dada a ordem: “Tragam os rolos”. Dias depois Andy estava em casa e recebeu um telefonema do avô, furioso: “Venha ver o resultado da sua idiotice!”. Ele foi lá e viu cinco caminhões parados, e dezenas de funcionários descarregando caixas e mais caixas. Um motorista o informou de que havia 500 caixas, cada uma com 10 rolos de filme. A mansão de Groucho ficou abarrotada de caixas até o teto, numa cena que inevitavelmente parecia extraída de um filme dos irmãos Marx.

O fato é que o programa foi salvo e Andy, que tinha 20 e poucos anos, foi contratado para revisar, anotar e fichar rolo por rolo, ganhando 150 dólares por semana (“Eu teria PAGO isso a eles para poder fazer o serviço”, confessa ele.) E os programas (fui checar na Wikipedia: foram 528 episódios em 16 temporadas) foram reexibidos e hoje podem ser vistos pelo Netflix (nos EUA, pelo menos). O que conduz o autor do artigo a uma reflexão final: “Que sorte ter sido eu a atender aquele telefonema, e não meu avô”.

Muitos de nós já passamos por situações semelhantes. Eu defendo, por exemplo, que o arquivo do Diário da Borborema, ameaçado de destruição ou de expatriamento, seja mantido em Campina Grande. Mas não sei o que faria se me dissessem: “Está OK, entregaremos tudo amanhã, no seu apartamento”. O problema não é que sejamos hipócritas, é que a preservação da memória cultural, que tanto defendemos, exige espaço físico, funcionários, cuidados, climatização, manutenção. Nenhum de nós tem uma mansão para abarrotar de caixas. Sabemos apenas que essa preservação é necessária. Preservar o passado dá tanto trabalho quanto produzir o presente, e muitas vezes um dos dois é sacrificado pelo bem do outro.



quinta-feira, 21 de março de 2013

3139) Livros pirateados (21.3.2013)





Em 1907, Mark Twain estava de passagem por Londres, indo para Oxford, onde receberia um título “honoris causa”, e aproveitou para se encontrar com seu amigo Bram Stoker. Os dois conversaram sobre vários temas e Twain deu conselhos ao autor de Drácula sobre como escrever histórias fantásticas: “A única maneira de escrever histórias de bruxaria é surrupiá-las por inteiro da obra de Balzac. O francês atingiu a perfeição em um dos seus ‘Contes Drôlatiques’... conheço uma livraria no Strand onde você pode comprar uma edição pirata, reproduzida por câmera fotográfica, por apenas meia coroa”.

Esse detalhe, reproduzido na biografia de Barbara Belford (Bram Stoker, Phoenix Giant, 1996), dá uma pista da desenfreada pirataria de livros que alimentava os grandes mercados editoriais do Ocidente há cem anos. Se entendi bem, os piratas não se davam o trabalho de recompor um livro no linotipo: fotografavam a página aberta em duas, e reproduziam as imagens, certamente com um mínimo de qualidade que pelo menos permitia a leitura. Mais ou menos como a galera pirateia filmes inteiros hoje em dia levando câmaras (ou mesmo celulares) para o cinema (todo mundo já viu piratas onde se avistam as cabeças dos espectadores à frente da imagem).

Twain e Stoker já tinham sido sócios numa empreitada editorial falida do primeiro. Twain foi uma espécie de Monteiro Lobato – torrava todo o dinheiro dos seus best-sellers em empreitadas editoriais mirabolantes, que acabavam dando com os burros nágua. Em 1898, ele convenceu Stoker e seu patrão, o grande ator Henry Irving (dono do teatro Lyceum, do qual Stoker era o gerente), a comprar ações do projeto de uma máquina de composição tipográfica (o “Paige Compositor”) que concorreu com o linotipo lançado por Mergenthaler, e foi derrotada por ele.  Twain trabalhou muitos anos como tipógrafo, e era um entusiasta dos novos modos de produção gráfica – consta que a primeira obra literária que chegou à editora numa versão datilografada foi o seu Vida no Mississippi (1883).

Aliás, isto pode ter influenciado Bram Stoker a dar à máquina de escrever portátil um papel importante em Drácula (1897), pois é nela que Mina Harker escreve parte do seu diário que narra a caça ao vampiro. E um grande impulso para a popularização do romance de Stoker foi que, por causa de um detalhe técnico, Drácula sempre esteve em domínio público nos EUA desde seu lançamento. Cem anos atrás, edições piratas e direitos autorais de livros impressos eram um território tão fluido quanto é, hoje, o dos livros eletrônicos. Os sucessos desse período mostram um momento em que qualidade e venda não foram antônimos.

quarta-feira, 20 de março de 2013

3138) Clube da Barruada (20.3.2013)



Me desculpe quem tiver achado plebeu demais esse termo usado no título. Num dos clubes a que pertenço é assim que se designa colisão de veículos, quando são duas pessoas de verdade falando. Quando o cara se dirige a um público invisível ou indiferenciado, diz colisão de veículos. 

O termo completo em inglês é Party Crash, que poderia ser traduzido como “Festa da Barruada”, mas quem o está utilizando é Chuck Palahniuk, o mesmo cara que escreveu Clube da Luta, sua história mais conhecida.

Este livro é de 2007 e chama-se Rant. Numa época imprecisa, grupos de desocupados ou de aventureiros meio existencialistas passam a noite num incessante “pega” de automóveis. Cada grupo em seu carro, eles passam a noite inteira batendo uns nos outros, obedecendo a um complicado sistema de regras, penalidades e premiações simbólicas de variada natureza. Palahniuk aqui está usando parachoques como se fossem punhos, e tratando como iguais rosto humano e lataria.

A subcultura barruadeira dessa turma lembra a sensação de vício virtual produzida por algumas horas de jogar Grand Theft Auto (GTA), sacolejando por aquelas ruas tão verazes, capazes de seduzir e convencer o olho, se bem que não o corpo inteiro. 

A perseguição, em Rant, pode ter algo de Bullitt ou Operação França, pode ser algo galhofeiro e despropositado como qualquer invenção maluca dos irmãos Coen ou de Tarantino; pode mostrar a promiscuidade fria e entomológica de J. G. Ballard e de David Cronenberg no livro e no filme Crash.

Existe uma mini-humanidade completa no universos desses folguedos sobre quatro rodas, que lembram Halloween, galera que dá cavalo-de-pau na multidão.  A subcultura deles é constantemente alimentada por uma estação de rádio que descreve, com detalhes incômodos, os ferimentos sofridos pelas pessoas que acabam de sofrer acidente de carro em algum ponto da rodovia.  

Uma rádio que todos ligam, mas que, ao contrário do DJ negro em Vanishing Point de Richard Sarafian, age de forma impessoal e cuidadosamente planejada. Uma equivalente dos “Globocops” em geral, que mistura o sensacionalismo explícito dos tablóides populares e o ar sem-frescuras, direto-ao-ponto, da moça que recita as previsões da meteorologia.

Alguns personagens do livro poderiam ser chamados meteorólogos do trânsito urbano, e Palahniuk avisa que esse nicho da marginália ocupado por alguns milhares de “party crashers” surgiu de pesquisas sobre fluxo de trânsito, acidentes planejados que tornaram-se divertidos demais para que alguém os mantivesse sob controle por muito tempo.  Party Crash é apenas um dos cinco ou seis aspectos dignos de discussão em Rant.









terça-feira, 19 de março de 2013

3137) Romance e futebol (19.3.2013)




(Nelson Rodrigues)


Um espectro que nunca deixou de assombrar a crítica literária brasileira foi: Por que motivo não existe entre nós uma grande literatura de ficção (romances, contos) voltada para o futebol? Pode-se argumentar que há bons livros sobre o tema (Macedo Miranda, Edilberto Coutinho, etc.), mas é um “corpus” ainda desproporcional em relação à importância que o futebol tem em nosso país. Num post de 2010 em seu blog TodoProsa, Sérgio Rodrigues afirma: “Pois eu tenho uma pista. Nada de elitismo ou falência da arte brasileira. Aposto que o Grande Romance do Futebol Brasileiro está escondido no mesmo limbo em que dormem seus irmãos, os embriões eternos do Grande Romance do Basquete Americano, do Grande Romance da Fórmula 1 Italiana, do Grande Romance do Pingue-Pongue Chinês e do Grande Romance do Curling Escocês”.

Ou seja: é uma falácia esse raciocínio de que se um país é bom num esporte ele deveria ter uma literatura florescente voltada para esse esporte. Não é uma relação assim tão mecânica. No Brasil, o que temos de alto nível é a crônica futebolística, o que me parece lógico. Temos clubes de verdade, craques de verdade, espetáculos épicos de verdade. Quem gosta de futebol, gosta da adrenalina produzida pela disputa esportiva de verdade, entre grandes times. (Ou entre times pequenos, desde que o contexto emocional ou social dê a esse confronto uma dimensão épica qualquer.) E o que cresceu aqui no Brasil foi a literatura de não-ficção em torno desse universo real. Da crônica, que vem desde os irmãos Mário Filho e Nelson Rodrigues até os cronistas mais recentes, não temos do que nos queixar. Nossa crônica tem um alto nível literário.

O problema do romance e do conto talvez seja o mesmo do cinema. Ninguém gosta de ver num filme um jogo de futebol inventado, encenado por atores. A falsidade é evidente. Ninguém se emociona, mesmo quando um atacante dribla cinco e entra com bola e tudo. Qualquer espectador sabe que a jogada foi escrita, ensaiada e dirigida para acontecer daquele jeito, então qual é o mérito? O mérito do futebol é ser imprevisível, improvisado, sujeito a reviravoltas que não são determinadas por uma equipe roteirizadora. Numa história de ficção é dificílimo transmitir essa impressão de imprevisibilidade, de chances totalmente abertas. O futebol é familiar demais aos torcedores para que um jogo claramente escrito e coreografado possa se fazer passar pela coisa de verdade. Até um VT de quaisquer dois times pelos quais o espectador não torce é melhor, porque sabemos que, no momento da gravação, tudo aquilo estava acontecendo de verdade, tudo podia acontecer, e essa é a emoção principal do esporte.





domingo, 17 de março de 2013

3136) O medo da noite (17.3.2013)



(by Emma Dima)


Era uma cidade pequena e pacata. Vivia-se ali uma vida sem sobressaltos, mas houve uma época em que pessoas, cada vez mais numerosas, começaram a ser atacadas por surtos de insônia e medo. Deitavam-se à hora habitual mas não conseguiam adormecer. Enquanto maridos ou esposas ressonavam em paz, ao lado, esposas ou maridos retorciam-se sobre o colchão, ora de um lado, ora do outro, fitando as telhas do teto ou os traços à meia-luz da janela fechada, por onde se infiltrava um pouco da luz da rua. O sino próximo batia uma hora. Depois duas. Depois três. A madrugada avançava e as pessoas sofriam, de olhos abertos e com a mente em redemoinho. De nada adiantava a água com açúcar, o chá quente de camomila; de nada adiantava a garrafa de vinho sorvida sem prazer, o meio litro de uísque engolido como quem quer ganhar uma aposta. O sono não vinha.

Vinha a insônia, e com ela o medo da solidão, o medo da noite, o medo inexplicável daquela cidade que durante a noite parecia morta. Médicos ficavam sem ter o que receitar, esgotados todos os recursos de sua farmacopéia artesanal. Mulheres com olheiras despejavam lágrimas; homens embrutecidos pela incapacidade de dormir praguejavam, brigavam no trabalho, perdiam o emprego.

Alguns fizeram uma descoberta. Era melhor fingir que estava tudo normal e, madrugada afora, escancarar as janelas da rua, acender todas as luzes, agir como se fosse a horinha do anoitecer.  Os outros insones viam aquela única casa iluminada e saíam para a rua, levavam para a calçada suas cadeiras, sentavam-se ali e ficavam olhando aquela sala luminosa e colorida onde alguém lia um jornal ou regava flores.

A administração pública resolveu intervir; já eram muitas centenas os insones. E foi modificado o horário de funcionamento de alguns edifícios públicos: a cadeia, o hospital, o manicômio. Logo estes se revelaram ímãs poderosos para atrair o deserdados do sono. Naqueles prédios, sempre havia uma ala funcionando a todo vapor durante a madrugada, com luzes acesas, janelas escancaradas para a platéia de notívagos, por fim apaziguados, sentados no meio-fio, em banquinhos, em cadeiras de plástico de botequim, cadeiras de balanço. Trazidas de casa. Quem passasse na rua veria as pequenas multidões dos perseguidos da noite contemplando as enfermeiras que limpavam um doente, o interrogatório brutal de um ladrão de cavalos, ou as rotinas insensatas dos loucos do hospício, talvez os que aderiram com mais entusiasmo àquela reviravolta no mundo dos relógios; dormiam de dia e passavam a noite representando, conforme lhes dava na telha, a novelazinha de suas vidas para a platéia dos órfãos do sono.




sábado, 16 de março de 2013

3135) A carta misteriosa (16.3.2013)






O carteiro enfiou a correspondência por baixo da porta da rua. Quando a recolhi, lá estava o pequeno envelope branco. O endereço era o meu, mas tinha como destinatária uma mulher cujo nome não reconheci. Olhei o remetente: outro nome feminino, num endereço do interior da Bahia. Devia ser uma carta para alguma ex-inquilina da casa, onde eu morava há pouco tempo. 

Fazer o quê? Perguntar por ela à proprietária da casa, que morava na mesma rua, uns 50 metros mais acima? Colocar num envelope maior e devolver à remetente? Meu pequeno minuto de hesitação foi neutralizado pela fórmula mágica: “Depois eu resolvo”. Havia coisas mais urgentes para responder entre as cartas recolhidas embaixo da porta.

Anos depois, andei lendo um dos meus “coffee-table books”, aquele livros grandes, de capa dura e papel “couché”, que a gente bota na mesa da sala para que algum visitante chique sinta alívio, percebendo que também ali, e não só na casa dele, os livros são usados como adereços de decoração. 

Ao folhear (era um álbum de fotos do Rio de Janeiro), cai-me aos pés um envelope branco, pequeno, fechado. Examinei-o com estranheza. Era uma caligrafia feminina (era mulher, a remetente), aparentemente alguém que se alfabetizou às custas de esforço e determinação. A caligrafia era cursiva, mas cada letra surgia solta das demais, cada letra era mais desenhada do que escrita, marcando fundo o papel. 

Uma carta de uma desconhecida para outra desconhecida. Vaga lembrança. O que diabo esta carta está fazendo aqui? Como veio parar aqui? Fiquei desconcertado, larguei a carta e o livro sobre a mesa. Depois eu resolvo.

Hoje, aqui está ela pela terceira vez. Numa pasta de arquivo-morto, onde acumulo rascunhos, manuscritos, fragmentos, versões datilografadas de poemas, contos e canções que nunca chegaram a lugar nenhum. E que espero ter tempo de queimar antes de morrer, para que a posteridade não mangue de mim. 

Que diabo quer essa mulher, que não me deixa em paz? A carta continua intacta, fechada em si mesma. Seu mistério permanece virgem; o respeito (ou a indiferença) foi maior que a curiosidade. Vinte anos se passaram, já saí daquela casa, mas carrego comigo esse pequeno erro que herdei. 

Quem sabe se Dona Fulana, até hoje, espera o carteiro com a resposta. Não, Dona Fulana, sua resposta não chega. Nem mesmo a pergunta chegou. Está no cemitério das canções que não levantaram voo, dos poemas que foram interrompidos pelo mero constrangimento de estar escrevendo besteira. Se a senhora fosse escritora profissional saberia que mandar uma única carta não adianta. É preciso escrever uma carta por dia, uma carta por hora, uma carta por minuto.





sexta-feira, 15 de março de 2013

3134) Contracapa de Kobo (15.3.2013)





&  quando ele abriu o guarda-chuva desabou lá de dentro o maior toró  &  dizem que para acabar todas as guerras bastaria desativar meia dúzia de preposições  &  plantei um botão e nasceu um cabide, plantei uma ratoeira e nasceu um Banco 24 Horas  &  um dia os livros deixarão de ser assinados e serão lidos como se come uma fruta, uma coisa que ninguém fez  &  estou organizando uma máfia do bem, para fazer boas ações às escondidas  &  não existe nada mais ofensivo do que ser considerado um cara inofensivo  &  um dia consiste em seis horas de treva, doze de luz, e seis de treva de novo  &  do jeito que a coisa vai, os shoppings vão começar a cobrar pedágio em escada rolante  &  um marca-passo para o cérebro não seria má idéia  &  confessionários com alçapões, cuja mola o padre aperta se o pecado é muito feio  &  um dia, não existirá na superfície da Terra outra coisa senão oceanos e cidades  &  uma câmara de vigilância em cada esquina, em cada portaria, em cada porta, em cada testa  &  não ganho nada em falar mal da velhice, uma vez que é para lá que estou indo  &  ter a humildade de um PhD que se dedica a estudar helmintos  &  quando a gente finalmente entende uma coisa, quer dizer que ela acabou  &  na dúvida, grite: “você não passa de um lamelibrânquio!”, e saia correndo  &  não é a outra volta do parafuso, é o último aperto do garrote vil  &  tem político tratando cartão de crédito como se fosse o controle remoto de Deus  &  melhor fechar essa janela e pintar outra paisagem pelo lado de dentro  &  a boa pergunta já mostra a direção da resposta  &  toda dança ou é uma sublimação do sexo ou é uma preparação para ele  &   se o mundo fosse um lugar justo, choveriam bigornas de vez em quando  &  este livro deveria se intitular “Melhores Momentos de um Naufrágio a Longo Prazo”  &  quando o telefone toca, tanto pode ser a ressurreição quanto a guilhotina  &  toda estatística é uma foto desfocada de uma situação  &  estoicismo não é apenas suportar a dor, é também menosprezar o prazer  &  a vida é um suicídio a prestações auto-renováveis  &  tem sujeito tão burro que uma lobotomia o deixaria mais inteligente  &  quem esquece o seu passado está condenado a nunca sair dele  &  a arte de criar passarinhos em gaiolas abertas  &  houve um tempo em que sacolejar em carruagem era o ponto alto do conforto  &  nunca é cedo demais para dormir até mais tarde  &  se eu tivesse um milhão de dólares, ficaria motivado apenas a ganhar o meu próximo milhão de dólares  &  enquanto a banda tocar é sinal que o navio ainda não afundou  &  o melhor lugar para se esconder da polícia é na cadeia  & 



quinta-feira, 14 de março de 2013

3133) Drummond: "Música" (14.3.2013)




Carlos Drummond de Andrade dedicou a seu amigo Pedro Nava este poemazinho de Alguma Poesia, seu livro de estréia em 1930.  É um poema de época, flash de um tempo em que as casas tinham um piano na sala, para que as moçoilas exibissem seus dotes às visitas, após a ceia. Fazia parte nos namoros daquele tempo esse momento ao piano, em que sensibilidade, refinamento, traquejo social e outras qualidades eram aferidas ao som de um Noturno ou de uma Polonaise. Machado, no “Memorial de Aires”, tem belas páginas em que o  Conselheiro Aires observa o namoro de dois jovens durante essas sessões pianísticas.

O poema de Drummond, “Música”, diz: “Uma coisa triste no fundo da sala. / Me disseram que era Chopin. / A mulher de braços redondos que nem coxas / martelava na dentadura dura / sob o lustre complacente.”  O traço mais notável aí é uma certa rudeza nos símiles – os braços parecem coxas, o teclado é comparado a uma dentadura. Isto já condiz com a inapetência do narrador para com essa música que desde o início ele considera “uma coisa triste”, sem sequer chamar de música.

E ele prossegue: “Eu considerei as contas que preciso pagar, / os passos que era preciso dar, / as dificuldades... / Enquadrei o Chopin na minha tristeza / e na dentadura amarela e preta / meus cuidados voaram como borboletas.”  Na obra de Drummond, a criação artística redime tudo, recupera tudo. O Chopin deste poeminha é primo legítimo das canções que ele enumera em “A música barata”: “Paloma, Violetera, Feuilles Mortes, / Saudades de Matão e de mais quem? / A música barata me visita / e me conduz / para um pobre nirvana à minha imagem”.  Como acontece com o protagonista de “A Náusea” de Sartre, que em plena crise de bad-trip existencialista deixa-se resgatar de volta para o mundo e a vida através de um blues cantado por uma negra; “Some of these days / you’ll miss me honey...”.

No começo de século em que viveram esses escritores a música barata surgia como uma possibilidade de enlevo, de êxtase acessível. Era a música capaz de arrancá-los da tristeza e da banalidade do cotidiano. Tempo em que a música era uma salvação caída do céu, e não esse martelar constante e onipresente do mundo de hoje. Pra onde a gente se vire, há uma superfície eletrônica produzindo música, e mesmo que toda essa música fosse a música de que gostamos, isto não seria uma versão requintada do inferno? Estar preso numa gaiola com um milhão de pássaros cantores? No tempo de Drummond, tanto o Chopin erudito quanto as valsinhas kitsch dos salões eram capazes de fazer as preocupações humanas partirem todas numa revoada de borboletas.

terça-feira, 12 de março de 2013

3132) Barrados no clube (13.2.2013)





(Sérgio Sampaio)



Groucho Marx, numa frase famosa, definiu num paradoxo a atitude dos marginais e rebeldes de todos os tempos: “Não quero entrar num clube que me aceite como sócio”. 

O paradoxo inicial se dá pelo fato de que o sujeito sugere que, se o clube o aceita, não pode prestar. Se o clube o aceita, não merece respeito, não é digno do seu interesse. Se o aceita, está abaixo dele, ou na melhor das hipóteses no mesmo nível dele... e nesse caso que diabo ele vai fazer num clube furreca como esse?!

Na verdade, os artistas marginais (e os marginais em geral) gostam de ser escorraçados, gostam do preconceito, gostam de ser vistos com desconfiança. 

Em seu livro sobre o marginalíssimo Sérgio Sampaio (Eu quero é botar meu bloco na rua, Ed. Língua Geral, 2009), Paulo Henriques Britto lembra que “a associação entre rock e a condição de outsider é um tema recorrente no período pós-tropicalista”, e cita a canção em inglês do disco londrino de Caetano que diz: 

“Você sente uma vaga sensação de orgulho quando lhe dizem: ‘Aqui você não pode entrar – cai fora’ – rock and roll é isso aí”. (“That’s what rock and roll is all about”).

Ser barrado na porta de alguma coisa dá a idéia de que você é considerado indigno, mas também sugere que você é considerado perigoso, é uma ameaça. 

Faz bem ao ego ser barrado. Ser perseguido produz medo, mas a adrenalina que combate esse medo é pensar que quem é perseguido é porque tem algum poder. É a fantasia compensatória de todos os “slans”, de todos os “precogs”, de todos os X-Men da FC: somos barrados porque somos uma ameaça. 

Quem é barrado é porque pode, se entrar, botar a perder o Paraíso Terrestre de alguém. Pode “desafinar o coro dos contentes”, como ameaçavam Torquato Neto e Macalé. Pode “estragar o piquenique” como garantia Paulo Leminski. Pode “invadir sua praia” como prometia ferozmente o Ultraje a Rigor.

Gilberto Gil, no “Rock do Segurança” (“O segurança me pediu o crachá / eu disse: Nada de crachá, meu chapa...”) é quem melhor cristaliza essa sensação de superioridade. O mendigo/ET barrado na porta da mansão é mais livre, mais louco, mais inteligente, mais perigoso e mais potencialmente feliz do que todos os burgueses trancafiados em sua Calle da la Providencia. 

Ser barrado quer dizer que você foi reconhecido, quer dizer que eles admitem o transtorno que você pode causar se cruzar aquela porta, como os Piratas do Tietê ou os Palhaços de Laerte. 

Ser barrado é a condecoração final para quem não quer entrar no Clube – quer ser mesmo é reconhecido como ameaça ao clube.  Até porque, como lembra Gil, “meu amigo – se eu quisesse eu entraria sem você me ver!”.










3131) "Quase Borges" (12.3.2013)




Nas suas derradeiras décadas de vida, Jorge Luís Borges viveu um tipo peculiar de celebridade. Cego, morava na companhia da mãe e de uma empregada, num apartamento confortável mas modesto. 

A TV argentina, imagino, não batia à sua porta toda semana para perguntar-lhe o que achava do hip-hop ou da crise entre judeus e palestinos. Quem o procurava eram poetas e jornalistas do mundo inteiro, que não acreditavam na própria sorte quando ele atendia pessoalmente ao telefone ou à porta, e concedia algumas horas de papo. 

Um desses felizardos foi o poeta Augusto de Campos, que em 1984 visitou o escritor e saiu de lá com anotações que redundaram num relato afetuoso e perceptivo, e na tradução de vários poemas de Borges. Tudo reunido agora em Quase Borges – 20 Transpoemas e uma Narrativa (Musa Rara / Ed. Terracota, São Paulo, 2013).

Augusto de Campos talvez seja nosso maior tradutor de poesia, e certamente um dos responsáveis pela elevação da qualidade e do rigor dessa arte entre nós. Até os que não gostam nem dele, nem de sua poesia, nem de suas posições teóricas tiram o chapéu para o modo como praticou e conceituou, para mais de uma geração, a impossível tarefa de traduzir poemas. 

Toda tradução é uma interferência, porque coloca no poema alheio coisas que não estavam lá na versão original. Toda tradução é perda, porque deixa de incluir coisas que lá estavam.  Toda tradução é distorção – troque uma vírgula, uma sílaba, uma palavra, e o poema já está dizendo outra coisa. 

Como traduzir sem ser infiel? Essa é a pedra filosofal que os tradutores procuram em vão. Um tradutor é um alquimista que muitas vezes transforma ouro em chumbo, quando seu objetivo (irônico, fantasioso, inatingível) é transformar ouro em ouro.

As grandes ousadias tradutórias de Augusto de Campos foram feitas com poetas ingleses, russos, provençais. Traduzir Borges é mais fácil, pela semelhança de cadências, sonoridades e vocabulário entre o espanhol e o português. O verso de Borges é clássico, sereno, rigorosamente rimado e metrificado. 

A tradução de Augusto procura a fidelidade ao que é dito, e admite também certas descontrações de rima, em benefício da harmonia conjunta dos versos: rimar “Homero” com “madeiro”, “coisa” com “duvidosa”, “cinza” com “pisa”. Liberdades que fariam hesitar um tradutor mais melindroso, mas que ele se permite em função da sonoridade e da naturalidade. 

A tradução, principalmente de poesia, é um jogo constante de perdas e ganhos. Augusto segue Borges de perto, e, quando interfere de modo mais rebuscado (veja-se sua solução no primeiro verso de “O Golem”) o faz preservando o tom e a intenção do original.







domingo, 10 de março de 2013

3130) Tourada (10.3.2013)





Erguem-se clarins luminosos e dourados vibrando em uníssono. Poeira cáustica como pimenta do reino. Cheiro de suor, de fumaça de cigarros, de cintos e botas de couro. As grades se erguem rangendo numa raiva de ferrugens descascadas, o peso de anos de remorso e sangue. E da escuridão brota a criatura, minotauro mutante regredido a pura fera, bufando embrutecido pelas narinas frementes, escarvando as lajes da passagem com cascos expectantes. Ele sente lá fora o bafo do mormaço ensolarado, escuta o rugido de triunfo carniceiro que o provoca; agita com raiva o pescoço, e arranca.

Massa compacta de carne, tonelada titânica, uma bala de canhão que dispara a si própria. Dois chifres sólidos como basalto, cada um deles com uma força de golpe equivalente à de um safanão de baleia azul. Por baixo deles, dois olhos miúdos de miúra enfurecido à procura de um alvo para sua última chifrada mortal. Até que ele enquadra o vulto esguio em trajes dourados, desdobrando à sua frente um borrão escarlate.

O que se segue é uma caçada, um intercurso, um balé, como um tubarão dando bote no anzol que se esquiva e negaceia. A mancha rubra da capa que se estende, se recolhe, drapeja, agita-se, roça com zombaria aquela cordilheira de músculos. O namoro entre a tempestade e o para-raios. O sol flameja cegante na espada desembainhada, uma labareda de luz pronta para fulminar.  Os gritos ficam mais ansiosos, ofensivos, como que cobrando um prazo. A lâmina. O animal. Os dois evoluem, dançam, cada qual submetido a um conjunto diferente de equações, trajetórias, impulsos, peso específico, massa inercial; pilotados em parte por si mesmos e em parte por uma inteligência esquizóide que os contrapõe um ao outro e a si mesma, como um só enxadrista que manipule as brancas e as pretas.

E de repente é como se essa mente malabarizasse não apenas os protagonistas, mas a areia, onde já esguicham os borrifos de sangue, as amuradas de madeira cobertas de cicatrizes das batalhas pretéritas, as arquibancadas repletas de figurantes de rosto indistinto vociferando em calculada desordem uma só Babel de palavrões e urros, e as cobertas de concreto, as cabines de TV, as torres dos refletores, o complexo oval de toda a arena, o bairro com uma imprevisível malha urbana, a cidade que pulsa em torno com a indiferença de um coração para com o corpo que mantém vivo.  A imagem se afasta cada vez mais, mal se vê agora o ponto cintilante da espada sanguinolenta erguida em triunfo. O menino sai clicando, desliga tudo, tira os goggles do rosto; num dos seus olhos pulsa e palpita uma besta maciça e cheia de fúria, no outro ergue-se um Zeus matador tendo na mão um raio hi-tech.



sábado, 9 de março de 2013

3129) Democracia eletrônica (9.3.2013)







Nada mais difícil do que implementar um sistema eletivo com base na opinião de todos. Os ingênuos acham que basta haver eleições para que haja, automaticamente, “democracia”, entendida aqui como a realização da vontade livre, espontânea e soberana da maioria do povo. Ledo engano, meus camaradas. E aqui está a Internet para mostrar os mecanismos que direcionam qualquer tipo de eleição. (Em tempo: não sou a favor das ditaduras. Apenas percebo que as eleições são um passo adiante, mas não são a solução do problema.)

Em 2012, o “rapper” Pitbull fez parte de uma campanha da rede de lojas Walmart. A loja que tivesse mais votos no “Curtir” do Facebook ganharia um show dele. Um jornalista de Boston lançou a campanha “Vamos exilar Pitbull”, pedindo votos para uma loja minúscula nos confins do Alasca. O saite Something Awful aderiu, e a loja, praticamente no meio do deserto, foi eleita. Pitbull teve espírito esportivo e foi fazer o show na neve, para algumas dezenas de gatos pingados. Sua vingança foi convidar publicamente o jornalista autor da idéia, que pra não dar uma de fraco teve que acompanhá-lo.

Sabotagem parecida (estou consultando o saite Cracker: http://bit.ly/VFgmho) ocorreu quando a cidade de Austin (Texas) decidiu mudar o nome do seu Departamento de Resíduos Sólidos (ou seja, do lixo). Pediu-se que a comunidade sugerisse nomes e votasse neles. O nome vencedor foi “Sociedade Fred Durst de Humanidades e Artes”, numa alusão ao polêmico vocalista da banda Limp Bizkit. Houve confusão, Durst disse que por ele tudo bem, mas a votação foi cancelada e o nome escolhido foi “Recuperação de Recursos de Austin”.

Em 2012, o Mountain Dew (refrigerante da Pepsi) lançou um concurso semelhante online para batizar uma nova linha de sabor. Houve uma imediata invasão de gozadores, através do popularíssimo saite 4chan, que sugeriram o nome “Hitler Não Fez Nada Errado” e despejaram uma cachoeira de votos online. O concurso foi cancelado.

Esses pequenos episódios mostram que qualquer votação é vulnerável a: 1) indicação de candidatos espúrios; 2) campanhas de voto anárquico. (Ou seja: tudo que for aberto ao público está aberto aos “trolls”, gozadores sempre dispostos a implantar a bagunça para se divertir). Campanhas políticas no Brasil já elegeram o rinoceronte Cacareco e o Bode Cheiroso de Jaboatão; ajudaram a eleger Clodovil, Enéas e Tiririca; reconduzem ao poder, há décadas, políticos não melhores do que estes e que são hoje Monstros Sagrados da República. O sistema eleitoral deve ser banido? Acho que não, mas poderia ser aperfeiçoado. Quanto mais abertura ele oferece, mais vulnerável fica a interferências que o deturpam.




sexta-feira, 8 de março de 2013

3128) Alvin Lee (8.3.2013)



(Alvin Lee em 1975)


Morreu dias atrás, numa cirurgia que não ficou bem esclarecida, aos 68 anos, o guitarrista Alvin Lee. Vi-o pela primeira vez no filme Woodstock, cantando (e estraçalhando com os dedos) “I’m going home by helicopter”.  Era um sujeito de cara engraçada, comprida, tocava de um jeito totalmente descontraído de quem não estava nem aí. Fazia uma coisa aqui, depois outra ali, abafava as cordas, jogava uma distorção, dedilhava nos bordões, depois vinha no pezinho do braço, testando sonoridades e escalas velocíssimas, mas – atenção – sem nunca perder o senso melódico. Tudo que fazia ao improvisar tinha uma intenção musical, não se resumia à simples rapidez acrobática.

Figura engraçada, Alvin Lee. No fim da apresentação de sua banda, o Ten Years After, em Woodstock, ovacionado pela galera, alguém se aproximou dele no palco e lhe entregou uma enorme melancia. Ele agradeceu, botou a melancia em cima do ombro, acenou para a galera, e saiu dali como se tivesse subido ao palco apenas para atender um pedido de um amigo: “Olha, sobe aí e faz 10 minutos de improviso que eu te dou uma melancia”.

Guitarra é um instrumento danado de difícil, mais difícil do que violão, porque mais cheio de recursos. (Claro que podemos dizer também: o violão é mais difícil, porque os recursos são mais limitados, é preciso criar sonoridades apenas com o que está ali.) Alvin Lee não tinha apenas a velocidade supersônica que, infelizmente, acabou se hipertrofiando no rock e deixando para trás a sonoridade. Lee é da escola dos que fazem um solo longuíssimo com a guitarra aberta em notas nítidas e cristalinas com 20% de eco e 15% de distorção, apenas o necessário para que os dedilhados velozes se alternem com longas sustentações de notas que se elevam gemendo, retorcem-se sobre si mesmas como espirais de DNA e por fim deixam-se tombar no chão sonoro, enquanto o músico dispara em outra saraivada de semicolcheias que passeiam por todos os trastes ao mesmo tempo.

A guitarra é uma deusa destrutiva, uma fêmea fatal que arranca tudo de seus sacerdotes. Nunca me interessei pelos guitarristas como pessoas; nunca li uma biografia de Eric Clapton, de Jimi Hendrix, de Jimmy Page, de B. B. King... Sou capaz de escutá-los durante horas a fio, mas dez páginas da vida deles me deixam bocejando. O que dizer então de Alvin Lee, sua mais recente vítima, cujos despojos ainda palpitam diante do altar? Que descanse em paz. A parte dele que foi entregue em sacrifício à Deusa ficará viva para sempre, o que é uma maneira melodramática de dizer que vai durar mais do que eu. Se for assim, beleza. Uma cerva gelada em homenagem a Alvin Lee.