Tenho pela obra de Marcel Proust uma admiração
incondicional e depressiva. Incondicional porque não tenho nenhuma crítica a
fazer-lhe, não tenho opiniões negativas a seu respeito. Depressiva porque é uma
obra gigantesca, que nunca li (não por falta de interesse!) e que a esta altura
do campeonato dificilmente lerei.
É como o planeta Marte. Sempre me fascinou, mas já sei
que nunca pisarei no seu chão.
São sete volumes, mais de 4.200 páginas. Interesse não
falta, mas cadê tempo e fosfato?! Não consegui até hoje encarar a leitura de coisas
muito mais “fininhas”: Infinite Jest... Dhalgren...
Stand on Zanzibar... Spangle... Cryptonomicon...
Em Busca do Tempo
Perdido é um desses clássicos tão impregnados em nossa memória-coletiva que
é possível conversar sobre ele sem ter lido. Já li extensos trechos, em obras
de crítica e técnica literária, muitos artigos de revistas, muitos depoimentos
e análises. Tenho uma idéia aproximada do conteúdo, da época, do modo verbal
inventado (?) por Marcel Proust. Não posso ter uma opinião crítica substancial;
mas dá pra navegar numa conversa com gente que conhece. E de certa forma me
identifico com ele.
Proust é abominado por algumas pessoas para quem tudo que
ele escreveu não passa de devaneio decadentista de um pseudo-aristocrata
lamentando o fim de uma época “em que todo mundo era rico, bonito, inteligente
e interessante”.
Quando escrevi o meu ABC
de Ariano Suassuna, transcrevi um comentário muito engraçado de Ariano sobre
as discussões com seus amigos do grupo do TEP, o Teatro do Estudante de
Pernambuco, todos com no máximo vinte anos. Diz Ariano:
A minha formação universitária foi lá, não foi na universidade. As
reuniões e os ensaios eram na casa do Hermilo [Borba Filho]. Era um grupo muito heterogêneo, mas todos
ligados por essa paixão pelo teatro. Eu lembro que tinha o romancista Gastão de
Holanda, que gostava muito de Gide e de Proust. Eu tinha horror. Eu o chamava
de burguês decadente: "Você não tem vergonha na cara, não? Admirar um
nojento desses!". Ele dizia: "Você é que é um imbecil! Eu quero é
Proust, uma coisa refinada!". As discussões eram desse tipo, noite
adentro.
(ABC de Ariano Suassuna, Ed. José Olympio, p. 50-51)
Anos depois, livro publicado, vida correndo calma como
riacho de chã, reencontrei Ariano Suassuna num hotel, durante um evento
literário. Conversa vai, conversa vem, acho que acabamos falando sobre a literatura
baseada na memória, na reconstrução e reinvenção do passado. E ele desandou a
falar de Proust, e a elogiar a beleza do fraseado, o detalhismo da percepção,
ou sei lá o quê. Aí, num gesto característico, deu uma palmada na perna, com
força, e disse:
– Ave Maria! Dá
vontade de quando voltar pra casa pegar e ler tudinho de novo!
Eu fiquei ali meio esmagado ao ver um cara, com 81 anos,
pelo menos considerar essa hipótese. Porque eu, no outono dos meus sessenta e
poucos, achava que não ia mais ter tempo sequer de reler A Metamorfose, quanto mais encarar a cordilheira proustiana.
Tudo isto me veio à mente ao assistir o belo filme Céleste, de Percy Adlon (diretor de Bagdad Café, Rosalie Vai Às Compras, etc.) contando os últimos anos da vida de
Proust, com base nas memórias de Céleste Albaret, que foi a criada fiel do
escritor durante este período.
É um filme notável. Tudo acontece dentro do apartamento
do escritor, com raras imagens do lado de fora. Dir-se-ia, pela unidade de
espaço, que “parece uma peça de teatro”, mas Percy Adlon passeia nesse espaço
com a câmera e seus atores de maneira fluida, usa cortes bruscos de montagem
para nos inquietar com a passagem de um tempo em que nada acontece, e
principalmente sabe usar o som. O filme tem música em raros (e essenciais)
momentos, não é como o cinema de hoje em dia, encharcado de música em todas as cenas,
submerso em orquestras, afogado em violinos, despedaçado por bate-estacas
eletrônicos.
A música já foi uma forma de arte, hoje em dia está
virando uma doença mental. Metade das pessoas que a gente vê na rua estão com
fones enfiados no ouvido, ouvindo música, música, música, música, música. Não
importa se ouvem Beethoven ou Bob Dylan, Chico Buarque ou Luiz Gonzaga. É um
massacre desnecessário. Quem lê muito, pensa pouco. Quem ouve muita música,
também.
Proust tinha o que a gente hoje chama de “T.O.C.”. Tudo
que lhe era servido tinha que ser feito exatamente da mesma maneira, sempre: o
café, o leite, os biscoitos, o vestuário... Sofria de asma. Tinha saúde frágil
e era neurastênico, ranzinza. Afetuoso num momento e irritadiço no outro. A
certa altura do filme, Céleste comenta: “Em
alguns momentos me sinto como filha dele, e em outros momentos como se fosse
sua mãe”.
Tenho um cacoete meio notívago, e Proust também o tinha.
Não sei direito por que sou assim. Já desenvolvi uma hipótese meio
ciência-ficcional de que certas pessoas excessivamente sensíveis são telepatas
em botão, telepatas incapazes de se comunicar pelo pensamento à distância, mas com
sensibilidade bastante para captar o ruído mental da Humanidade que os cerca. Captar
a mera estática, a barulheira sem sentido, como um rádio sintonizado entre duas
estações, ou como “a televisão num canal fora do ar”.
O dia claro, quando todo mundo está acordado e ativo,
produz um ruído-de-fundo insuportável. De noite, contudo, três quartos da
população da cidade estão adormecidos, desligados, inertes. E a mente do
sensitivo respira aliviada, e pela primeira vez em muitas horas consegue pensar
com clareza.
Proust mandou forrar com cortiça seus aposentos, para
eliminar os ruídos que vinham de fora. Precisava se concentrar nos seus
pensamentos, no delicado afazer de fiar lembranças, de avançar pé ante pé no
gelo fino do passado, que a qualquer movimento brusco pode se romper e nos
mergulhar “nas águas glaciais do cálculo egoísta”, ou seja, na vida real.
Céleste é um
filme dirigido com muito discernimento. Fiel ao espírito de Proust, aquele
apartamento onde transcorre a história inteira é silencioso como uma respiração
suspensa. Ressoam os pesados sapatos da criada no piso de madeira. Tampas de
armário, gavetas, janelas, tudo isto produz um barulho que, sem ser desagradável,
parece mais alto do que na verdade é.
Já morei em apartamentos tão silenciosos que durante a
noite alta cada barulho se tornava insuportável. Você mexe na gaveta dos
talheres, e tem a sensação de que está acordando o prédio inteiro. Assimilei a
tal ponto essa neurose que meu computador não tem caixas de som: tenho que
escutar tudo com os fones de ouvido.
Proust se trancafiava naquela alcova e de lá não saía.
Alguns críticos freudianos a comparam ao útero materno, de onde ele só teria
emergido a contragosto. Ele desenvolveu um fuso horário próprio, que o fazia
acordar no fim da tarde e adormecer depois que o sol saía. Em alguns momentos
da minha vida consegui pôr em prática esta utopia cronológica, e a transportei
para toda a geração do meu narrador anônimo do conto “Príncipe das Sombras”:
A culpa era do buraco na camada de ozônio e da sujeira das praias, em
coisa de vinte anos tinha surgido aquela geração de gente que nunca tinha sido
exposta a nada mais que crepúsculos e auroras, nesta ordem.
(A Espinha Dorsal da Memória, Bandeirola, p. 95)
Um arco temporal que reencontrei anos depois no belo
título de Tarantino/Rodríguez: From Dusk
to Dawn, “Do Crepúsculo à Aurora”.
Acordar no fim da tarde e só ir dormir quando o sol nasce
é uma utopia de gente excêntrica e branquela. Proust passava suas noites
frequentando cafés, visitando a marquesa-dos-anzóis ou a madame não-sei-das-quantas.
E ao voltar para casa (este é um dos aspectos divertidos do filme de Percy
Adlon) detinha-se por um tempão a fofocar com a criada – que, evidentemente,
cumpria um fuso horário paralelo ao do patrão, para estar sempre alerta.
Vozes, passos, uma eventual campainha que soa: o filme economiza
sons e cada um deles se torna impactante. E então a música aparece. Proust
convida um quarteto de cordas para tocar na sua casa – e aí ele se comporta
como um aristocrata, um delicado patrão, cheio de gentilezas: “Poderiam, por favor, executar de novo
aquela passagem para o movimento tal?... Veja, Céleste, que beleza... Merci,
merci.”
E durante todos esses anos ele na cama, recostado nas
almofadas, escrevia, escrevia, até capotar de sono. E quando ao entardecer
Céleste ia levar-lhe o desjejum ao quarto a sua cama estava coberta de
manuscritos, de anotações, de páginas pregadas com cola, de cadernetas
espalhadas...
Estava em busca do tempo perdido, mesmo sabendo que tempo
vivido não se perde.