De vez em quando eu digo a alguém que sou de Campina
Grande e a pessoa diz: “Ah, então me fala alguma coisa sobre Zé Limeira... Ele
era como?!”
Eu sou velho, mas pegue leve. Zé Limeira, de acordo com o
indispensável Dicionário
Bio-Bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada, dos meus mestres e
amigos Átila Almeida e José Alves Sobrinho, faleceu no já longínquo ano de
1955.
Quem sabe maiores detalhes sobre a vida real dele é o
poeta Astier Basílio, que está preparando uma biografia de Orlando Tejo. Tejo
foi “O Homem Que Viu Zé Limeira”, conforme o título do excelente documentário
de Maurício Melo Júnior, que pode ser assistido aqui:
Limeira ficou conhecido como “o Poeta do Absurdo” por
versos cheios de disparates impecavelmente rimados e metrificados como estes:
Eu me chamo Zé Limeira
de Lima Limão Limança;
a estrada de São Bento
bezerro de vaca mansa...
Valha-me Nossa Senhora,
tão bombardeando a França!
Eu já cantei no Recife
perto do Pronto Socorro:
ganhei duzentos mil-réis
comprei duzentos cachorro;
ano passado eu morri
mas esse ano eu não morro.
Eu só gosto dessa moça
porque tem vegetação,
porteira de pau-a-pique,
três pneus de caminhão,
peido de jumenta ruça...
e haja chuva no Sertão!
Eram versos que, nos meus 10, 11 anos, meu pai recitava
para gargalhada geral nas noitadas boêmias do terraço da nossa casa no Alto
Branco.
Orlando Tejo transformou Limeira em mito com seu livro Zé Limeira, Poeta do Absurdo (1973). É
um livro irregular e brilhante, talvez o mais criativo já escrito sobre a
poética dos cantadores. O “livro sobre cantadores” geralmente se desenvolve na
chave do relato jornalístico e documental (registro de versos), com uma ou
outra incursão descritiva do ambiente, ou rememoração lírica.
Tejo projetou nesse gênero tão severo uma dose inesperada
de humor, doidice e inverossimilhança. E ao mesmo tempo uma dose de prosa de
ficção, porque quando começa a contar um fato o homem se entusiasma, e a prosa
se apossa dele e leva a história pra onde bem entende.
O capítulo 11 registra muitos versos e os encaixa num
leve romancear que dá mais vida ao relato. Em muitos trechos de Tejo, a gente
chega a se esquecer e a ler aquilo como um romance. Isso não ocorre nos relatos
de cantoria. Nem mesmo dos que mais caprichavam na parte narrativa, como F.
Coutinho Filho ou Leonardo Mota. Já Orlando Tejo, nesses trechos, se emparelha com Oliveira Paiva e sua
descrição de festejos de fazenda, em Dona
Guidinha do Poço.
O capítulo 13, “Pela última vez em Campina”, reconstitui uma
longa cantoria entre Limeira e José Gonçalves, num cabaré da feira, num belo
momento da prosa urbana. De fato, um leitor preguiçoso dos folcloristas
tradicionais se espantaria com este parágrafo de Tejo, descrevendo o amanhecer
do dia, quando os cantadores começam a se despedir:
A cidade despertava ao berro metálico das sirenes, o operariado –
termostato da máquina do desenvolvimento – deslocando-se dos subúrbios para a
faina do dia-a-dia, lotando os coletivos, apinhando as calçadas, chegando para
as fábricas. Era o atendimento à voz das chaminés que na sua multiplicidade
saturavam os céus da metrópole dos sertões nordestinos, turvando de progresso o
alto da paisagem serrana.
Tejo retrata e recompõe a cantoria urbana com a mesma
fluência com que resgata e reafirma o perfil da cantoria de sítio, a cantoria
de vilarejo. Não sei se esse parque industrial todo já fazia parte da Campina
Grande pré-1955, ou se isso já era o Tejo dos anos 1970 finalizando o livro e
se entusiasmando ao teclado; pouco importa. A cantoria hoje é assim.
A parte com que eu implico no livro de Tejo é o capítulo
5, “O Poeta do Absurdo e o Absurdo dos Poetas”, quando ele começa a implicar
com a poesia modernista em geral. Como poeta, Tejo era um híbrido de parnasiano
e cordelista. Para improvisar um soneto bastava que lhe botassem lápis e papel
na frente. Se fosse soneto de patifaria, melhor ainda.
Nessa parte do livro ele adota a tática de, para elogiar as
doidices de Limeira, mostrar que os poetas ditos eruditos eram autores de
disparates maiores do que os do cantador do Teixeira. E nessa varrida não
escapam os surrealistas franceses nem os concretistas paulistanos. Tejo, com os
bigodes eriçados de um polemista profissional, desce o chanfalho numa enorme
lista de exemplos modernistas.
Zé Limeira não precisa ser comparado a nada disso. Tem
sua receita personalíssima e ao mesmo tempo universal. Para imitá-lo basta ir um
pouco nessa direção: a fluência na criação instantânea de neologismos, da
colagem de elementos díspares, da justaposição do ilustre ao plebeu. A presteza
e a articulação melódica do verso se sobrepondo a qualquer longínqua intenção
de fazer sentido.
Limeira lembra alguma coisa de Marc Chagall, de Bispo do
Rosário, de Gordurinha.
Me lembro de versos recitados por Dona Joana, uma mulher
que ajudava minha mãe no trabalho doméstico e sabia muitos versos como este,
que decorei:
Peguei na cobra jibóia
com dez dias de viagem;
pisei na ponta da vagem
tirei vinte e cinco jóia;
aonde chove e não móia
lá na várzea da agurita
onde os pombo canta e grita
dá volta no cotovelo:
quero um cacho de cabelo
da morena mais bonita.
Não sei o autor do verso, mas Limeira está todo aí. Tem a
imagem visual marcante: o cara pisando a ponta do rabo de uma cobra de encontro
ao chão, enquanto estica o corpo dela, abre-o (com uma faca?) e dali retira
jóias como caroços de uma vagem. Tem a palavra absurda que pode ser corruptela
e pode ser invenção (agurita). Tem uma Natureza surpreendente como a de um
mundo de desenho animado (essa chuva, esses pombos). E tudo isso para glosar um
mote bem lugar-comum, daqueles que geralmente só inspiram versos pedestres e
sem imaginação.