A Copa do Mundo se aproxima. Mesmo estando meio
distanciado do futebol, eu decidi me presentear com um spoiler do que vem por aí – e fui assistir no Netflix a
série-documentário Esquemas da Fifa,
dirigida por Daniel Gordon.
Em quatro episódios, a série descreve o escândalo que
estourou em 2015, quando altos dirigentes da Fifa foram presos, numa operação
simultânea em vários países – por corrupção, lavagem de dinheiro, organização
criminosa... O cardápio habitual de quem mexe com muita grana.
Dizem que toda honestidade tem seu preço; algumas são
meramente mais caras do que outras. O mundo do futebol não é necessariamente
composto por gente mais honesta ou desonesta do que o mundo da indústria
automobilística, o mundo dos cosméticos, o mundo do rock ou o mundo das
telecomunicações. Qualquer lugar onde role muito dinheiro torna-se um terreno
fértil para a desonestidade. O restante vai ser determinado pelo formato
interno dessa indústria, ou comércio, ou mercado, etc. Pelas relações de
produção, pelos freios e contrapesos junto aos governos, imprensa, público,
etc.
O formato interno da Fifa, a confederação internacional
de futebol, revelou-se extremamente propício para a roubalheira. O documentário
mostra os primórdios da entidade e o espírito meio ingênuo, quase amadorístico,
que ela manteve até a gestão de Sir Stanley Rous. O qual foi substituído pelo
brasileiro João Havelange, uma raposa no pleno sentido da palavra.
(João Havelange
e seu sucessor Joseph Blatter)
Havelange assumiu em 1974 e passou a transformar o
futebol internacional, injetando nele dois modelos de conduta: o big business e a política. Não poderia
dar certo, e não deu. A Fifa se transformou em um enorme instrumento de
enriquecimento ilícito e corrupção moral.
Praticamente todos os entrevistados falam
idealisticamente sobre o impulso de desenvolver o esporte em todos os países – principalmente
nos mais pobres, onde a juventude vive aos deusdará. O esporte pode ensinar
lições de vida (concordo). Pode ensinar o valor do talento individual e o valor
do espírito coletivo (concordo). Pode aproximar culturas diferentes, até mesmo
num contexto de competição e rivalidade, mas diluindo estes dois aspectos em
benefício de um ideal maior, o esporte (concordo). Mas... No papel tudo é
bonito, e no microfone tudo soa bem.
Contratos bilionários, pesadas comissões e subornos cada
vez mais explícitos são revelados ao longo dos quatro episódios. Curiosamente,
a série aborda com destaque a decisão da Fifa de votar simultaneamente os
locais das Copas do Mundo de 2018 (deu Rússia) e 2022 (deu Qatar). Há todo um
detalhamento do envolvimento político dos xeiques do Qatar, que os documentaristas
praticamente espremem no canto da parede, exigindo explicações.
Nem uma palavra é dita sobre a Copa da Rússia. Talvez
porque já tenha acontecido, e (como se diz por aí) não adianta dar chute em
cachorro morto. Talvez.
Lembro muito bem de quando Ronaldo Fenômeno teve um
piripaque no dia da decisão da Copa de 1998, na França. As mais mirabolantes
teorias da conspiração foram propostas. Desde as explicações de mero suborno
(cheguei a ver listas apócrifas, com o preço de cada jogador: Fulano, X mil
dólares; Sicrano, Y...) até explicações que envolviam extraterrestres
reptilianos e controle mental via satélite (o que explicava as cabeças
raspadas de vários jogadores).
Li há muitíssimos anos num livro policial qualquer,
provavelmente de Agatha Christie ou alguma aventura do Padre Brown, de
Chesterton, o detetive explicando: “Muitos suspeitos de um crime mentem, mesmo
sendo inocentes. O assassino não é o único a mentir. Alguns inocentes mentem
por medo, outros por conveniência, outros por hábito.” E a conclusão: “Quando
vemos todo mundo mentindo, a verdade fica irreconhecível.”
A corrupção política, tal como os crimes investigados por
Hercule Poirot, não é um samba de uma nota só. Não acontece sempre pelos mesmos
motivos, nem seguindo os mesmos processos. Cada caso é um caso. Em outro livro
policial, vi um mafioso, um tipo Don Corleone, explicando ao seu braço-direito:
“É preciso saber o ponto fraco de um homem, para poder suborná-lo. Homens honestos,
que rejeitariam horrorizados um milhão de dólares, podem entregar tudo em troca
de um fim de semana com uma chacrete que admiram à distância”.
Um dos temas repetidos mais insistentemente em Os Esquemas da Fifa é o da sensação de
poder e a certeza da impunidade. A Fifa levantou quantidades astronômicas de
dinheiro ao longo de décadas. De uma hora para outra, os dirigentes do
futebol de 120 países se viam projetados num universo de carros de luxo, hotéis 6 estrelas,
restaurantes finíssimos, presentes caros, mulheres lindas e aquiescentes, salas
Vip, tapete vermelho, jantares com primeiros ministros e presidentes. Muitas
vezes nem era preciso o suborno. Bastava o cargo – e a liturgia do cargo.
Só que o uso do cachimbo deixa a boca torta, e lá pelo terceiro
episódio da série chegamos à parte decadente e farsesca: os famosos envelopes
de papel pardo com milhares de dólares dentro, entregues numa suite de hotel,
enquanto os outros esperam sua vez na ante-sala. É como dar um salto brusco de
São Conrado para Rio das Pedras.
O produtor da série, Miles Coleman, declara: “O grande
problema é que numa entidade como a Fida não existe voto direto, voto popular.
São os delegados das federações que votam. Então... basta você convencer 120
pessoas, e você pode se perpetuar no poder, por um longo tempo.”
Eu sou impregnado de futebol desde a infância, é algo que
está nos genes de meu pai ou no feijão da minha mãe. Lá em casa todo mundo tem
time. Já fui jornalista esportivo, já fiz parte de torcida organizada, já fui
funcionário do meu clube do coração. Conheço conversa de vestiário, de sala de
reunião, de bastidores. Sempre soube que o futebol é todo contaminado de safadeza. E daí? Nesta vida, neste mundo, o que não é?
Meus amigos leigos me veem reclamando das diretorias
corruptas, dos juízes desonestos, dos jogadores mercenários, do VAR, da
bandeirinha de córner, do gandula. Perguntam: Por que continua torcendo, se
sabe que tudo aquilo é um teatro, e que muitas vezes o resultado do jogo (e do
campeonato) foi acertado de antemão?
Não sei. O futebol é uma coisa tão fascinante que a gente
consegue, quando o juiz faz “pí!...” esquecer de tudo e acreditar que o jogo é
somente o jogo. Como quando vai num show musical num estádio repleto, e faz de
conta que não está vendo aqueles logotipos coloridos piscando, mostrando quem paga pelo espetáculo e quem manda em você. Ou quando
assiste a novela de TV fingindo que aquilo é de verdade, e faz de conta que não dá atenção aos comerciais.
A mente humana não foi programada para aceitar doses
muito grandes de realidade. Temos necessidade de acreditar que “apesar de tudo
existe uma fonte de água pura”. Sabemos que não existe. Mas sabemos também que
só deixará mesmo de existir quando a
gente não acreditar mais nela.