quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

5148) O diretor e a atriz (30.1.2025)

 


(Isabella Rossellini e David Lynch, Veludo Azul)


 
Talvez a reflexão mais famosa sobre a relação entre diretores de cinema e seu elenco seja a que o pessoal atribui a Alfred Hitchcock: “Os atores de cinema são gado.”  
 
Ora, tudo que cerca Hitchcock é cheio de nuances, e de reviravoltas divertidas. Conta-se que ele, questionado sobre esta frase, defendeu-se: “Eu nunca disse que os atores são gado. Disse apenas que devem ser tratados como gado.” 
 
Hitchcock tinha (pelo que me consta) bons relacionamentos com alguns atores de filmes seus, como Cary Grant e James Stewart. Com as atrizes a coisa era diferente. O diretor tinha um indisfarçável fetiche por mulheres loiras e lindas. Gostava de dirigi-las em cenas onde aquela aparência fria, distante, aristocrática era arrebatada pela ação de um erotismo interno, e elas “se derretiam suaves, neve no vulcão”, como na canção de Chico César. 
 
Com essa mistura, ele compôs cenas memoráveis com Kim Novak, Eve Marie Saint, Tippi Hedren, Grace Kelly, Ingrid Bergman... 
 
Quem mais sofreu, ao que parece, foi Tippi Hedren. O livro de Camille Paglia sobre Os Pássaros (Ed. Rocco) relata algumas coerções psicológicas (vá o eufemismo) por que a atriz passou durante as filmagens (e em Marnie a história se repetiu). 



(Tippi Hedren em Os Pássaros )

 
O problema com Hitchcock não era somente o machismo, era o fato de que o cinema era para ele um teatro de marionetes. Ele concebia complicadas coreografias entre atores, cenários e câmera, e finalizava essas coreografias na mesa de montagem. Durante esse processo, ficava muito impaciente quando alguém (homem ou mulher) não obedecia suas marcações exatas, precisas, e que não necessitavam de justificativas (pelo menos na cabeça dele). 
 
Pensei nisto recentemente lendo os depoimentos de algumas atrizes sobre seu trabalho com David Lynch, morto recentemente. Sou admirador dos filmes de Lynch desde que vi O Homem Elefante por volta de 1981, num cinema no centro do Recife. Gosto de todos, até dos que são (aos meus olhos) cheios de defeitos, ou de coisas-que-eu-preferiria-ver-filmadas-de-um-jeito-diferente. 



(Naomi Watts e David Lynch)

 
Ao longo dos anos vi muita gente falando da experiência de filmar com Lynch, e parece uma unanimidade dizer que ele conseguia transformar o set de filmagem num ambiente agradável, animado, respeitoso, e até mesmo “leve” – se é que isto é possível num trabalho tão complicado, tão sujeito a problemas. 
 
E não é elogio póstumo com missa-de-corpo-presente. Dizem isso do estilo de filmar de Lynch há pelo menos vinte anos. O que é tanto mais notável quando se sabe que seus filmes, fatalmente, em algum momento, fazem um mergulho, tenso e sem concessões, em algumas regiões cruéis, violentas e doentias da mente humana. (E do corpo humano.) 
 
É fácil ter um “set” de filmagem descontraído e de bom humor quando se está filmando uma comédia com Billy Crystal ou um filme-de-amor para adolescentes. Mas filmar histórias como Veludo Azul ou Twin Peaks, com seu teor de crueldade física e morbidez mental, requer um talento especial. É preciso manter o nível de tensão necessário à empreitada, e ao mesmo tempo conseguir que a equipe não saia dali massacrada ou deprimida. É arte, mas é carrêgo. 



(Laura Dern e David Lynch) 

 
Depoimentos de atrizes sérias e ótimas (pelos meus critérios) como Laura Dern, Naomi Watts e Isabella Rossellini mostram o quanto David Lynch conseguia conduzir todo mundo ao longo dessa corda-bamba sem que ninguém caísse. 
 
Deprimidas ou massacradas saem muitas equipes (elenco + técnicos) dos sets de filmagem de várias obras-primas. Filmes que chegam a esse nível de qualidade porque são realizados por diretores exigentes, perfeccionistas, geniais, dotados de “uma visão”, impiedosos para com erros ou limitações. 



(Shelley Duvall em O Iluminado

 
São fofocas de Hollywood, mas ainda hoje se fala nas centenas de takes que Stanley Kubrick (cujos filmes eu admiro tanto quanto os de Lynch) exigia de seus atores. Li alguns meses atrás, por ocasião da morte de Shelley Duvall, depoimentos dela sobre a via-crucis por que passou para filmar O Iluminado.  Mais madura, mais tranquila, Shelley tentava minimizar o sofrimento por que passou nas mãos de Kubrick, mas as histórias que se contavam na época são assustadoras e plausíveis. 
 
Não só ela – até um homão hardboiled como George C. Scott foi obrigado a refazer dezenas de vezes os mesmos takes, que ele, ator brechtiano, queria fazer a sério, e Kubrick queria ver na chave mais grotesca possível. Diz-se que ao ver Dr. Fantástico pronto, Scott arrancou os cabelos ao ver que Kubrick jogara no cesto de lixo seus esforços mais sérios e transformou o General Buck Turgidson num dos personagens mais caricatos de sua filmografia. 



(George C. Scott em Dr. Strangelove) 

 
Claro que Kubrick sabia o que estava fazendo, e tinha o direito de fazê-lo. Mas trabalhar com ele era provavelmente algo que todo mundo morria de vontade antes, e suspirava de alívio depois. 
 
Kubrick era do time de Hitchcock. Cinema é o que vai aparecer na tela, e se for preciso passar a estrela principal num moedor-de-carne para obter esse efeito, traga-se o moedor. 
 
Também não é preciso fazer como (num caso muito discutido em anos recentes) Bernardo Bertolucci e Marlon Brando, que nas filmagens de O Último Tango em Paris combinaram entre si como seria a cena do estupro da personagem de Maria Schneider, e a atriz, jovem e pouco experiente, deixou-se levar. (E arrependeu-se publicamente depois.) 



(Marlon Brando e Maria Schneider, em O Último Tango em Paris

 
Já conversei com diretores que defendem, com restrições, esta prerrogativa de poderem recorrer a diferentes métodos para “extrair do ator uma emoção verdadeira”. 
 
Deixar o ator/atriz em insegurança; irritar; ameaçar; ofender; fazer chantagem emocional; confessar uma paixão (verdadeira ou falsa); ridicularizar a pessoa na frente de toda a equipe... 
 
E quando a pessoa estiver no estado emocional desejado, pegar o megafone e gritar: “Vamos lá! Cena 132, take 1!... Rodando!...” 
 
Tudo vale a pena quando resulta numa boa cena, diria Fernando Pessoa, se fosse roteirista. O que acontece é que existem estirpes diferentes de diretores. Eu costumo classificá-los em três tipos principais (estas simplificações são sempre toscas, é só para dar uma idéia):
 
a)      Diretor de Imagem: para quem o que mais importa é botar na tela imagens perfeitas, originais, espantosas, não importa o trabalho que isso dê. Não é apenas o “filme com fotografia bonita”, é também o filme com estética própria, o filme que inventa uma nova linguagem, o filme fundado em efeitos especiais... Muitos são diretores que vieram da área técnica (câmera, etc.). 

b)      Diretor de História: o que quer contar uma história, e tudo deve colaborar com essa história. A narrativa é o centro do filme, não apenas pela originalidade do enredo, mas pelas idéias que essa enredo provoca. É um tipo de cinema mais próximo da Literatura; muitos roteiristas se tornam diretores, atuam nesta faixa, dizem nas entrevistas: “Sou um contador de histórias”. 

c)       Diretor de Atores: é o diretor para quem o trabalho com o elemento humano é o centro de tudo; muitas vezes são diretores que têm também uma carreira no teatro. Quando dão um close-up em alguém, decerto estão preocupados com a lente, a iluminação, e tudo o mais: mas, principalmente, com o que se está se passando naquele instante na cabeça do ator/atriz. 
 
Claro que um bom diretor (nem precisa ser genial) mistura todas essas coisas. Precisa fazê-lo, se quer dirigir. Mas já vi dezenas de diretores dizendo coisa do tipo: “Eu quero é contar uma boa história com perfeição, o elenco pode ser qualquer um, a imagem precisa apenas ser correta e sem erros.”. Já vi depoimentos dizendo: “Me dê um elenco de amigos com quem já trabalhei, eu invento uma história em uma semana, e eles vão criar todo o resto.” 
 
Lynch dirigiu O Homem Elefante (1980) aos 34 anos. Teve que se mudar para a Inglaterra e dirigir feras como Sir John Gielgud e Anthony Hopkins, quando seu currículo incluía apenas o bizarríssimo Eraserhead (1977). 



(David Lynch e Anthony Hopkins em O Homem Elefante

 
Ele já fez vários relatos do pesadelo que foi esta experiência, até porque Hopkins detestou trabalhar com ele, os dois não coincidiam em quase nada, mas quem bancou Lynch do começo ao fim foi Mel Brooks. O produtor acreditou no jovem inexperiente, comprou todas as brigas, não permitiu nenhuma interferência dos financiadores, e a verdade é que The Elephant Man acabou recebendo oito indicações ao Oscar. 
 
(Eu vejo com certo desdém essa fixação da turma do cinema pelo tal do “Oscar”, mas enfim, ele rende dinheiro, e fica o registro.) 
 
Há diretores que, não importa o quanto se preocupem com a fotografia ou com a amarração do roteiro, parecem gostar de entrar em sintonia com seus atores, quase numa ligação telepática. Uma ligação que envolve memória, afeto, improviso, confiança mútua. O que pode ser um bom antídoto para a tendência, no cinema de hoje (tanto o cinemão industrial quanto o cinema descolado-alternativo), para o estilo “arrancar uma interpretação boa dessa turma, nem que seja no chicote”. 



(Federico Fellini e Marcello Mastroianni, em Oito e Meio) 
 
 
 
 




terça-feira, 28 de janeiro de 2025

5147) "Mindhunter": a mente de um assassino (28.1.2025)




 
Um detetive é alguém que lê sinais, marcas, indícios. Sherlock Holmes nos habituou à idéia de que os principais indícios são físicos, e podem ser percebidos e avaliados em alguns segundos. São famosas as suas deduções sobre um cliente seu no momento em que este se apresenta e os dois apertam as mãos. 
 
Pego um exemplo entre muitos, nas páginas iniciais de “O Rosto Lívido” (“The Adventure of the Blanched Soldier”, 1893). Curiosamente, é uma das poucas histórias narradas pelo próprio Holmes, e não pelo Dr. Watson: 
 
-- O senhor vem, segundo percebo, da África do Sul.
--  Sim, senhor, -- respondeu ele, algo surpreso.
-- Da guarda imperial, creio eu.
-- Exato.
-- Do corpo de Middlesex, sem dúvida.
-- Isso mesmo, Mr. Holmes, o senhor é um adivinho.
Sorri vendo o ar de espanto do meu visitante.
-- Quando um cavalheiro de aparência varonil entre nos meus aposentos com a tez tostada por um sol que não é o sol da Inglaterra e com o lenço metido na manga em vez de o ter na algibeira, não é difícil conjeturar a sua procedência. O senhor usa barba curta, e isso mostra que não era um soldado regular. Tem o corte de um cavalheiro. Quanto a Middlesex, o seu cartão já havia me mostrado que o senhor é corretor em Throgmorton Street. Em qual outro regimento o senhor havia de entrar?
-- O senhor vê tudo.
-- Não vejo mais que o senhor. O que eu fiz foi adestrar-me em reparar no que vejo.
(Histórias de Sherlock Holmes, Ed. Melhoramentos, trad. Agenor Soares de Moura, p. 41)
 


Um detetive precisa adestrar-se constantemente a reparar no que vê, e às vezes isto vai além do mais visível, do mais superficial. O que somos capazes de ver da mente de um criminoso, apenas observando o local do crime? Como saber quem é ele, que influências sofreu, que cacoetes possui, que manias, que traumas? O que faz o comportamento de um assassino psicopata ser, muitas vezes, organizado, racional, pragmático, lógico – e, consequentemente, previsível? 
 
Com essa idéia nas cabeças de muita gente foi criada na década de 1970, na academia do FBI em Quantico (Virginia), a chamada BSU (Behavioral Science Unit), em que investigadores e cientistas passaram a se concentrar na elaboração de perfis psicológicos dos criminosos, o que envolvia a realização de extensas entrevistas com psicopatas presos. 
 
Este é o tema da série da Netflix Mindhunter, cuja primeira temporada acabei de ver agora e já me preparo para a segunda, porque a série é muito boa. Em primeiro lugar, não é simplesmente sobre a elucidação de assassinatos e a prisão dos culpados: é a luta de detetives com mentalidade científica para tratar cientificamente a investigação criminal, enfrentando resistências em muitas frentes. 



(Jonathan Gross, como “Holden Ford” e Happy Anderson, como “Jerry Brudos”)

 
A série mostra entrevistas com assassinos reais (interpretados por atores, claro) como Edmund Kemper (que, entre outras vítimas, matou os avós paternos aos 15 anos e a mãe aos 25), Richard Speck (que em 1966 matou oito enfermeiras numa só noite, num mesmo alojamento), Jerry Brudos, Montie Rissell e outros. 
 
O esforço dos detetives é para entender e reconstituir o modo distorcido de pensar, os sentimentos turvos, as fúrias inconscientes dos criminosos. E nesse processo, que tem seu lado mórbido e doentio, os detetives ficam com a mente (compreensivelmente) atormentada. 
 
Dizia um soneto famoso de Luís de Camões: 
 
Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar:
não tenho logo mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada. (...) 

É meio irônico e meio cruel constatar que algo parecido ocorre entre o caçador e a caça. O caçador pensa tanto na caça, preocupa-se tanto com ela... Uma estranha identificação começa a surgir. Adivinhar o pensamento de alguém é transformar-se nesse alguém, em certa medida. Jorge Luis Borges dizia que todo homem que recita uma linha de Shakespeare torna-se Shakespeare nesse momento. 
 
Uma variante mórbida desse processo é o triângulo vítima-assassino-detetive, quando lidamos com crimes planejados e longamente preparados por um “serial killer”. Ele passa semanas ou meses vigiando sua vítima, ou preparando uma armadilha em que a vítima (neste caso, qualquer pessoa que apareça) irá cair, quando a ocasião certa se apresentar. 
 
David Fincher dirigiu (entre outros) filmes como Se7en (1995), Clube da Luta (1999), Zodiac (2007), The Girl with the Dragon Tattoo (2011), The Killer (2023). A psicologia mórbida dos criminosos não lhe é estranha. Seu mérito como diretor, no presente caso, é conseguir jogar seus agentes federais, de terno e gravata, no ambiente hippie-universitário dos anos 1970, onde eles são vistos como símbolos da repressão do Governo. 
 
A reconstituição de época é precisa, não apenas no exterior (carros, roupas, objetos de cena, expressões) mas na mentalidade. É irônico que a própria polícia norte-americana reaja com ceticismo à possibilidade de analisar psicologicamente algumas dezenas de criminosos e, com isto, ser capaz de “fechar” uma investigação em alguns poucos suspeitos, e neles apontar o culpado. 
 
A série se baseia no livro Mindhunter: Inside the FBI's Elite Serial Crime Unit (1995), escrito pelo agente aposentado do FBI John E. Douglas (com Mark Olshaker). (No Brasil, “Mindhunter – o Primeiro Caçador de Serial Killers Americano”, Ed. Intrínseca, trad. Lucas Peterson.) 
 
Diz Douglas, comentando as investigações no caso do assassinato de Francine Elveson, em 1979, em Nova York: 
 
Depois de revisar todas as evidências e os materiais do caso, e de tentar me colocar no lugar tanto da vítima quanto do criminoso, tracei um perfil. Sugeri que a polícia procurasse um homem branco de aparência comum, entre 25 e 35 anos, provavelmente trinta, que pareceria um tanto desgrenhado, estaria desempregado, teria hábitos mais noturnos, moraria dentro de um raio de oitocentos metros do edifício com seus pais ou uma mulher mais velha da família, seria solteiro e não teria relacionamento algum com mulheres ou amigos próximos, teria abandonado a escola ou faculdade, não teria experiência militar, teria baixa autoestima, não teria carro ou carteira de motorista, estaria ou teria estado em uma instituição psiquiátrica e tomaria medicamentos controlados, teria tentado suicídio por estrangulamento ou asfixia, não abusaria de drogas ou álcool e teria uma coleção enorme de pornografia de bondage e sadomasoquismo. Esse seria o seu primeiro assassinato e, na realidade,
seu primeiro crime grave, mas não seria o último, a não ser que fosse capturado. 

 

— Não precisam procurar muito longe por esse homicida — falei para os investigadores. — Vocês, inclusive, já conversaram com ele. (p. 138) 
 
No livro, Douglas justifica de forma convincente cada um dos detalhes de sua hipótese, e quando o criminoso é descoberto verifica-se que praticamente tudo era correto. 
 
Douglas é um adivinho? Não, nem ele nem Sherlock Holmes. Na série Netflix, os policiais usam o nome de Sherlock para elogiar o agente Holden Ford (interpretado por Jonathan Gross), que é mais ou menos um “alter ego” de John Douglas. Não se trata de adivinhar: trata-se de “adestrar-se constantemente a reparar no que vê”. 



(Holt Mc Callany como "Bill Tench")

 
Nos episódios finais da série há uma cena interessante em que os agentes Ford e Bill Tench (interpretado por Holt McCallany) conversam com a psicóloga Dr. Wendy Carr (interpretada por Anna Torv) e discutem a nomenclatura que precisam estabelecer para a pesquisa – e acabam chegando, meio casualmente, à expressão “serial killer”. 
 
Naquele diálogo banal, da rotina de trabalho, nasceu o termo que designa o anti-herói típico de nossa época. No século 20, era o vilão internacional que pretendia dominar o mundo: Goldfinger, Dr. Fumanchu, Lex Luthor... O arqui-vilão típico do século 21 está na linha de Hannibal Lecter: inteligente, sociopata, meticuloso, sem sentimentos, arrebatado por sentimentos conflitantes de inadequação e megalomania, propenso a fantasias eróticas e delírios de poder, sujeito a preconceitos (de classe, de raça, de sexo, etc.)... 
 
Um indivíduo silencioso, discreto, que não chama a atenção, mas cujos comportamentos ritualizados e maníacos podem ser avaliados à distância, pelas pistas que deixa; até que alguém toque à sua campainha. 



(Holt McCallany, Anna Torv e Jonathan Gross) 



domingo, 26 de janeiro de 2025

5146) A foto impossível (26.1.2025)




Lá por volta dos anos 1980, o fotógrafo francês Greg Girard estava andando e fazendo fotos dentro de Kowloon City, em Hong-Kong. Fotógrafo é como caçador: tem que estar o tempo inteiro com o olho atento e o dedo no gatilho.  Às vezes, por um segundo de distração se perde a caça. 
 
A caça, no caso do fotógrafo, é aquela foto de algo que cruza a nossa vista, e quando o artista pega a câmera e leva ao olho... babau tia Chica. Passou.  Aquela foto, nunca mais. 


Foi o que aconteceu com Girard. Ele conta que viu uma comissária-de-bordo da Cathay Pacific descer de um táxi e entrar no labirinto urbano de Kowloon City, puxando atrás de si a mala-com-rodinhas. Sua elegância e postura faziam um contraste brusco com o ambiente decadente em volta, mas ele a perdeu no labirinto de ruelas antes de poder fazer uma foto. 


            (Kowloon City) 
 
Para quem não sabe, Kowloon City, “a Cidade Murada”, ou “a Cidade Emparedada”, era um dos ambientes urbanos mais surrealistas do Oriente. Num espaço equivalente a um quarteirão de uma grande cidade, viviam mais de 30 mil pessoas enfurnadas em edifícios precários, decadentes e gigantescos, num viveiro humano que é difícil de acreditar sem ver. 
 
Em algum momento, Kowloon foi considerada o local de maior densidade de ocupação em todo o planeta. Cheio de problemas criminais, sanitários, ambientais, urbanísticos, o complexo de edifícios foi demolido em 1994. 
 
Quanto a Greg Girard, ele ficou com aquela imagem na cabeça durante anos. Todo fotógrafo (cineasta, pintor, etc.) tem essas coisas. É uma idéia que fica pendurada na memória, como uma ficha esperando a hora de cair. 
 
E de repente apareceu a tecnologia da Inteligência Artificial, onde é possível descrever com razoável precisão a imagem que temos em mente, e... voilà!... A foto é feita.

Trabalhando em parceria com a artista de Hong Kong, Bianca Tse, Girard forneceu a ela as informações e depois de muitas tentativas algumas fotoficções foram compostas. Não para se fazer passar por fotos autênticas, mas para recuperar uma idéia que tinha charme em si: o contraste entre a elegância da personagem e a sordidez do local. 



 
Bianca Tse usa a I. A. principalmente para encurtar caminhos e reduzir despesas logísticas, diz ela: 
 
Não preciso contratar atores, não preciso montar toda a cena, e, sim, isto poupa uma enormidade de tempo, e principalmente de dinheiro, porque não haveria ninguém disposto a investir em mim para criar esse tipo de obra. 
 
Aqui:
https://edition.cnn.com/2025/01/01/style/bianca-tse-hong-kong-images-ai-hnk-intl/index.html
 
Qualquer pessoa pode se sentir incomodada com isto – no presente caso, os atores que hipoteticamente poderiam ter sido contratados e pagos por Bianca, para realizar suas fotos. A questão é que quando os recursos são poucos qualquer pulo-do-gato é bem vindo, qualquer solução barateadora, simplificadora. 
 
O cinema brasileiro faz isto há séculos. A lei que vigora no mundo da Arte Precária é esta: “Se for esperar para fazer somente quando tiver condições, você não vai fazer nunca; faça agora, do jeito que der, e lá na frente a gente resolve os pepinos.” 
 
Acho que a Inteligência Artificial vai desempregar muita gente, talvez até eu mesmo. Entretanto, quando um tsunami se aproxima não cabe ficar discutindo se o tsunami está certo ou errado. Já aconteceu, e a questão é como sobreviver a ele.  
 
Os bateristas sobreviveram à invenção da bateria eletrônica. O teatro sobreviveu à invenção do cinema, e este à invenção da TV.  
 
Bianca Tse usa a I. A. para criar imagens meio surrealistas, impossíveis de produzir com atores e cenários de verdade.  



 ("Superpopulação", Bianca Tse) 

 

“Superpopulação” (acima) é um trabalho dela usando a ferramenta do Midjourney, e abre esta linha de argumentação: a I. A. pode nos ajudar a produzir fotos impossíveis, fotos além das possibilidades físicas de um fotógrafo tradicional. Deixa-se o território da foto propriamente dita e entra-se no território dos efeitos especiais e da computação gráfica. 
 
Nos recentes incêndios acontecidos em Los Angeles, compartilhei nas redes sociais uma imagem da colina onde o letreiro HOLLYWOOD aparece com uma cortina de fogo por trás. 




Várias pessoas vieram me advertir que a foto era feita com I. A., e que daquele ângulo seria impossível avistar o fogo. Aceitei a correção, mas com uma ressalva: para mim, o poder da imagem não estava no seu possível conteúdo jornalístico (“captei visualmente um fato que está acontecendo”), mas na sua simplicidade simbólica: Hollywood está em chamas. 
 
Esse conteúdo simbólico seria o mesmo se a imagem fosse um cartum desenhado a nanquim, um quadro a óleo, etc.  O mesmo impacto: “Hollywood está em chamas”. 
 
Não há dúvida de que a I. A. potencializa um perigo grave, que já vinha desde o CorelDraw, desde o AdobePhotoshop: a possibilidade de alterar imagens reais ou criar “do zero” imagens novas, com total aparência de realidade, mesmo sendo falsas. 
 
Existe uma linha evolutiva muito clara entre estas tecnologias. A grande inovação da I. A. é o fato de que o usuário nem sequer preciso dominar uma técnica de interferência na imagem. Bastam comandos verbais. A pessoa pode inventar uma foto ou uma pintura ou um filme sem pegar no mouse, apenas descrevendo o resultado que quer. 



(ilustração: Bianca Tse) 
 

As fotos de Bianca Tse oscilam nesse limite entre o possível e o impossível – exatamente como o próprio “bairro” de Kowloon em sua cidade natal, aquele “favelão”, aquela aberração urbanística que, como já se disse muitas vezes, era preciso ver para acreditar que existia mesmo.
 
Depois que transcorre um século, a distância entre o real e o irreal se torna uma questão de fé.

(Para quem tiver curiosidade, no link abaixo há uma extensa matéria sobre Kowloon City, com numerosas fotos.)

https://cityofdarkness.co.uk/category/the_city/

 






 
 



quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

5145) "Little, Big" e a Fantasia Urbana (22.1.2025)




Nas discussões literárias, quando se invoca o nome “Fantasia”, todo mundo pensa imediatamente em histórias envolvendo guerreiros medievais com espada e armadura, cercados de magos, dragões, castelos. Ou seja, para a maioria dos leitores, “fantasia” é a Fantasia Heróica, também chamada de “High Fantasy”, aquilo que vemos em obras como O Senhor dos Anéis, Game of Thrones ou Conan o Bárbaro. 
 
Nada contra esta fantasia, que eu, pelo menos, aprecio muito. Só que aprecio mais ainda, por outros motivos, o que a gente chama de “Fantasia Urbana” ou “Fantasia Contemporânea”: as histórias fantásticas (que podem inclusive envolver magos, elfos, encantamentos, etc.) transcorridas na época atual, por entre automóveis, televisões, celulares, etc. 
 
A Fantasia Urbana pode até ser ambientada num momento de cem ou duzentos anos atrás. Alguns dos meus livros preferidos neste gênero fazem isso. 




The Prestige (1995), romance de Christopher Priest (filmado por Christopher Nolan como O Grande Truque) transcorre na Inglaterra vitoriana, e mostra dois mágicos-de-palco rivais, criando truques cada vez mais extraordinários, recorrendo inclusive à ciência da época (Nikolas Tesla aparece na história). 
 
The Anúbis Gates (1983), de Tim Powers, acontece a partir de 1810 em Londres, quando um viajante-no-tempo fica acidentalmente preso nessa época e tem que se virar como pode, baseado nos seus conhecimentos literários. (No Brasil, Os Portais de Anúbis, Ed. 34, trad. Heliana Sabino.) 



 

São histórias fantásticas, com tinturas de ficção científica, mas que são basicamente fantasia, porque a maioria dos efeitos fantásticos a que recorrem não têm nada a ver com ciência. 
 
E são histórias tipicamente urbanas, que extraem dramaticidade das condições de vida numa metrópole – Londres, em ambos os casos. 
 


Um relançamento recente nos EUA tem motivado novas discussões sobre o tema: o do romance Little, Big (1981) de John Crowley, um clássico moderno, que na época em que saiu ganhou o World Fantasy Award, e recebeu elogios entusiasmados do crítico Harold Bloom, que o incluiu no seu livro O Cânone Ocidental. 
 
Diz Bloom, comentando a obra de Crowley:
 
“Little, Big” me parece tão miraculoso quanto Shakespeare ou Lewis Carroll: é como se o livro sempre tivesse estado aqui, tal como se Falstaff ou Humpty Dumpty estivessem aqui desde o princípio das coisas, e Shakespeare e Carroll os tivessem simplesmente encontrado. Sempre tive a impressão de que “Little, Big” já estava aqui e John Crowley apenas o encontrou e o trouxe para casa, a dele e a nossa.
(prefácio a Snake’s Hands: The Fiction of John Crowley, trad. BT) 
 
O romance tem o subtítulo “O Parlamento das Fadas” e trata-se na verdade de uma história sobre fadas, mas contada de um ponto de vista quase contemporâneo, pois a história se passa no século 20, entre a cidade de Nova York e uma região não muito perto nem muito distante, chamada Edgewood, uma espécie de zona de fronteira entre o nosso mundo e o mundo que em inglês é chamado de “Faerie”, o país das fadas. 
 
Uma das teses centrais do livro é clássica: o desenvolvimento industrial, técnico e científico, com suas intensas fontes de energia (vapor, eletricidade, eletrônica, etc.) e o crescimento urbano, empurrou para longe o mundo das fadas e das criaturas fantásticas, que se refugiaram de volta à Natureza. 




 
Little, Big é a história de uma família, a família Drinkwater, ao longo de praticamente um século de gerações sucessivas Isto fez alguns comentaristas, como Ted Gioia, compararem o livro com Cem Anos de Solidão de Garcia Márquez: aquela complicada árvore genealógica cheia de pessoas excêntricas, nomes repetidos, desaparecimentos misteriosos, paixões clandestinas, e um microcosmo de gente interiorana com um pé no mundo real e o outro no umbral de outra realidade. 
 
Um personagem que atravessa a história de ponta a ponta é Evan “Smoky” Barnable, um rapaz tímido, livresco, distraído. Ele casa com Daily Alice, uma das moças da família Drinkwater, descendente de um arquiteto misterioso que construiu a casa também chamada “Edgewood”. John Drinkwater construiu essa mansão enorme em forma de estrela de cinco pontas, cada uma dessas pontas num estilo-de-época diferente, talvez para servir de mostruário aos futuros clientes. 
 
Acontece que o formato da casa possibilita a passagem para planos diferentes da realidade, de modo que chegando ao fim de um corredor e virando a esquina a pessoa não está somente noutro “estilo de época”, está em outro mundo.  Morando com a recém-esposa nessa casa desconcertante, Smoky passa a conviver com a mitologia particular da família Drinkwater – a de que estamos no limiar entre nosso mundo e o mundo das Fadas, e que existe uma História que está sendo contada e todos eles precisam encaixar-se nela para que a História (“the Tale”) aconteça. 
 
Como a melancólica observação de uma personagem menor, mera figurante da História, após seu encontro com uma das protagonistas: 
 
Marge ficou parada na porta observando-a, repleta da estranha sensação de que  tinha sido apenas para essa visita tão rápida que ela tinha vivido toda sua longa vida. Que esse chalé à beira da estrada e essa lanterna em sua mão e toda a série de acontecimentos que a fizeram existir tinha como único objetivo fazer com que aquela visita acontecesse.  (p. 532, trad. BT) 
 
E em outro momento vemos a reflexão de outro personagem, Auberon, que em Nova York ganha a vida escrevendo novelas de televisão: 
 
E no entanto ele precisava apenas sentar diante da maltratada máquina  de escrever (e como ela sofria!...) para que os capítulos começassem a se desdobrar tão habilmente e tão impossivelmente quanto uma fila interminável de lenços-de-seda coloridos que um mágico extrai da própria mão vazia. Como fazer uma história terminar com a promessa de que não terminará nunca? (p. 572) 
 

 
O livro tem uma porção de sub-plots, impossível resumir todos aqui. Há um pacote de cartas de algo como Tarô passando de geração em geração, uma mulher que pratica a magia e a Arte da Memória (projetando suas lembranças nos sucessivos aposentos de um palácio), um bloco de apartamentos em Manhattan que mantém as quatro fachadas mas no interior abriga uma fazenda de animais leiteiros, um rapaz que consegue das Fadas o poder de apaixonar qualquer mulher por que se interesse... 
 
Há um aspecto sinistro também, no surgimento de um líder populista e violento que acaba se elegendo presidente dos Estados Unidos, e é chamado O Tirano: 
 
Porque o Tirano, Russell Eigenblick, não seria esquecido. Um longo período de tempo se estendia diante do seu povo, um tempo amargo em que aqueles que se opuseram a ele iriam, na aus ausência, se voltar uns contra os outros, e a frágil República seria partida e recomposta de vários modos diferentes. Naquele longa disputa, uma nova geração viria a esquecer os sofrimentos e as dificuldades que seus pais haviam sofrido no tempo da Besta, iria olhar oara o passado com nostalgia crescente, com a dor profunda de uma perda, para aqueles anos já além do horizonte da memória viva, para aqueles anos em que, parecia-lhes, o sol sempre estava brilhando. (pág. 694) 
 
Little, Big é uma história de fadas mas é ao mesmo tempo uma história da substituição de gerações em que os mais novos herdam dos mais velhos os sonhos, as dúvidas, os mistérios, as lacunas. A prosa de John Crowley é tradicional, clássica, muito elegante, a mesma que eu já tinha experimentado em livros como The Translator (2002), Antiquities: Seven Stories (1993), Novelty (1989), Great Work of Time (1989)              ...
 
Aqui, escrevi sobre o ótimo The Translator:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2010/01/1590-o-transleitor-1742008.html
 
Esses livros de Fantasia Urbana são para mim uma demonstração de que é possível pegar mesmo o mais clichê dos temas e dar-lhe uma perspectiva nova. Basta apenas fazê-lo chocar-se com temas afastados dele, e ver que tipo de fagulha esse choque produz. 
 
 





sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

5144) David Lynch, 1946-2025 (17.1.2025)




David Lynch foi um dos grandes diretores indutivos da história do cinema. 
 
Existem cineastas dedutivos – que concebem uma teoria, um tema, uma situação ampla e abstrata, e depois vão procurar situações humanas capazes de ilustrar essas idéias. “Vou contar uma história sobre a vida difícil dos migrantes norte-americanos na época da Grande Depressão”. 
 
E existem cineastas indutivos, que partem de uma imagem vívida, concreta, isolada (imagem geralmente surgida “por acaso”, “caída do céu”, aparecida num sonho, etc.) e começam a explorar situações para justificá-la: O que é aquilo? Como aconteceu? Quem são essas pessoas? Como aquilo foi parar ali? 
 
A melhor ilustração para esse processo de Lynch (que ele já comentou em livros, entrevistas, etc.) poderia ser o início de Veludo Azul (1986), em que um rapaz está curtindo uma agradável tarde de sol no jardim da casa de seus pais e de repente acha na grama uma orelha humana decepada, coberta de formigas. O que é aquilo? Como foi parar ali? Etc., etc. 
 
E a história do filme vai se desdobrando, não para ilustrar uma idéia que o diretor tinha desde o início, mas porque para justificar a presença daquela imagem inicial o diretor vai ter que inventar pessoas, situações, e aos poucos vai acabar inventando outras pessoas, envolvendo uma cidade etc. 
 
Esse processo “indutivo” se parece com certas técnicas de psicologia e psicanálise baseadas em associação livre de idéias, sem propósito, sem lógica, sem obrigação alguma – somente o fluxo de coisas que brotam da nossa cabeça quando produzimos pensamentos, mas sem “briefing”, sem objetivo prático, sem teoria, apenas o fluxo do inconsciente, estimulado por uma mera pressão do tipo: O que você está vendo? Isso parece com quê? Por que está aí? O que tem em redor disso? Etc. 


 
E este processo é mais ou menos o que os Surrealistas pregavam, conforma a definição clássica de André Breton (Manifesto do Surrealismo, 1924): 
 
“Surrealismo é um automatismo psíquico em estado puro, mediante o qual se propõe exprimir, verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral.” (trad. Sérgio Pachá)
 
Já li ou assisti inúmeras entrevistas de Lynch, mas não me lembro de nenhuma em que ele se classificasse como “surrealista” – o que aliás seria um erro, pois cada vez que um artista admite ser incluído num “ismo” qualquer está construindo uma gaiola em volta de si mesmo e jogando a chave no rio. 
 
Vale lembrar também que André Breton, o surrealista-raiz, tinha um profundo desprezo pela “literatura”, pela “contação de histórias” e buscava o jorro contínuo de imagens bizarras não conectadas por qualquer arremedo de “roteiro comercial”. 



(Luís Buñuel, Un Chien Andalou)
 

Breton, como todo profeta de uma ideologia, era um purista, um radical. Celebrou os primeiros filmes de Luís Buñuel (Um Cão Andaluz, L’Âge d’Or); não sei o que terá dito de filmes comerciais, com começo-meio-e-fim como Viridiana ou A Bela da Tarde
 
Os filmes de Lynch, como os do Buñuel maduro, são filmes comerciais (todos foram exibidos comercialmente, com graus variados de sucesso financeiro) aproveitando o método surrealista (que é quase um método psicanalítico). Mas sua geração de imagens bizarras se dá num contexto de “cinemão”, familiar ao repertório do público. 
 
Uma orelha decepada? Deve ter havido um crime, vamos chamar a polícia, etc.  Mas quanto mais se investiga, mais coisas bizarras aparecem. E a cada bizarrice nova é preciso ampliar o contexto para que elas façam sentido, e é um processo sem fim. Uma boa parte do cinema de Lynch se desenvolve dessa maneira. 
 
O que há dentro da caixinha de música do musculoso chinês que frequenta o bordel em A Bela da Tarde? O que há dentro da misteriosa caixa azul que vai parar nas mãos das moças de Mullholland Drive? Enquanto o diretor não mostrar, pode haver qualquer coisa. 



(Luís Buñuel, A Bela da Tarde

 
Um dos grandes problemas da crítica cinematográfica é quando um crítico de cabeça dedutiva vai analisar um filme de um cineasta de cabeça indutiva (ou vice-versa) e tenta, à força, fazer essa cavilha quadrada se encaixar num buraco redondo (ou vice-versa). São modos de pensar diferentes e é em casos assim que frequentemente encontramos o protesto de “critique o filme que o diretor fez, não o que você teria feito no lugar dele”. 
 
São como idiomas diferentes: pensar dedutivamente (do geral para o particular, do abstrato para o concreto) e pensar indutivamente (do particular para o geral, do concreto para o abstrato). Qualquer pessoa pode cultivar os dois, mas é muito frequente que um conjunto de fatores desde a infância (vida familiar, educação, leituras, influências) faça com que uma pessoa às vezes, tenha muita dificuldade para “mudar de idioma” em sua cabeça. 
 
Os cinemas de Lynch e de Buñuel são um esforço permanente para conciliar, no contexto basicamente comercial do cinema de longa-metragem, não somente esses dois processos, mas a conviência entre imagens bizarras e contexto banal.  
 
Eu diria que um dos predecessores mais ilustres desse processo são as colagens de Max Ernst em obras como Une Semaine de Bonté (1934) e outras. Ernst pegava as imagens mais “comerciais” e caretas de sua época (as gravuras ilustrando romances de amor, de ascensão social, de tragédias familiares, de entretenimento classe-média), recortava, colava, e usava esse contexto extremamente familiar ao leitor comum da época para produzir situações cômicas, absurdas, “surrealistas”. 






(Max Ernst, Une Semaine de Bonté, 1934)



Este tipo de narrativa consegue muitas vezes um equilíbrio fascinante entre “contexto normal x imagens bizarras”. 
 
Buñuel consegue isto narrando histórias inspiradas em romances-folhetim (Joseph Kessel, Pérez Galdós, Octave Mirbeau, Pierre Louys) e distorcendo essas histórias para transformá-las em alucinações sob controle. 
 
David Lynch recorre ao universo riquíssimo da vida suburbana norte-americana, aos bairros residenciais das cidades interioranas, àquela aparente normalidade residencial, profissional e familiar, e começa a destampar bueiros, arrombar portas, acender luzes, e descobrir tudo que existe de violento e primal para sustentar aquela normalidade aparente. 
 
É um equilíbrio perigoso, porque muitos espectadores ficam profundamente irritados quando entendem 90% de um filme mas não conseguem em hipótese alguma justificar aqueles outros 10% incompreensíveis. Eu sei o que é esta sensação. 
 
O universo de Lynch é um universo “caiado por fora e podre por dentro”, e ele geralmente percorre esse universo levado pela mão de um personagem que sem querer mergulhou numa história aterrorizante ou, no caso do agente do FBI de Twin Peaks, de um personagem que por força do seu ofício já sabe o que pode haver no mundo e precisa transitar o tempo inteiro entre o cenário das aparências e os bastidores da realidade. 
 
Pode até  não parecer muito, mas o mundo de David Lynch é o mesmo de Philip K Dick, aquele Projac de simulacros onde mora gente que pensa que é gente de verdade. Aquelas casas com grama verde, cerquinhas brancas, garagem coberta, barbecue ao ar livre, rock na vitrola ou no smartphone. É uma realidade de acrílico e compensado, na qual as pessoas vivem, comem, dormem, até que o primeiro ruído se infiltra... e buga o programa inteiro. 
 
É o detalhe terrível que Glauber Rocha chamava de “o câncer no lábio da Miss”. 



(Tom Waits, Frank's Wild Years)
 

Entre os muitos comentários sobre Lynch que pipocaram nas redes estes dias, vi um do leitor Charles Bergman no grupo de Facebook Tom Waits sugerindo que não pode haver cineasta melhor do que Lynch para traduzir visualmente as canções de Waits (ele cita “Black Wings”, “Underground”, “What’s He Building”). 

Ei-las aqui:

É o mesmo universo suburbano, boêmio, de “morbeza lírica” (Macalé + Waly Salomão), de “amour fou” misturado com “true crime”; sexo, drogas e rock anos 1950. Um contexto de intensas referências nostálgicas e de perplexidade de quem, a certa altura do século, perdeu o rumo e entrou numa estrada perdida. 
 
Make America Gasp Again!