sábado, 24 de janeiro de 2009

0779) A popularização das obras (16.9.2005)



Ouvimos isto o tempo todo: “É preciso popularizar as grandes obras da literatura, atrair a atenção do jovem, mostrar-lhe a existência dos grandes autores”. Concordo. Meu primeiro contato com a obra de Cervantes foi através do Dom Quixote das Crianças de Monteiro Lobato. E não acho nada demais confessar que até hoje só li as versões infanto-juvenis de obras como as Viagens de Gulliver de Swift ou o Robinson Crusoe de Defoe. Sei que perdi o filé, principalmente no primeiro caso, mas o que importa é que pelo menos fiquei sabendo que aquela história existia.

Leio num blog qualquer que nos EUA um “rapper” está transportando para a linguagem do “rap” a grande obra de Geoffrey Chaucer, os Canterbury Tales, uma obra que está para a língua inglesa assim como a Divina Comédia (olha outro que não li ainda!) está para a italiana e Os Lusíadas para a portuguesa. Os contos de Canterbury (ou “da Cantuária”) são do século XIV, obedecem a uma gramática e a uma ortografia muito diferentes da atual, e já foram adaptados em verso, em prosa, com linguagem modernizada, etc. (Também já foram filmados, e a verão mais conhecida é a de Pier Paolo Pasolini, em 1972).

Por que, então, não repassá-los também para a linguagem dos isqueitistas e dos grafiteiros? Aqui vai um trechinho. Primeiro, no original: “And up they stirte, al dronken in this rage / And forth they goon towardes that village / Of which the taverner hadde spoke biforn / And many a grisly ooth thanne han they sworn”. Na versão rap: “When he'd said his piece / The rest agreed, and the three friends hit the streets / And went to seek their destiny and provoke a confrontation, / In a drunken rage hoping Death would come and face them. / Their intoxication made them sure of their purpose”. Não tenho espaço aqui para traduzir, mas dá pra perceber que não se trata exatamente do mesmíssimo texto, não é?

O que é isto? Uma afronta à obra de arte, uma deturpação? Para mim trata-se simplesmente de uma tradução. Se os Contos de 1400 já foram traduzidos para o dezenas de línguas, inclusive o português, por que não para o inglês de 2005? O que acho preocupante é outro tipo de transposição, justamente aquela que cito no primeiro parágrafo. É a tal da adaptação para quem não pode assimilar o original – no caso crianças e adolescentes. Por melhores que sejam as intenções de quem adapta, o que ele está fazendo é simplesmente manter uma metade da obra (o enredo e os personagens) e amputar a outra (o estilo). Isto pra não falar no fato óbvio de que episódios secundários são cortados por inteiro (ou resumidos) nessas adaptações. Elas têm seu valor, e bons escritores como Orígenes Lessa, Paulo Mendes Campos e outros já pagaram o leite-das-crianças resumindo e adaptando clássicos da literatura. Mas... cuidado. Uma adaptação deve ser como um trailer, que serve apenas para abrir o apetite e dar vontade de ver o filme.

0778) Requiem pelos bombeiros (15.9.2005)



As celebrações (termo que me parece mais adequado do que “comemorações”) da passagem do 4o. aniversário dos atentados do 11 de setembro me trouxeram à mente algumas emoções que eu julgava arquivadas. Parte delas foi despertada pela reexibição, na TV a cabo, de um filme que a crítica em geral detestou, mas que acho excelente: Os heróis, um teatro-filmado com apenas um casal de atores: Sigourney Weaver e Anthony LaPaglia, aquele ótimo ator que é a cara de Carlos Alberto Parreira. Ele é um capitão do Corpo de Bombeiros que recorre a ela, uma escritora profissional, para redigir o elogio fúnebre dos seus companheiros que morreram nas Torres Gêmeas.

Tem gente que chora quando vê a vida de Zezé de Camargo e Luciano, tem gente que chora vendo novela da Globo, e gente que chora com os filmes de Fellini. Nada disso me abala, mas é a terceira vez que vejo esse filme sem nada de excepcional e fico com os olhos, digamos, levemente umedecidos. LaPaglia é um sujeito fechadão, que reprime as próprias emoções, mas que vai se soltando quando tem que descrever para uma desconhecida seus ex-companheiros mortos. Seguem-se várias histórias de camaradagem masculina, de trabalho duro, de coragem pessoal, e de famílias que de uma hora para outra perderam seu centro. Quase não há flash-backs: o filme inteiro transcorre na sala do apartamento (era, originalmente, uma peça de teatro), com ela fazendo perguntas e conseguindo arrancar dele, pouco a pouco, o perfil daqueles indivíduos.

Não é um filme feito-para-chorar, e é sintomático que o título original não tenha a grandiloqüência do título brasileiro. Lá, o filme se chama “The Guys”: os caras, os rapazes, a galera, a turma. É assim que os homens gostam de se ver em conjunto, é assim que eles gostam de se considerar quando se auto-observam na companhia dos seus iguais. Todo sujeito que tende a ver a si mesmo como um herói perde um pouco de masculinidade, na minha opinião. Querer ser herói é ceder à tentação da fama, da glória, da badalação, do “glamour” – e isso, convenhamos, não é negócio pra homem.

Um bombeiro é o soldado que não mata, o soldado que salva vidas. Um herói é simplesmente um cara que se viu numa situação em que só tinha duas alternativas: se comportar como um filho-da-puta ou se comportar como um herói, e ele teve que escolher a segunda. Os bombeiros do filme (muito bem descritos através do ótimo diálogo e da interpretação de LaPaglia) são sujeitos rudes, fortes, algo ingênuos, com qualidades e defeitos. Se alguém foi herói no 11 de setembro, mesmo a contragosto, foram eles. Eles expressam aquelas qualidades masculinas que o western americano tanto celebrou: coragem pessoal, desprendimento, lealdade para com os seus e solidariedade para com completos desconhecidos, o senso do dever profissional e da obrigação moral, o amor aos aspectos técnicos do próprio trabalho independentemente do reconhecimento público que este tenha ou não.

0777) A armadilha do jabá (14.9.2005)



Como trabalho em casa, passo a tarde com a TV ligada, acompanhando as CPIs. Para um sujeito avoado como eu, que vive pesquisando a Idade Média ou a vida em outros planetas, é um saudável antídoto, uma overdose de vida real. O mundo é isto que estamos vendo: indivíduos engravatados, de fisionomias sórdidas e discursos monotonamente patrióticos, praticando uma absurda promiscuidade financeira numa busca incansável por dinheiro, dinheiro, dinheiro. Eu ando com tanta raiva de dinheiro que toda vez que pego numa nota a vontade que eu tenho é tocar fogo, e só um restinho de bom-senso me dissuade.

Existe uma curiosa semelhança entre as falcatruas que estão sendo expostas na República e uma outra indústria-do-golpe que nós, músicos e compositores, conhecemos há muitos anos. Trata-se da indústria do “jabá”, o suborno pago aos donos de programas ou de emissoras de rádio para que determinadas músicas sejam executadas. É a mesma relação que ocorre entre burocratas do Governo e empresários que buscam ganhar concorrências e contratos.

Tudo começou aos poucos. Num “antigamente” remoto, os discos eram enviados para as emissoras, e no meio das centenas de discos recebidos os titulares dos programas escolhiam aqueles de quem gostavam, e passavam a tocá-los. Era um processo aleatório, baseado no gosto individual de cada radialista. As gravadoras enviavam os discos, e cruzavam os dedos, esperando que alguém gostasse e tocasse, para que a música “pegasse” junto ao público e o disco fosse comprado.

Ora, cruzar os dedos e esperar não é uma atitude muito pragmática. As gravadoras começaram a telefonar, oferecer mimos e vantagens, dar ingressos de graça, viagens de graça, e assim por diante. Daí a coisa passou para a gorjeta, a propina, o numerário, o mensalão. As gravadoras ficaram inebriadas de poder: “Até que enfim, podemos obrigá-los a tocar o que queremos! Basta comprá-los!” Só que o tempo passou e a coisa foi mudando. Os radialistas descobriram que estavam aceitando regras alheias num jogo que era, afinal de contas, no campo deles e com a bola deles. Eram as gravadoras que precisavam das rádios, e não o contrário. E a situação se inverteu. Os radialistas passaram a ditar as regras do jogo: em vez de aceitar suborno, passaram a exigir suborno, dentro de condições ditadas por eles.

As duas situações coexistem hoje; há lugares onde as gravadoras são mais fortes, e lugares onde as rádios mandam. Porque trata-se, na verdade da boa e velha Lei do Mais Forte. É difícil convencer essas pessoas de que um processo tão crucial deve ser deixado ao deus-dará, às venetas pessoais de quem escolhe a programação. A situação hoje em dia está tão envenenada que tornar-se disco-jóquei é objetivo de indivíduos que nem sequer gostam de música, mas querem estar diante de um microfone para poder cobrar propina. O capitalismo é um Rei Midas: tudo que toca transforma em ouro. E tudo que é vivo, e que vira ouro, morre.

0776) Contos Fantásticos em Borges (13.9.2005)



Leitores habituais desta coluna terão constatado a minha admiração talvez excessiva, mas nunca injustificada, pela obra de Jorge Luís Borges. Volta e meia, aqui estou eu recorrendo a um exemplo ou a uma citação borgiana para elucidar esta ou aquela questão. A verdade é que leio Borges há 33 anos, e num cálculo superficial constato que tenho cerca de 45 livros dele (ou sobre ele) em minhas estantes. É o segundo escritor de quem possuo mais livros (o primeiro é Ellery Queen), e um dos que conheço mais a fundo. Em vista disto, peço licença para divulgar o lançamento da antologia Contos Fantásticos no Labirinto de Borges, que organizei para a editora Casa da Palavra (Rio), e que estará sendo lançada oficialmente hoje no Rio de Janeiro. Haverá um debate na Livraria da Conde, no Leblon, onde estarei ao lado da escritora Heloísa Seixas, ela também autora e editora de antologias de contos fantásticos.

Borges tem sido incluído dentro da onda do “realismo mágico latino-americano” desde a década de 1960, o que talvez não lhe tenha sido muito favorável. O rótulo de Realismo Mágico tem sido associado prioritariamente a escritores muitíssimo diferentes de Borges: Garcia Márquez, Miguel Ángel Astúrias, Juan Rulfo, Manuel Scorza e outros. Escritores com uma forte influência rural, com narrativas impregnadas de ambiente (o que as aproximava do romance regionalista) mas que transcorrem num plano supra-real, misturado a elementos do mito, da lenda e do sonho. Descrevem a sociedade patriarcal e caudilhesca da América Latina, de mistura com elementos fantásticos e sobrenaturais. Um tipo de literatura que no Brasil foi praticada em obras como Incidente em Antares de Érico Veríssimo, Dona Flor e seus dois maridos de Jorge Amado, e outros.

Se o que Borges faz é Realismo Mágico, então é de uma natureza totalmente diversa, e é o que procuro examinar nesta antologia, que reúne 18 contos de autores cuja influência Borges sempre admitiu (Kafka, Poe, Stevenson, Léon Bloy, Chesterton, Hawthorne, Wells) e de outros que ele lia e apreciava, embora muita gente não saiba: Ray Bradbury, Lord Dunsany, Marcel Schwob... e Ellery Queen. Os contos selecionados usam temas muito próximos a alguns dos temas preferidos de Borges (o livro impossível, o tempo cancelado, o objeto com um lado só, o labirinto, o objeto inesquecível, etc.), e mostram que o fantástico, em Borges, está mais próximo do Fantástico europeu do século 19 do que do Realismo Mágico latino-americano do século 20.

Toda antologia deve valer pelos contos que apresenta, e não pelos textos teóricos que os acompanham. No presente caso, todos os contos têm enredos e situações fascinantes, além de serem de grande interesse para um eventual leitor de Borges. Vários deles, pelo que sei, estão sendo publicados no Brasil pela primeira vez. Confiram no saite da editora: http://www.casadapalavra.com.br/.

0775) As ruínas dos satélites (11.9.2005)



Jonas Bendiksen é um fotógrafo norueguês, da agência Magnum, que tem viajado pelos territórios da antiga União Soviética documentando o que existe por lá depois do esfacelamento daquela colcha-de-retalhos étnica e histórica. Este torvelinho político e geográfico é uma das coisas mais fascinantes de nossa época, e a obra de escritores como William Gibson (Idoru, Padrões de reconhecimento) e Bruce Sterling (Piratas de Dados) é uma investigação constante destes desvãos da História que só aparecem nas manchetes dos jornais quando acontece por ali uma catástrofe como o massacre da escola de Beslan, o acidente nuclear de Chernobyl ou o afundamento de um submarino.

As fotos podem ser vistas no saite do jornal Le Monde, em: http://www.lemonde.fr/web/vi/0,47-0@2-667725,54-683620@51-683131,0.html. Clicando-se no link que diz “Si la fenêtre avec le portfolio ne s’ouvre pas, cliquez ici”, aparece uma animação em flash com 45 fotos, muitas delas magníficas. Na abertura, um texto explica que com o colapso da ordem soviética muitas regiões remotas ficaram meio que à deriva; não pertencem mais a um governo central mas ao mesmo tempo não são estados independentes, tornando-se uma espécie de satélites, apêndices étnicos que não foram oficialmente extirpados de alguma república vizinha.

Para mim são particularmente comoventes as fotos do lixo espacial, feitas numa região desértica onde caem as partes descartadas dos foguetes que os russos mandam ao espaço. Segmentos inteiros dessas naves, do tamanho de um vagão de trem, descem do céu trovejando e em chamas, e espatifam-se contra o chão do deserto. Sempre que um deles é avistado (grupo de catadores de lixo ficam de tocaia, após os lançamentos, com binóculos), os caras pulam dentro dos carros, ligam o motor e partem à toda para lá. Com maçaricos e serras, eles desmancham os pedaços de foguete para vender o metal –ligas de titânio caras e resistentes.

Também há fotos de viciados em drogas aplicando-se injeções no meio de salões dilapidados onde resta apenas um tapete persa na parede (a última coisa que falta vender); vacas tombadas num prado verdejante, mortas depois de beberem água poluída; imensos conjuntos habitacionais em ruínas; um bizarro ritual de batismo em que é cortada no gelo de um lago uma abertura em forma de cruz, para que o batizado seja imerso na água geladíssima e depois reanimado com alguns copos de vodka pura.

O mundo globalizado é como uma metrópole, e esses países sem nome são os becos e arrabaldes entregues à sua própria sorte, lugares “boca quente” onde as pessoas sobrevivem como podem, acreditam no que querem, drogam-se com o que estiver ao seu alcance, e esperam a vida passar como esperamos o fim de um pesadelo que tivemos a sorte de descobrir ser um pesadelo antes mesmo de acordarmos. É o mundo de hoje, e é um inquietante trailer do mundo de amanhã.

0774) Cheiro de 82 (10.9.2005)


Domingo passado a Seleção Brasileira deu um show de bola de 28 minutos, quando marcou quatro gols no Chile e liquidou o jogo que a classificou para a Copa da Alemanha. Durante esse tempo, a Seleção fez o que todo torcedor sonha: apossou-se da bola com autoridade, imprensou o adversário em seu próprio campo, exibiu classe, técnica, velocidade, consciência tática. Defendeu-se com firmeza e atacou com entusiasmo, não esquecendo a malícia e a ginga. Bastou isto para na segunda-feira a crônica esportiva entrar no delírio ufanista de sempre, falando em favoritismo e “rumo à consagração”. O brasileiro tem essa mania de superar um obstáculo e achar que “agora é só correr pro abraço”. Calma com o andor, pessoal. Vejam só o que aconteceu com o PT.

Sinto um cheiro de 1982, quando a Seleção de Telê Santana – a minha favorita em todos os tempos – saiu rumo à Copa da Espanha já com o carnaval da vitória sendo preparado a todo vapor. Lembro que após a última goleada antes da viagem, a “Veja” publicou uma extensa matéria em que inclusive, com recurso a gráficos e desenhos, explicava inebriada as principais jogadas de ataque do time que tinha também o seu quadrado mágico (Cerezo, Falcão, Zico e Sócrates). A derrota desse time foi um tsunami moral do qual levamos anos para nos recuperar.

Quando o Brasil começou a disputar as Eliminatórias, escrevi um artigo (“A Copa do Mundo é nossa”, 7.9.2003) em que afirmava: “Hoje o Brasil começa uma caminhada rumo ao altar dos sacrifícios. Nenhuma força política, econômica ou futebolística da Europa permitirá que em 2006 cheguemos aos seis títulos, deixando Itália e Alemanha nos três atuais.” Com ou sem quadrado mágico, com ou sem favoritismo, pedaladas, com ou sem o Melhor do Mundo ou o Imperador, preparem-se, porque vamos cortar um dobrado. Temos cinco Copas; Alemanha e Itália têm três cada uma. Se permitirem que cheguemos aos seis títulos, nunca mais nos alcançarão. A Copa do ano que vem vai ser, principalmente para a Alemanha, como aquele “game” decisivo no tênis, quando um jogador em desvantagem tem a chance de quebrar o serviço do adversário e no “game” seguinte sacar para igualar a contagem. Caso não o consiga, será deixado para trás de forma quase irreversível, e só um desastre poderá salvá-lo.

Desta vez é a Alemanha quem está sacando (para manter a metáfora tenística), por jogar em seu próprio terreno; jamais pode se dar o luxo de não ganhar este torneio. O Brasil tem sem dúvida uma equipe magnífica: ganhou com brilho a Copa América e a Copa das Confederações. Mas está, perigosamente, atingindo seu ponto máximo um ano antes da verdadeira disputa – justamente o que aconteceu com a Argentina na última Copa, que era um time assombroso em 2001 e pagou um mico histórico um ano depois. Agora – se por acaso a gente ganhar no ano que vem, a gente bota vantagem, e pode até mandar o Flamengo representar o país na Copa de 2010.