Ouvimos isto o tempo todo: “É preciso popularizar as grandes obras da literatura, atrair a atenção do jovem, mostrar-lhe a existência dos grandes autores”. Concordo. Meu primeiro contato com a obra de Cervantes foi através do Dom Quixote das Crianças de Monteiro Lobato. E não acho nada demais confessar que até hoje só li as versões infanto-juvenis de obras como as Viagens de Gulliver de Swift ou o Robinson Crusoe de Defoe. Sei que perdi o filé, principalmente no primeiro caso, mas o que importa é que pelo menos fiquei sabendo que aquela história existia.
Leio num blog qualquer que nos EUA um “rapper” está transportando para a linguagem do “rap” a grande obra de Geoffrey Chaucer, os Canterbury Tales, uma obra que está para a língua inglesa assim como a Divina Comédia (olha outro que não li ainda!) está para a italiana e Os Lusíadas para a portuguesa. Os contos de Canterbury (ou “da Cantuária”) são do século XIV, obedecem a uma gramática e a uma ortografia muito diferentes da atual, e já foram adaptados em verso, em prosa, com linguagem modernizada, etc. (Também já foram filmados, e a verão mais conhecida é a de Pier Paolo Pasolini, em 1972).
Por que, então, não repassá-los também para a linguagem dos isqueitistas e dos grafiteiros? Aqui vai um trechinho. Primeiro, no original: “And up they stirte, al dronken in this rage / And forth they goon towardes that village / Of which the taverner hadde spoke biforn / And many a grisly ooth thanne han they sworn”. Na versão rap: “When he'd said his piece / The rest agreed, and the three friends hit the streets / And went to seek their destiny and provoke a confrontation, / In a drunken rage hoping Death would come and face them. / Their intoxication made them sure of their purpose”. Não tenho espaço aqui para traduzir, mas dá pra perceber que não se trata exatamente do mesmíssimo texto, não é?
O que é isto? Uma afronta à obra de arte, uma deturpação? Para mim trata-se simplesmente de uma tradução. Se os Contos de 1400 já foram traduzidos para o dezenas de línguas, inclusive o português, por que não para o inglês de 2005? O que acho preocupante é outro tipo de transposição, justamente aquela que cito no primeiro parágrafo. É a tal da adaptação para quem não pode assimilar o original – no caso crianças e adolescentes. Por melhores que sejam as intenções de quem adapta, o que ele está fazendo é simplesmente manter uma metade da obra (o enredo e os personagens) e amputar a outra (o estilo). Isto pra não falar no fato óbvio de que episódios secundários são cortados por inteiro (ou resumidos) nessas adaptações. Elas têm seu valor, e bons escritores como Orígenes Lessa, Paulo Mendes Campos e outros já pagaram o leite-das-crianças resumindo e adaptando clássicos da literatura. Mas... cuidado. Uma adaptação deve ser como um trailer, que serve apenas para abrir o apetite e dar vontade de ver o filme.