terça-feira, 13 de janeiro de 2009

0751) A ida e a volta (14.8.2005)


Era uma vez um jovem pastor espanhol, que vivia apascentando seu rebanho de cabras ou de ovelhas. Dormia numa velha igreja abandonada, ao pé de um enorme sicômoro que crescera por entre as ruínas. Uma noite sonhou com um tesouro, enterrado junto às pirâmides do Egito. Juntou tudo que tinha e saiu de mundo afora. Muitas peripécias e duzentas páginas depois, chegou ao pé da pirâmide, e foi cercado por tuaregues desconfiados. Quando explicou o que o trouxera até ali, o chefe do bando riu na cara dele. “És muito leso, ó jovem pastor que acreditas em tesouros. Eu sonho há anos com um tesouro que está escondido numa igreja em ruínas, nas raízes de um velho sicômoro. Mas tu acha que eu sou besta de perder meu tempo indo atrás disso?” O pastor pegou o caminho de volta, cavou nas ruínas da árvore, encontrou o tesouro e ficou rico, embora não tão rico quanto Paulo Coelho, autor de O Alquimista, onde esta história é contada.

Eu conheço essa história desde pequeno. Meu pai a contava como tendo acontecido com um rapaz que morava numa fazenda em Minas Gerais, que sonhou com um tesouro enterrado numa ponte do Recife, foi até lá, e um soldado de polícia lhe disse que sonhara com um tesouro enterrado numa fazenda assim-assim-assim, foi só voltar, tirar o tesouro e correr pro abraço. Minha irmã Clotilde usou essa história como uma das narrativas em seu livro A Botija. Aliás ela e Paulo Coelho estão em muito boa companhia, porque Jorge Luís Borges fez a mesma coisa em sua História Universal da Infâmia, no conto intitulado “História dos Dois que Sonharam” (que ele alega ter pegado das Mil e Uma Noites, noite 351): um sujeito no Cairo sonha com um tesouro em Isfahan, na Pérsia, vai até lá, encontra com um cara que sonhou com um tesouro no Cairo, bibibi, bobobó.

Plágio? Imitação? Inconsciente coletivo? Prefiro pensar que essas histórias tão diferentes, mas todas baseadas numa mesma mecânica estrutural, exprimem uma verdade profunda, através dessa estrutura mítica comum a todas. Existe uma sabedoria cósmica por trás de todo esse trajeto que, à primeira vista, é percorrido em vão. Uma pessoa simplória vai comentar; “Coitado! Morava em cima do tesouro, e teve que passar tanto sacrifício! Por que não sonhou logo com o tesouro no lugar onde estava?” A resposta para isso é (eita, meu destino é ser escritor de auto-ajuda!) que mais importante do que achar o tesouro é ter a experiência e a maturidade para administrá-lo, e isso o camarada só adquire fazendo a tal viagem aparentemente inútil.

E é a mesma verdade profunda expressa por T. S. Eliot nos Quatro Quartetos: “We shall not cease from exploration / And the end of all our exploring / Will be to arrive where we started / And know the place for the first time”. Ou seja: “Nossa exploração nunca vai cessar / e o fim de todas as buscas / será voltarmos ao ponto de partida / e conhecermos aquele lugar pela primeira vez”.

0750) Festa no Clube Dumas (13.8.2005)


Uma coisa que eu questiono muito é a mania de se publicar, após a morte de um escritor, tudo que ele deixou inédito. Em alguns casos (Fernando Pessoa, Kafka) vale a pena, porque o material inédito era igual ou superior ao que o cara tinha publicado. Mas na grande maioria dos casos o que se dá é a revelação constrangedora de tudo que o cara tentou e não deu certo. Alguém dirá: “Mas, se não prestava, por que o próprio autor ficou guardando?” Existem duas respostas. Uma, é que a gente sempre acha que um dia dá pra pegar aquele romance inédito de 200 páginas, cortar tudo que não presta, e aproveitar trechos que têm algum valor. Outra, é que independentemente do valor estético essas coisas têm um valor afetivo. Textos literariamente medíocres podem valer como registro de momentos da vida, de estados emocionais, uma espécie de diário íntimo que não devemos publicar mas que faz bem reler de vez em quando, até para podermos ter a ilusão de que evoluímos um pouquinho desde então. É como guardar os velhos cadernos do ginásio ou velhas agendas de vinte anos atrás. Ajuda a não esquecer quem fomos.

O bom, no entanto, é quando se descobre um manuscrito inédito de um autor, e aí há motivos para ir à janela e soltar uma pistola-de-3-tiros. Aconteceu poucos anos atrás com Julio Verne, de quem se encontrou o manuscrito de Paris no Século XX, livro que na época foi rejeitado pelo editor por ser pessimista demais. Aconteceu de novo agora, quando o pesquisador Claude Schopp, especialista em Alexandre Dumas, localizou na coleção de um obscuro jornal francês do século 19, Le Moniteur Universel, os 188 capítulos de Le Chevalier de Sainte-Hermine, um folhetim que Dumas deixou incompleto ao morrer em 1870. A morte do autor e a guerra franco-prussiana certamente ajudaram a mergulhar o folhetim no esquecimento. Em 1988 Schopp localizou o texto (em microfilme) numa biblioteca, e dedicou os anos seguintes a copiá-lo e corrigi-lo. Lançado em forma de livro em 2005 (com os capítulos finais, que Dumas não pôde concluir, escritos pelo próprio Schopp) o romance, com mais de mil páginas, virou best-seller na França. É como o sujeito morrer hoje e ainda ter livro sendo lançado em 2140.

Alguns leitores hão de recordar O Clube Dumas, de Arturo Pérez-Reverte, excelente romance de mistério lançado aqui no Brasil alguns anos atrás, em que um grupo de leitores fanáticos por Dumas se reúne para trocar informações sobre sua obra. O Clube deve estar em festa. Dumas escreveu copiosamente, e mantinha redatores assalariados a quem “terceirizava” partes da obra, como os autores de telenovela fazem hoje: explicam o que deve acontecer na cena, e o outro executa o trabalho braçal de escrever a ação e os diálogos. Tinha o propósito, como Balzac, de contar a história da França através de uma série de romances sucessivos, e é autor de uma frase deliciosa: “É lícito violentar a História, se com isto gerarmos um filho”.

0749) O ensino das ciências (12.8.2005)



Esta é uma questão que volta e meia retorna com força total (e mais ainda para quem tem filhos no colégio). Vale a pena mesmo estudar aquela xaropada toda? De que adianta saber de cor os elementos Monovalentes, Divalentes, Trivalentes e Tetravalentes? Algum dos caros leitores já precisou, na vida real, extrair uma raiz quadrada? Ou saber a diferença entre uma planta monocotiledônea e uma dicotiledônia, ou entre uma autótrofa e uma heterótrofa? Vocês lembram a fórmula de “x” que resolve uma equação do segundo grau? (Taí, essa eu lembro!).

Cada um de nós que é pai ou mãe já passou pela experiência de enfrentar um adolescente em patético desespero, perguntando: “Mas por que é que eu tenho que saber essas coisas? Será que eu vou precisar disso?” Minha geração foi uma geração privilegiada, porque quando chegávamos aos 16 anos terminávamos o antigo Curso Ginasial e tínhamos dois caminhos para escolher: o Curso Científico e o Curso Clássico. No Científico, iríamos estudar Física, Química, Biologia, Matemática, etc. No Clássico, as matérias seriam Latim, Filosofia, Sociologia, Geografia, História, etc. Eu não tinha a menor paciência nem o menor interesse pelas matérias do Científico, mas a escolha não era fácil, até porque corria à boca pequena que “fazer o Clássico era coisa de viado”. Graças a Deus fui reprovado na 3a. série ginasial, e com isto ganhei mais um ano para criar coragem.

E não é que eu detestasse a Ciência. Nessa época eu devorava livros de ficção científica à razão de um por dia, e tinha toda a curiosidade do mundo em saber qual o formato do Universo, se era possível viajar no Tempo, se existiam mesmo universos paralelos, se era possível interferir no mundo das partículas infinitamente pequenas... Naquele tempo não tinha Carl Sagan nem Stephen Hawking, infelizmente, mas só eu sei o quanto devo a livros como Nós e a Natureza de Paul Karlson ou O Livro da Natureza de Fritz Kahn, e a outros divulgadores científicos como George Gamow e Henry Thomas.

O que há é que o ensino das ciências no Colégio é uma massa enorme de informações a serem retidas na base do decoreba, e de fórmulas que devem ser exaustivamente praticadas para serem aplicadas como soluções “pré-moldadas” para quaisquer problemas. Coitados dos professores, os menos culpados por isto. O aluno quer passar, primeiro que tudo; e depois quer ter um diploma e conseguir resolver os problemas técnicos com que vai se deparar. O colégio não ensina a pensar a Ciência, questionar a Física, investigar a Química, explorar a Matemática. Nossos cursos secundários (e, ouso dizer, a maioria dos cursos universitários) são cursos técnicos, oficinas de qualificação de mão-de-obra técnica. Quando um garoto pergunta “para quê”, o pai não pode dizer: “Para entender o Universo e a Vida Humana”. Ele tem que dizer: “Pra ver se você se forma, e arranja um emprego melhorzinho do que o meu”.

0748) A desconfiança capitalista (11.8.2005)




Algum tempo atrás, a artista plástica Ana Teixeira foi parar na 5a. DP quando fazia uma “intervenção artística” na feirinha do Bexiga, bairro tradicional de São Paulo. 

Ali acontece toda semana uma feirinha numa praça da rua Treze de Maio. A artista montou sua barraquinha, e colocou uma placa: “Outra Identidade”. Ali, ela oferecia réplicas de carteiras de identidade nas quais, em vez do nome e da foto, o cliente podia escolher uma entre dez frases, como “ainda tenho tempo” ou “não tenho certezas”. 

Feita a escolha, a réplica era feita, plastificada, e a pessoa a levava consigo, deixando antes a sua impressão digital num caderninho que funcionava como uma espécie de “livro de presença”.

Ótimo! Em matéria de performance artística ou de instalação conceitual, acho muito mais interessante do que mandar cem baldes de lixo para a Documenta de Kassel sob o título “Pré-Apocalipse Pós-Moderno”. 

O interessante, no entanto, é a confusão que a artista causou sem querer. Uma mulher recusou-se a deixar a impressão digital no caderno: “Sei lá o que ela vai fazer com isso!” Não adiantou dizer que as digitais não eram identificadas como sendo de Fulano ou Sicrano. Gerou-se um bafafá, e algumas pessoas foram reclamar à polícia. 

O delegado ouviu ambas as partes e deu a sentença: “Não houve crime, foi só um mal-entendido, é um trabalho de finalidade artística, perfeitamente plausível”. Já pensou um delegado dizendo isso? Pra mim é prova cabal de que Deus existe.

Mas o mais cruel vem no fim da notícia, quando Ana Teixeira relata: “O que me impressionou foi a lógica do capital que rege a cabeça das pessoas. Todo mundo ficava me perguntando como eu estava fazendo aquilo sem ganhar nada, sem pedir pagamento. Alguém disse que, se pelo menos eu fosse patrocinada por alguma grande empresa, poderia acreditar em mim, mas como eu não visava nenhum lucro, devia estar com "armação'". 

Vejam como a profissionalização do esporte olímpico, por exemplo, já impregnou em nossa mentalidade coletiva a noção de que quem faz algum tipo de trabalho criativo (com o corpo ou com a mente) deve ser patrocinado por uma empresa e servir-lhe de garoto(a) propaganda.

Se todo mundo cobra pra fazer seja lá o que for, que papo é esse de Fulano fazer de graça? É uma lógica perversa, mas com uma relação profunda com o espírito dos tempos atuais (“Se todos nós fazemos assim na política, quem são esses caras para dizerem que não fazem também? Vão fazer, sim, deixa comigo”). 

Eu nada tenho contra o dinheiro (se vocês pensam que escrevo de graça aqui no JPb, podem tirar o cavalinho da chuva), mas o episódio de Ana Teixeira mostra que o mais difícil na arte de hoje em dia não é mostrar ao público que você é um grande artista. É convencer o público de que você não está fazendo aquilo somente pra faturar uma “baba” de grana em patrocínio, merchandising, verba por-fora e lavagem de algum caixa-dois.