segunda-feira, 27 de julho de 2020

4604) Palavras do Dicionário Paraibano (27.7.2020)




(xilogravuras: Stenio Diniz, Juazeiro-CE)

Uma confusão frequente de quem tenta se comunicar com um nordestino é o fato de que há inúmeras palavras da língua portuguesa que no Nordeste (ou em certas partes do Nordeste, região mais heterogênea do que se pensa) se usa de outra forma.

Esses usos, de palavras aparentemente banais, são tão tipicamente nordestinos quando termos tipo “oxente”, “gota serena” ou “amulestado”. Já referi neste blog termos como vexado – que no Sudeste significa “constrangido, envergonhado” e no Nordeste quer dizer “apressado”.

Aqui vão mais alguns desses “falsos amigos” que nos levam a ouvir uma coisa e entender outra.


MANEIRO
No Rio, é uma gíria relativamente recente (falo de quinze a vinte anos para cá) para dizer “bacana, legal, ótimo”. No Nordeste, quer dizer “leve”. 

“Deixe eu carregar a mala grande, você leva essa valise que é mais maneira”. 

“Ele falou que o baú era bem maneirinho, mas precisou de três pessoas pra botar em cima da caminhonete”. 

Depois de sessenta dias
alta noite em nevoeiro
Evangelista chegou
em seu pavão tão maneiro
desceu pela mesma trilha
a seu modo traiçoeiro.

(João Melquíades Ferreira, Romance do Pavão Misterioso)

Menina, minha menina,
me escuta, qu'eu te carrego,
ai, me bota dentro do seio
ai, qu'eu sou maneiro e não peso.

(Peça popular de mamulengos, em O Mundo Mágico de João Redondo, de Altimar de Alencar Pimentel, pag. 105)


ENGUIÇAR
Em todo lugar do mundo, “enguiçar” é “dar pane, dar defeito”, e se aplica a um carro, um motor, uma máquina qualquer.

No Nordeste, é passar andando por sobre o corpo ou as pernas estendidas de alguém que está sentado no chão.  Diz a superstição popular que quando isto acontece a pessoa que foi “enguiçada” não cresce mais. Acredita-se que para anular o efeito basta “desenguiçar”, desfazer o ato, passar de trás para diante. 

“--Ei!  Que história é essa de vir entrando e enguiçar a gente?  Pode voltar, e desenguiçar!”

Também já vi ser atribuído ao ato de “enguiçar” o poder de cura contra mau-olhado. 

“Esse menino só vive doente ultimamente!  Tá bom de alguém enguiçar ele, isso deve ser mau-olhado.”

E ali com um punhal
para Adriano avançou
mas Adriano ligeiro
por cima dele saltou
então quando o enguiçava
mesmo no vão lhe cravou.

(Expedito Sebastião da Silva, “Adriano e Joaninha”, em Expedito Sebastião da Silva, Ed. Hedra, SP, pag. 165)




RAZÃO
Usa-se muito como sinônimo exato de "arrogância, prepotência":

"Ei, que razão é essa?  Quem é você pra vir me dar ordens?"  

"Fulano é muito engraçado: a gente faz o trabalho todo, resolve todos os problemas, aí quando é depois ele chega, com a maior razão do mundo, botando defeito em tudo."  

É mais frequente na expressão "cheio de razão":

"Estava tudo muito tranquilo, mas de repente chegou um cara todo cheio de razão, dizendo que era amigo do dono do bar e que aquela mesa era dele."   


ABUSAR
O sentido mais comum hoje em dia tem a conotação de “abusar sexualmente, violentar”. Acho que a palavra vem de “ab + usar”, que significa algo como “usar excessivamente, extrapolar, ultrapassar os limites”. É essa a idéia base, e os usos particulares de cada ambiente social vão transferindo a palavra de um sentido para outro.

No Nordeste usamos o verbo como “enjoar, ficar saciado”.  Usa-se com diversas regências:

"Depois que eu abusei futebol, estou há mais de dez anos sem pisar num estádio". 

"Eu abusei daquele bar, porque os garçons tratam muito mal a gente". 

"O doce-de-leite que minha mãe faz é bom, mas abusa, eu só aguento comer um pratinho e pronto".  

Existe o provérbio "Tudo de mais abusa".  

Pinto fêz coisas difíceis
de outra pessoa fazer:
fez o tempo lhe esperar
e a morte lhe obedecer,
só aceitou ir com ela
quando abusou de viver.

(Zé Luiz, cit. em Um século e meio de repentes, de Edvaldo Muniz de Melo, pág. 269)




RAPOSA
Não sei que associação de idéias está por trás disso, mas “raposa” é um modo de comer feijão com farinha, amassando-o entre os dedos até formar pequenos bolos bem compactos; muitas mulheres preferem alimentar os filhos pequenos assim, em vez de com a colher. 

“Se lembre bem: quando chegar na casa do seu tio não é pra comer o feijão feito raposa não, é com o talher!” 

Também se chama “cancão” e "capitão".  


FEITO
Usa-se na mesma função de “como”; termo de comparação. 

“É uma comida esquisita, feito um pirão frio, temperado”. 

“Ele estava usando um troço de metal na cabeça, feito um capacete.” 

“Fiquei ali feito um idiota, e todo mundo mangando de mim.”



APITAR
Em todo canto “apitar” é soprar um apito. Em cresci ouvindo essa palavra como sinônimo de “buzinar” (o carro).  Já foi de uso generalizado no Nordeste, mas está desaparecendo nas últimas décadas, pelo menos nos ambientes por onde eu ando. 

Quando você chegar lá em casa, apite, que eu desço rapidinho”. 

“Olha que coisa, o cara passou direto no sinal vermelho, nem apitou nem nada”. 

“A coisa que eu tenho mais raiva é esse tipo de alarme que basta a gente encostar num carro e ele passa dez minutos apitando”.


RISCAR
Chegar de repente, às pressas. É uma imagem bem concreta, de quem chega fazendo atrito no chão, freando um carro, uma bicicleta, pisando com força etc.

“Eu já estava desistindo de esperar e ia chamar um táxi, mas quando deu sete e meia ele riscou com o carro lá em frente, falou que tinha ficado preso num engarrafamento”.

Ela aí chamou o rei
Ligeiramente mostrou,
O rei também conheceu
Bastante se alegrou,
Bem na porta do palácio
O seu cavalo riscou.

Do seu cavalo apeou
Para no palácio entrar
Já o rei e a rainha
Vieram lhe encontrar
Levaram ele nos braços
Para a saudade matar.

(Minelvino Francisco da Silva, “O filho de João Acaba-Mundo e o Dragão do Reino Encantado”, em Minelvino Francisco da Silva, pag. 112)



TIMÃO
Acho que no Brasil todo essa palavra já perdeu o sentido original de “a roda que se usa parar manobrar o leme e dar direção ao barco” e passou a ser visto como o apelido do time do Corinthians paulista. Cujo símbolo visual, aliás, é um timão, uma roda-do-leme.

No Nordeste é o termo (em desuso) que se dava a um tipo de camisão comprido, usado antigamente pelas crianças. 

Meia comprida,
não quer mais sapato baixo
vestido bem cintado
não quer mais vestir timão.
Ela só quer,
só pensa em namorar.

(Luiz Gonzaga, O Xote das Meninas, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas)


TORNAR
O sentido mais comum é de voltar, vir de volta, repetir uma ação (“Ele tornou a ligar para casa, mas ninguém atendia”. No Nordeste se usa como “voltar a si, recuperar a consciência”. 

"Minha mãe se sentiu mal na fila do banco, aí, quando tornou, estava deitada num sofá na sala do gerente, e ouviu uma moça dizendo: 'Tá viva, graças a Deus!'"

Quando acordei do "ataque", da "grande aura" que só acomete os gênios, Margarida estava sustentando minha cabeça em seu colo alvo e aristocrático, e um Soldado de Polícia esperava, impassível, que eu "tornasse", para me dar um copo d'água que ele segurava na mão, mantendo o resto do corpo em posição de sentido.
(Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino, Folheto LXIV)



FITEIRO  
No Nordeste é substantivo, e corresponde ao que no Sudeste seria chamado de “quiosque”, “barraca” (na forma de tendas metálicas desmontáveis e portáteis, cobertas por uma lona ou um plástico): um pequeno ponto de venda de miudezas como brinquedos, cigarros, utilidades caseiras, balas, chocolates, flâmulas, e ocasionalmente revistas.

Geralmente na forma de uma estante de madeira, com portas que podem ser trancadas a cadeado, encostada num muro, na calçada. Não é exagero imaginar que em algum momento ali também se vendiam fitas de tecido, coloridas, para enfeite.

“O nome dele é Zezinho, ele tem um fiteiro ali perto da esquina”. 

“Corre ali no fiteiro e vê se acha um cortador de unhas.”


A MULHER
É um modo de tratamento curioso, meio machista, que alguém usa para se referir à esposa.  Quando diz “a mulher” está querendo dizer “minha esposa”, mas esse tratamento me parece mais ríspido e distanciado do que dizer “minha mulher”, que mesmo impondo o sentido de posse implica também numa proximidade afetiva. Quando o cara diz “a mulher” é como se dissesse “aquela mulher que tem lá em casa, a que toma conta das coisas.

“Acho que eu vou pra casa, por que eu disse à mulher que ia jantar cedo”. 

“Ontem teve um barulho lá no quintal, a mulher acordou assustada, eu achei melhor avisar o vigia”.