segunda-feira, 31 de março de 2008

0340) A Interferência (22.4.2004)




A raiva é uma dessas emoções boas de analisar, porque poucas conseguem com tanta rapidez e eficiência tomar as rédeas do juízo dum sujeito. Já vi uma mocinha miúda e tímida encurralar meia dúzia de marmanjos, aos gritos, porque um deles soltou-lhe uma piada inofensiva. Já vi um motorista de ônibus tirar-um-fino de propósito num chapeado que carregava pacificamente suas tralhas pelo meio da rua, e esse chapeado perseguir correndo o ônibus ao longo de uns cinco quarteirões (eu era um dos passageiros) até alcançá-lo num sinal vermelho, invadi-lo, e cobrir o motorista no bofete. Já vi (quem se lembra?) no Presidente Vargas, num jogo noturno Treze x Auto Sport, o jogador Augusto quebrar o lábio do zagueiro Cidão com uma pedra, dando início a uma perseguição sem tréguas em que o beque trezeano (Cidão era uma espécie de Mauro Silva, só que mais torado-no-grosso) perseguiu Augusto pelo gramado inteiro, arrombou as duas portas do vestiário e só foi contido por um destacamento inteiro da polícia. (Ah, sim, o jogo não prosseguiu: acabou ali mesmo).

Vou fazer uma comparação. Quando eu era pequeno, não existiam as redes de TV que existem hoje, as estações repetidoras, etc. Víamos a TV Borborema, canal 9, ou então os dois canais de Recife: a TV Rádio Clube (canal 6) e a TV Jornal do Commercio (canal 2). Devido à distância, a recepção estava longe de ser ideal. Era uma imagem (preto-e-branco, claro) granulosa, esfarelada, que parecia feita basicamente de pó-de-carvão e açúcar-cristal. E havia a famosa Interferência. Às vezes era desencadeada pela passagem de um caminhão pela rua (acho que as antenas estremeciam, sei lá); ou era o vento, ou eram as tempestades eletromagnéticas provocadas pelas manchas solares... não importa. Estava indo tudo muito bem, estávamos todos amontoados na sala assistindo Quinta Dimensão ou Na Corda Bamba, quando de repente a imagem inteira começava a estremecer e a dar sinais de instabilidade. Estava começando a Interferência.

Primeiro as formas todas começavam a balançar como se alguém estivesse sacudindo vigorosamente o aparelho. O som ia sendo substituído por um chiado cada vez mais alto e insuportável, até que tudo na tela se resumia a uma agitação frenética e caótica de pontinhos pretos, brancos e cinza. A Interferência seguia um padrão: começava devagar, ia se intensificando, atingia um clímax, aí ia se atenuando aos poucos, algumas formas começavam a ser visíveis, o som retornava, substituindo o chiado... Do mesmo jeito que começara, ela ia passando, passando, até a imagem e o som se tornarem novamente nítidos e normais. Normalidade que durava cinco ou dez minutos até a Interferência seguinte. A raiva é uma Interferência. Se o indivíduo conseguir respirar fundo e ficar quietinho até que ela passe, o mundo se salva.

0339) O jogo da traição (21.4.2004)




(Cães de Aluguel, de Quentin Tarantino)

Ontem falei sobre “O dilema da Tosca”, um problema de lógica usado por Anatol Rapoport, inspirado na ópera de Puccini. 

Nela, a heroína da ópera negocia com o chefe de polícia, Scarpia, a libertação do seu amado, Cavaradossi. O policial diz que só o libertará se Tosca se entregar a ele. Firmam o acordo, mas nenhum dos dois pode ter certeza de que o outro cumprirá a palavra. Neste caso, o que será melhor: manter a palavra dada, ou negar-se a cumprir sua parte e esperar que o outro cumpra a sua?

Uma situação parecida aparece com frequência nos casos de sequestro. O sequestrador avisa: “Deixe 1 milhão de reais em tal canto, que eu solto o garoto.” Se ambos cumprirem o combinado, o resultado final será parcialmente satisfatório para todo mundo: o sequestrado volta para casa (mesmo pagando caro por isto), e os bandidos fogem com o dinheiro (mesmo devolvendo seu elemento de barganha). 

Mas como a família pode ter certeza de que os bandidos não vão pegar a grana e matar o sequestrado, para evitar um futuro reconhecimento? E o sequestrador também fica com a pulga atrás da orelha. Como pode ter certeza de que a família não vai depositar no local combinado um saco de dinheiro falso, ou dinheiro “marcado” pela polícia? 

Sempre pode se dar o caso de um dos dois lados ceder à tentação de obter uma “vitória completa”. Vitórias completas desta natureza só ocorrem quando traímos e não somos traídos.

A tentação de trair o oponente, diz Rapoport, é grande porque “quando ambos se traem mutuamente, os dois perdem, mas não tanto quanto perderiam se ele ou ela tivesse feito o papel de tolo”, ou seja, tivesse cumprido a palavra enquanto o adversário lhe passava a perna. 

Situações deste tipo são frequentes na política, e nos últimos anos o exemplo que me vem à mente é o do sofrido processo de desarmamento do IRA, o Exército Republicano Irlandês. Nem o IRA confia totalmente que o governo da Grã-Bretanha vá cumprir as promessas feitas, nem o governo acredita totalmente que o IRA vá de fato entregar todo o armamento de que dispõe, e que não é pequeno. 

Em ambos os casos, a tentação de trapacear é grande.

Em outros casos mais graves, o que existe não é sequer a tentação de trapacear: é uma intenção deliberada de extrair o máximo de vantagens, de esmagar politicamente o adversário. É o caso do conflito entre Israel e palestinos. Para mim, que vejo tudo à distância, parece impossível que se chegue a uma solução diplomática entre dois grupos liderados por indivíduos (Ariel Sharon e Arafat) com uma longa história de militarismo, terrorismo e declarações de ódio. 

Enquanto as lideranças forem indivíduos com este tipo de passado e este tipo de retórica, nenhum acordo será mantido, nenhuma proposta de paz terá continuidade. E enquanto o impasse se arrasta, aumenta o número dos que perderam amigos e parentes e começam a achar que a vingança é melhor do que a convivência pacífica.








0338) O dilema da Tosca (20.4.2004)



Os conflitos entre judeus e palestinos (ou qualquer conflito político onde um acordo tenha que se basear na confiança mútua) me lembram um problema de lógica que Anatol Rapoport, num artigo sobre Teoria dos Jogos, chama de “O dilema da Tosca”.

Nesta ópera de Puccini, Tosca é amante de Cavaradossi, o qual é preso e condenado à morte pelo chefe de polícia, Scarpia. Este diz a Tosca que, caso ela se entregue a ele, dará um jeito para que Cavaradossi seja submetido a uma execução fictícia, e possa fugir.

Tosca, portanto, tem que correr o risco de acreditar que o policial irá cumprir a palavra. Por outro lado, Scarpia sabe que corre o risco de Tosca prometer que irá para a cama com ele, e na hora H mudar de idéia.

Temos aqui uma situação em que cada um dos agentes tem a opção de trair ou não trair o adversário. Os matemáticos atribuem valores a estas opções, para comparar o grau de recompensa de cada uma delas. Vejamos o que acontece, em primeiro lugar, com quem tem a intenção de ser fiel aos pactos assumidos.

Se Tosca mantém a palavra (entrega-se a Scarpia, um sujeito a quem odeia), isto representa uma perda; mas se Scarpia mantiver a palavra (libertar Cavaradossi, o homem que ela ama) isto será uma compensação suficiente. O seu problema acontece no caso de Scarpia a trair, porque neste caso ela terá um prejuízo duplo: entregou-se ao policial, e seu amante acabou morrendo.

A situação do policial Scarpia, do lado oposto, é exatamente a mesma.

Suponhamos que ele queira manter sua palavra e dê a ordem de que Cavaradossi seja libertado, ao partir para seu “rendez-vous” com Tosca. Ele mantém a palavra (liberta seu rival), e isto é uma perda para ele; mas se Tosca fôr fiel ao acordo (entregar-se a ele) isto será uma compensação razoável.

O grande problema, contudo, seria no caso de Tosca resolver traí-lo, porque ele perderia dos dois lados: soltaria o rival, e não possuiria a mulher que deseja.

Parece ser arriscado manter a palavra, aceitar a pequena perda decorrente da concessão que nós mesmos propomos. E o que ocorre se tomamos a decisão de trair, mesmo sem ter certeza da intenção do outro?

Se Tosca decide trair Scarpia (não entregar-se a ele), corre na pior das hipóteses o risco de um “empate” (se ele matar Cavaradossi) mas tem a possibilidade de uma vitória total se Scarpia fôr fiel ao pacto (nem ela se entrega, nem o amado é morto).

O mesmo vale para Scarpia se ele decidir traí-la (dar ordens para a morte de Cavaradossi, independentemente do que ela fizer). Neste caso, o pior resultado para ele é um “empate” (Tosca não se entrega, mas o rival dele morre), mas se Tosca fôr honesta ele, desonestamente, tem uma vitória dupla (possui Tosca, e mata Cavaradossi).

Quando não confiamos no interlocutor, traí-lo parece sempre ser a melhor solução, porque nos garante pelo menos um empate, se ele nos trair também, e uma vantagem caso ele seja honesto.






0337) Proselitismo (18.4.2004)




Existem dois tipos de pessoas: os que pensam que só existem dois tipos, e os que sabem que existem muitos mais. Como eu pertenço a ambos os grupos, penso que há pelo menos dois tipos de gente cuja existência não pode ser negada por nenhuma falácia lógica: os que gostam de liderar e os que gostam de ser liderados. Por isto existem os movimentos ou “ismos”, aos quais as pessoas se engajam por um gesto espontâneo de admiração. Não devemos subestimar o poder de uma visão-do-mundo coerente e nítida. Poucas pessoas conseguem elaborar uma por conta própria. Eu mesmo, por exemplo, nunca consegui. Minha visão-das-coisas é uma colcha-de-retalhos de visões contraditórias, de idéias apanhadas aqui e ali, de teorias que se invalidam mutuamente mas das quais lanço mão por instinto quando quero explicar algo.

Mangue não, viu, camaradinha? A sua visão-das-coisas também é assim. A menos que você se chame, sei lá, Karl Marx, ou Sigmund Freud, ou mais meia-dúzia de sujeitos que conseguiram produzir uma explicação que explica tudo. Esses caras são gênios. Não porque a explicação dada por eles seja mais certa do que as demais, mas porque foram capazes de produzir uma Teoria Unificada da Vida Humana. Não é pouca coisa. Tanto é que eles têm centenas de milhões de seguidores, e nada indica que nos próximos séculos esse número venha a diminuir, mesmo com o aparecimento de novas Teorias Unificadas. No ano 2500, quando nossos tataranetos forem cyborgs ou colonizarem Marte, muitos deles serão marxistas, muitos deles serão freudianos. Anotem aí, e podem vir me cobrar quando eu for ressuscitado pela Ciência futura.

O mais interessante das ideologias é o fervor dos que se dedicam ao proselitismo. É típico das religiões que os recém-convertidos sejam mais ardorosos do que os veteranos. O novo súdito é sempre mais realista do que o rei. Os apóstolos que conheceram Cristo pessoalmente limitavam-se a fazer pregações aqui e ali; Saulo, que era um perseguidor de cristãos, teve uma revelação tão pesada na estrada de Damasco que passou três dias cego, sem comer, e sem beber. Quando ficou bom, virou o maior cristão do mundo.

Eu me acho um sujeito meio superficial, porque não tenho nenhuma crença que eu considere essencial à humanidade. As coisas em que acredito são para consumo interno. Só passo minhas idéias adiante se alguém estiver interessado, e vier me fazer perguntas. Mas o proselitista típico é aquele que procura atingir justamente os alvos mais difíceis. Já passei noites inteiras numa mesa de bar dizendo, “OK, velho, eu sei que Lacan foi um cara importantíssimo, mas não me interessa muito”, ou então “tá, tá legal, eu concordo que o Concretismo é importante, mas não acho que as possibilidades da sextilha já tenham sido esgotadas.” Eu nunca convenci ninguém de coisa alguma, caro leitor. Se você achar que eu estou fazendo propaganda de alguma idéia, largue o jornal, e leia amanhã: estarei falando de algo completamente diferente.

0336) Casas que eu sonho (17.4.2004)





(foto de Gustavo Moura - detalhe)

Uma coisa que me acontece às vezes é sonhar com casas. Claro, muitos sonhos da gente acontecem dentro de casas, apartamentos, etc.; mas estes lugares são meros cenários, mesmo quando são cenários surrealistas ou absurdos, porque o sonho acontece neles, mas não é sobre eles. Comigo, no entanto, acontece sonhar que estou numa casa. “Eu” não sou eu próprio, nem sequer uma pessoa (eu sonho frequentemente que sou outra pessoa qualquer, anônima; que não sou Braulio Tavares, sou um cara desconhecido a quem estão acontecendo aquelas coisas). Mas “nestes” sonhos, eu sou como uma câmara de filmar, que percorre essas casas.

Um detalhe frequente nelas é o que eu chamo a porta-do-interior. É a porta da frente, mas no estilo das cidades do interior: uma porta cortada horizontalmente. A parte de cima é trancada por dentro com uma chave; a gente abre, olha para fora, debruça-se, conversa com quem passa. Quando é preciso entrar ou sair, abre-se a meia-porta de baixo, que é trancada com um ferrolho. Essas portas foram substituídas pelas portas-da-cidade, que são cortadas verticalmente; e mais modernamente ainda pelas portas inteiriças, como as dos apartamentos.

Nestas casas que sonho aparecem potes de água. Sempre num ângulo da cozinha; sempre num recanto onde o sol não bate em hora nenhuma. Às vezes cobertos com uma tábua quadrada onde está emborcado um caneco de lata; outras vezes cobertos com uma bandeja cheia de copos, que a gente afasta um pouco para o lado, o espaço bastante para mergulhar lá dentro um copo vazio e trazê-lo cheio.

As paredes dessas casas são curiosas, porque não sobem até o teto. Interrompem-se a uns três metros de altura, deixando um espaço vazio entre sua borda superior e o telhado. Dos caibros, onde passam lagartixas velozes, pende o fio elétrico que traz na ponta uma lâmpada, e uma extensão que termina numa “pera”, que a gente alcança com a mão, segura entre o indicador e o médio, e apaga a luz pressionando o botãozinho com o polegar, como quem aplica uma injeção. As primeiras linhas de O fiel e a pedra, de Osman Lins, descrevem uma lâmpada assim.

Nessas casas há uns enigmáticos riscos escuros nas paredes dos quartos. Riscos amarronzados como se alguém tivesse pegado um lápis-cera e feito um traço rápido. Um dia, por fim, avistei o gesto: uma muriçoca pousada na parede amarela, e uma mão de mulher, enrugada, esmagando-a – plaft! – e depois esfregando o resíduo na parede. Outra coisa são os buracos simétricos na face interna da parede que emoldura a janela: um dia, vi mãos pegando um cano de ferro, enfiando-o num buraco, e enfiando a outra ponta no buraco oposto, para servir de tranca interna à janela fechada. 

Vejo essas casas como se eu fosse apenas um par de olhos. Não ouço nada, não vejo ninguém, passeio pela casa como se ela estivesse ao mesmo tempo vazia e habitada. Como se todos, mesmo quando não os vejo, ainda estivéssemos ali.





0335) O Cérebro de Kubrick (16.4.2004)




O trocadilho é infame, mas inevitável. O leitor deve se lembrar do “Cubo de Rubik”, o cubo-mágico: um cubo articulado, com 9 quadradinhos coloridos em cada face, que a gente ia girando até colocar tudo na posição certa. Pois bem: a complexidade do Cubo de Rubik (bilhões de combinações possíveis) é café pequeno perto da complexidade do Cérebro de Kubrick. Eu ouvia falar que Kubrick era rico e excêntrico, mas só tive uma medida dessas duas coisas ao ler, em The New York Review of Science Fiction, longos depoimentos de dois dos meus escritores prediletos da FC britânica, Ian Watson e Brian Aldiss, que colaboraram no projeto A. I. – Inteligência Artificial. Muito informativo também é o livro de Frederick Raphael, Eyes Wide Open, sobre seu trabalho no roteiro de De Olhos Fechados. Um artigo recente de Jon Ronson no Guardian Unlimited revela outros detalhes curiosos sobre a cabeça de um dos diretores mais talentosos e maníacos que o cinema já teve. (Em: http://film.guardian.co.uk/features/featurepages/0,4120,1177734,00.html)

Ronson teve acesso às centenas de caixas que guardam o arquivo pessoal e profissional de Kubrick, desde manuscritos e roteiros até uma réplica da cabeça da guerrilheira vietnamita de Nascido para Matar, e milhares de cartas de fãs, meticulosamente arquivadas de acordo com a cidade e o país de origem, para que, se necessário, Kubrick ligasse de volta e perguntasse ao atônito admirador se a tela do cinema local estava de acordo com as especificações para exibir Barry Lyndon ou O Iluminado.

Ao chegar na mansão de Saint Albans, Ronson foi conduzido a um enorme salão com as paredes cobertas de livros. “Aqui é a biblioteca?”, perguntou. Ao olhar mais de perto, descobriu que todos os livros eram sobre Napoleão. Era uma pequena parte da pesquisa para o filme que o cineasta nunca chegou a realizar, um projeto abortado pelo fracasso do Waterloo de Sergei Bondartchuk em 1970. Em outra parte da casa havia um arquivo com 25.000 fichas detalhando tudo que aconteceu com o Imperador e sua família ao longo de todos os dias de sua vida.

Kubrick tinha uma paixão obsessiva por papel, cadernos, tinta; tudo que usava era fabricado de acordo com suas especificações. (Sua fonte tipográfica preferida era Futura Extra Bold.) Ronson menciona centenas de caixas, cada uma com centenas de fotos para que SK escolhesse um modelo de portal para a casa da prostituta em De Olhos Fechados. Kubrick tinha, como tantos que têm excesso de poder, a mania de querer usar esse poder em toda sua extensão. Quando seu gravador cassete quebrava (é Ian Watson que conta), ele mandava o secretário ligar para Akio Morita, o presidente da Sony. Seu perfeccionismo técnico o fêz inventar numerosas engenhocas que hoje são de uso corrente. Era um diretor cerebral, egocêntrico, meticuloso. Seus filmes são mananciais inesgotáveis de revelações sobre o cinema e a mente humana.

0334) O mito da Queda (15.4.2004)



(Lúcifer, por Gustave Doré)


Li um debate recente entre o Arcebispo de Cantuária, Rowan Williams, e o escritor Philip Pullman, autor da trilogia Fronteiras do Universo (His Dark Materials), já traduzida no Brasil com os títulos A Bússola Dourada, A Faca Sutil e A Luneta Âmbar. São romances fantásticos que envolvem questões de Teologia e religião. Pullman tem uma premissa teológica para o Universo do livro, que ele assim descreve: “Nunca existiu um Criador. Ao invés dele, existia a Matéria, que aos poucos adquiriu consciência de si mesma e produziu o Pó. O Pó, portanto, se origina da Matéria, sendo uma forma encontrada por ela para compreender a si própria. A Autoridade foi a primeira figura a se condensar deste Pó, por assim dizer, e desde então passou a ser a entidade mais antiga, a mais poderosa e a mais cheia de credibilidade. Todos os outros anjos passaram a ver nessa entidade o Criador do Universo, mas alguns anjos acharam que não era bem assim, e foi dessa forma que ocorreram a Tentação e a Queda”.

A discussão pode ser encontrada no Daily Telegraph. Mas ela me recorda dois aspectos interessantes da teoria cristã: os conceitos da Queda e do Pecado Original. Toda a religião judaico-cristã é percorrida de ponta a ponta por uma tremenda sensação de culpa, de crime cometido, de punição eterna. É o crime de Lúcifer, o Anjo Que Pensou Que Era Deus (para alguns, mais irreverentes, Lúcifer seria uma espécie de Zé Dirceu cósmico). É o crime de Adão e Eva, que experimentaram o fruto proibido do Conhecimento, o qual cortou o barato do Paraíso e fêz o dois caírem na real. A queda de Lúcifer do Céu para o Inferno e a queda de Adão e Eva do paraíso para o mundo real são mitos simétricos que servem de alerta contra a ambição, a “hubris”, como os gregos definiam a arrogância de quem julga ter poderes ilimitados e estar acima do Bem e do Mal.

Já o mito cristão é um mito na contramão dos anteriores. Jesus se ofereceu como fonte da Revelação e como alvo do mais cruel Castigo. Vejam só: um Deus abandonava seu trono e se dispunha a passar por todos os sacrifícios e contratempos dos homens comuns, e mais, sofrer uma tortura física e uma humilhação pública que só eram destinadas aos piores deles. O Cristianismo criou o Mito oposto ao da Queda pelo orgulho: o da Ascensão pela humildade. Essa anti-hubris teve um inesperado poder de sedução. Ela está em todas as lendas de nobres que jogam foram suas riquezas e vão viver com os pobres (desde Buda até Gandhi e São Francisco de Assis), em todas as histórias de rapazes burgueses que se tornaram marxistas e aderiram à guerrilha armada ou à luta social, e em todos os filhos de boa família que largaram a mansão e as empresas do papai, deixaram o cabelo crescer e foram tocar violão no mato. Não, amigos, não pensem que estou fazendo gozação. Já que é próprio dos deuses descer à Terra e sofrer os percalços da Terra, deve ser próprio dos mitos diluir-se em histórias banais de gente comum.

0333) A galinha morta no pedestal (14.4.2004)



(Silvia Pinal e Claudio Brook, Simão do Deserto, de Luís Buñuel)


Há um filme de Luís Buñuel, Simão do Deserto, inspirado na tradição dos “estilitas” (não é “estilistas”), indivíduos que, para atingir o êxtase religioso, se martirizavam subindo numa coluna de pedra, onde passavam meses a fio, sem descer. 

Esse martírio sempre me pareceu um negócio meio narcisista. O sujeito que quer mesmo meditar, se concentrar na idéia de Deus, afastar-se das coisas do mundo, deve ir para o fundo duma caverna, como Santo Antão. Ficar em cima de um pedestal sempre me pareceu negócio para pop-star, e o filme de Don Luís, convenientemente, se encerra com Simão sendo raptado pelo Diabo (interpretado por uma louraça-belzebu, Sílvia Piñal) e conduzido a uma buate onde fica sentado na mesa, ouvindo uma banda de rock.

“Estilita” significa “que vive no alto de uma coluna”. O Dicionário Houaiss não o registra, o Aurélio sim; Affonso Romano de Sant´Anna recentemente usou esta imagem, com bom-humor, para se auto-intitular estilita, por ter uma coluna semanal a escrever. (Semanal, Mestre Affonso? Moleza!) 

Os estilitas de hoje, no entanto, não me parecem ser os místicos, os eremitas, e sim os pop-stars. O cara não entra para este ramo porque quer se isolar do mundo ou se aproximar de Deus. Ele entra porque quer subir num pedestal (a TV, o cinema, o rock) e ser visto por bilhões de pessoas. E existem bilhões de pessoas dispostas a passar a vida olhando para elas, não porque elas sejam algo fora do comum, mas porque estão no pedestal. 

O que é esse “Big Brother” da Globo (e seus congêneres) senão um mero pedestal? Ficam milhões de pessoas olhando aquela idiotice. Por que? Porque está em cima de um pedestal. (Ver coluna “Debruçado sobre Abbey Road”, 26.2.2004)

Se você construir um pedestal e pendurar lá em cima uma galinha morta, apodrecendo de cabeça para baixo, vai ter gente parando, sentando, olhando, admirando, discutindo... Porque é uma galinha morta? Não: porque está em cima de um pedestal. É assim grande parte das chamadas “obras de arte” das Bienais de hoje, e nesse ponto concordo com Affonso Romano, que há anos vem se batendo contra essa bobagem de se chamar qualquer galinha morta de “Arte” somente porque meia dúzia de espertinhos a colocaram num pedestal e começaram a vender ingressos.

Em seu “Sermão de Todos os Santos”, o Padre António Vieira comenta a vida de Simão Estilita, e diz: 

“Umas vezes orava de joelhos e prostrado, outras em pé e com os braços abertos, e nesta postura estava reverenciando continuamente a Deus com tão profundas inclinações, que dobrava a cabeça até os artelhos. Teodoreto, testemunha de vista, quis saber o número a estas inclinações, e tendo contado mil duzentas e quarenta e quatro, cansado de contar, não foi por diante.” 

Assim é a mídia, o show-business, o Art-business do mundo de hoje. Cada Simão tem um milhão de Teodoretos dispostos a ficar biguebrodeando sua vida 24 horas por dia. Não são devotos do santo: são os escravos do pedestal.







0332) Morte e vida em tela quente (13.4.2004)




(Spalding Gray)

Triste de quem é famoso; triste de quem um dia sonhou em viver em cima de um pedestal, sendo adorado e invejado pela plebe. 

É impressionante a maneira como certas pessoas querem subir socialmente (ou seja, distanciar-se da plebe) cortejando a plebe, pavoneando-se diante da plebe, transformando-se na encarnação das fantasias da plebe. Não vou citar exemplos (faltariam papel e tinta para tanto nas oficinas deste jornal), mas todos nós sabemos que muita gente é capaz de tudo “para aparecer”. 

Andy Warhol (ele próprio um subproduto típico dessa indústria do auto-espetáculo) dizia que no futuro todo mundo seria famoso por 15 minutos. Pois digo eu que no futuro todo mundo brigará pelo direito de ser humilhado publicamente durante 15 minutos.

É como os “estilitas” (atenção: não é “estilistas”), aqueles santos medievais que viviam encarapitados numa coluna, à vista de toda a população. Faziam-no por delírio masoquista, mas nós, modernos, o fazemos por delírio exibicionista. 

Os “reality shows” que enchem de câmaras a casa de uma família são o ápice desse processo. Ficam eles lá, se desincumbindo de suas tarefas e fazendo suas caras-e-bocas... e nós cá, olhando para aquele troço com a mesma expectativa de quem olha para um aquário. Quantas vezes passei uma hora inteira, no meio de uma tarde, acompanhando na MTV o cotidiano de Ozzy Osbourne! Por que? Provavelmente porque ver aquilo era mais interessante do que viver minha própria vida.

Quem se isola no alto do pedestal da mídia descobre, depois, que não é fácil descer. Corre o risco de ser estraçalhado por uma multidão sequiosa por relíquias. Enchemos o mundo de colecionadores de nós mesmos, e pagamos um preço. 

Uma das histórias mais melancólicas que já vi na imprensa foi de como Xuxa certa vez pediu à direção de um shopping que todas as lojas fossem abertas certo dia, de madrugada, para que ela pudesse “fazer compras no shopping”, como todo mundo. Claro que todas as lojas concordaram em fazer essa horinha-extra. No shopping-fantasma, deserto de gente de verdade, Xuxa e sua “entourage” passearam durante horas, comeram pipoca, fizeram compras...

Algumas semanas atrás, suicidou-se nos EUA o escritor e ator Spalding Gray, autor de monólogos confessionais e cheios de ironia. Num artigo no “Village Voice”, David Sweet comentou, referindo-se às pessoas famosas, que vêem sua vida transformada num espetáculo permanente: 

“Se você está se afogando e é famoso, as pessoas ficarão vendo você se afogar. Ficaremos imaginando qual daquelas outras pessoas foi contratada para salvar sua vida na hora H, ou ficaremos imaginando se tudo aquilo foi ensaiado. E se você morrer, pensaremos: ´Puxa vida, eu estava lá, quando ele morreu.´ Só há uma coisa que não faremos: ajudar.” 

A vida-espetáculo é cruel. Porque quando o ídolo morre, os fiéis batem palmas e pedem, sem uma lágrima, sem um suspiro: “O próximo!”






0331) Dorothy Parker (11.4.2004)




Vi poucas fotos dela. Era branca, aristocrática, delicada, mas com um tanto de aço inoxidável em sua composição, o qual lhe permitia esgrimir verbalmente noites inteiras, nas mesas do Restaurante Algonquin, de Nova York, cercada por homens tão lidos e tão vividos quanto ela. 

Foi jornalista, foi contista, mas ficou famosa nas décadas de 1920-30 pelos seus poemas curtos e implacáveis. O texto de orelha da edição da “Modern Library” diz que eles são “aguçados como pontas de flechas, e mergulhados no ácido borbulhante de seu humor.” 

Poucas mulheres (e poucos homens, aliás) terão tido uma vocação tão grande para a metáfora surpreendente, para a comparação “na mosca”, para o soco demolidor com luvas de pelica, para as coisas ternas ditas com crueldade e vice-versa.

Foi uma dessas mulheres que não têm medo de homem nenhum, e, como todas elas, pagou um preço maior que suas posses. Casamentos, divórcios, abortos, tentativas de suicídio, depressões, tudo está esmiuçado em suas biografias e homepages (um bom ponto de partida pode ser em: http://www.english.uiuc.edu/maps/poets/m_r/parker/parker.htm

Em seus poemas, ficou a auto-imagem de uma mulher ao mesmo tempo cínica e carente, cuja vida amorosa foi uma sucessão de saltos no escuro e de ossos partidos; de convalescenças e de recaídas.

Sua linguagem poética é minimalista, dando preferência às estrofes com esquema silábico britânico (8-6-8-6), ocasionais sonetos no modelo italiano, pequenos epigramas em quadras ou dísticos. O mais famoso deles é: 

Men seldom make passes 
at girls who wear glasses. 

Para o qual só cabe uma tradução infame: “Os homens não roubam ósculos / de garotas que usam óculos”. 

Sua poesia é difícil de traduzir, mesmo tendo uma linguagem simples, de imagens fortes e diretas. Grande parte do seu charme reside em ser impecavelmente rimada e metrificada, a um ponto quase impossível de preservar nos versinhos curtos e compactos que eram sua forma predileta. Seu talento para a rima rica e original é também famoso. 

Seu poema mais conhecido talvez seja “Résumé”, sobre o suicídio: 

Navalha dói. 
Rios são úmidos. 
Ácido mancha. 
Drogas dão cãibras. 
Revólveres são ilegais. 
Forcas cedem. 
O gás tem um cheiro horrível. 
Melhor ficar viva.

Escreveu nas principais revistas de New York, foi roteirista em Hollywood (duas vezes indicada ao Oscar, em 1937 e 47). Voltou para New York mas, ao envelhecer, afastou-se dos círculos intelectuais onde um dia chegou a ser considerada “a mulher mais espirituosa dos EUA”. E a mais amarga, também: morreu aos 73 anos, sozinha num quarto de hotel. 

Sua morte pegou de surpresa muitas pessoas que a imaginavam morta há muito tempo. Suas cinzas ficaram vinte anos num escritório jurídico, sem que ninguém as reclamasse. Li seus poemas pela primeira vez aos vinte e poucos anos, e sempre lamentei não ter tido o dúbio privilégio de ser um dos que lhe partiram o coração.