sexta-feira, 1 de abril de 2011
2519) Lula Côrtes (1.4.2011)
Lula Côrtes faleceu dias atrás no Recife, aos 61 anos. Foi um dos grandes redemoinhos da contracultura nordestina, a qual é uma contracultura dentro da contracultura geral.
Uma das coisas típicas da Contracultura dos anos 1960 (este termo não vale como indicação cronológica, porque é um fenômeno que vinha de muito antes e que ainda está longe de acabar) era a não-especialização dos artistas. O que mais tinha ali era cantor de rock que publicava livros, artista plástico que dirigia peças, poeta que trabalhava como xamã, filósofo que tocava percussão...
A Contracultura foi, ao seu modo quixotesco e barroco, uma tentativa de despertar todos os talentos não-profissionais que um sujeito pudesse ter.
A Cultura oficial caminha sempre no sentido contrário, o de descobrir, através de uma década de educação compulsória, qual o talento mais útil daquele indivíduo, para empurrá-lo naquela direção. Nesse mundo de pragmatismo e concentração utilitária de energias, a Contracultura pregava o “livre desenvolvimento de todas as potencialidades do indivíduo”. Fizeram na Califórnia de 1960 algo que Marx imaginava para o terceiro milênio, quando o Comunismo atingisse seu estágio máximo de desenvolvimento.
Danou-se. Já fui até Karl Marx e me esqueci de falar de Lula Côrtes, cuja conversa, aliás, funcionava nesse mesmo fluxo de livre associação de idéias. Se você perguntasse a Lula qual a última música que tinha feito, ele começava a comentar a música e em dois minutos poderia estar conversando sobre a tradição chinesa de fazer dragões de papel ou sobre a possibilidade de construir um piano com escala de cítara indiana.
Não convivi muito com Lula Côrtes. Minha recordação das vezes em que conversamos está envolta em brumas mais espessas do que as de Avalon. Delas emerge uma casa por trás de uma cerca, rodeada de árvores fruteiras; a presença de cervejas em todos os graus possíveis de temperatura; o som de um tricórdio; uma conversa interminável cujo enredo seguia a trajetória de uma bola de ping-pong num liquidificador; e as gargalhadas roucas que lhe serviam de ponto-parágrafo.
Lula foi poeta, escritor, compositor, músico, desenhista, pintor, artista performático... Sua lembrança na memória dos aficionados de música nordestina (e na minha discoteca) está ancorada no disco Paê-birú – Caminho da montanha do sol, feito em parceria com Zé Ramalho, e na canção “Desengano”, talvez sua obra que mais tocou no rádio (“Toda vez que olho o desengano / nas frases do canto fosco dessa juventude, / sinto meu sorriso magro, / meu rosto suado se encarquilhar...”).
Dele tenho também o raro LP instrumental Satwa, em parceria com Lailson, uma volta ao mundo em 80 diapasões.
Cáustico, irreverente, anárquico, imprevisível. Um pouco auto-destrutivo também, como tantos outros que, tendo arrombado a porta principal do Palácio da Experiência, sentiram-se na obrigação moral de arrombar também todas as outras, só pra ver o que tinha dentro.
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