quarta-feira, 29 de março de 2017

4221) A arte da leitura (29.3.2017)



As contas de somar e de multiplicar são o único exemplo, em todo o Universo, de uma situação em que “a ordem dos fatores não altera o produto”.  (Ok, sei que não são o único, mas é de outra coisa que vou falar, isto aqui é mero pretexto.)

Se você estuda literatura, cinema, teatro, quadrinhos, qualquer arte narrativa, você aprende que “a ordem dos fatores é a principal maneira de alterar o produto”, sendo “produto” no caso a impressão produzida na mente do público.

Ordem é tudo. Não “ordem” no sentido de “coisa organizada, toda arrumadinha, sem mexer uma pestana”. Ordem no sentido da “sucessão temporal das experiências”: a sucessão das palavras, dos sons, das imagens.

As escolas de cinema mostram aos alunos o Experimento Kulechov, de um cineasta russo. Ele pegou o mesmíssimo plano de um ator e o mostrou a três turmas. Na primeira, após a imagem do ator vinha a de um prato de comida. Na segunda, um revólver. Na terceira, uma criança brincando. Os três grupos descreveram a expressão do ator (que, aliás, tinha sido filmado sem olhar para nada específico) como de “fome”, “ameaça” e “ternura”.  (Os numerosos relatos sobre o experimento mudam sempre os exemplos – mas o princípio é o mesmo.)

Toda a teoria de montagem nasceu dessa teoria da justaposição e sequência dos planos.  Desde os pioneiros do cinema norte-americano como Griffith e Chaplin, até a vanguarda russa, o expressionismo alemão, todo o alicerce do cinema nasceu desse princípio básico.

Toda narração, e por extensão toda sequência, é uma sintaxe. O que vem antes influencia o que vem depois.

Alguem há de lembrar o famoso Capítulo XXXIII das Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde Machado de Assis faz o seu narrador conhecer uma jovenzinha linda, Eugênia – linda e vivendo seus últimos anos de inocência, inocência da qual o valoroso Brás a ajuda a se desvencilhar. Acontece que Eugênia é coxa de uma perna, o que leva o narrador, enquanto lhe desfruta de leve os atributos, a chamá-la de “Vênus Manca”, e a se consumir em filosofias insones:

O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma. 

Como sempre, a arte de Machado está na maneira de arrumar verbalmente os fatos e as idéias. “Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”. 

A primeira pergunta nos faz pensar: “Que diabos, por que desperdiçar beleza numa criatura que puxa duma perna? Por que a Natureza ou a Providência Divina não a fizeram logo feia, para que nós, os rapazes sedutores que vivem de rendas, sem trabalhar, não perdêssemos tempo tentar roubar-lhe um beijo, e o que vem depois do beijo?”

Mas Brás Cubas, sem conseguir pegar no sono, também pensa: “Por que coxa, se bonita?” Se a menina é bonita, a boniteza talvez lhe seja um atributo mais essencial, mais genético, do que o defeito físico. Por que então, Senhor, dar a ela essa marca de Caim, esse argueiro que impede a apreciação tranquila da beleza? Por que obrigar, com esse defeito, que o próprio Brás Cubas, tão disposto a conquistas, se demorasse nesta apenas um fim de semana?

O que vem antes influi, condiciona, impõe um viés ao que vem depois, e que será necessariamente assimilado à luz do que foi lido primeiro.

Um conhecido poema de Bertolt Brecht usa esse recursos para nos fazer pensar na contradição insolúvel entre as soluções individuais para problemas coletivos e as soluções coletivas para problemas individuais. (A tradução é minha, da versão inglesa de George Rapp).

UMA CAMA PARA PASSAR A NOITE

Ouvi dizer que em Nova York
na esquina da Rua 26 com a Broadway
há um homem que fica, durante os meses do inverno,
pedindo aos transeuntes que passam por ali
um lugar para os sem-teto dormirem.

Isso não vai mudar o mundo.
Isso não vai melhorar as relações entre os homens.
Isso não vai abreviar a era da exploração;
mas
alguns homens vão ter uma cama onde passar a noite;
naquela noite, pelo menos, o vento não vai maltratá-los,
e a neve destinada a eles vai cair na calçada vazia.

Não abaixe o livro quando ler isto, leitor.

Alguns homens vão ter onde passar a noite;
naquela noite, pelo menos, o vento não vai maltratá-los,
e a neve destinada a eles vai cair na calçada vazia;
mas
isso não vai mudar o mundo.
Isso não vai melhorar as relações entre os homens.
Isso não vai abreviar a era da exploração.

Lendo isso, ficamos como os fantasmas de Tim Powers, que se deixam hipnotizar por palíndromos porque não conseguem parar de lê-los da frente pra trás e de trás pra frente.

O otimismo da solução individual (estrofe 2) nos anima, porque somos indivíduos, e quem já dormiu ao relento em noite fria porque não tinha opção sabe o quanto é importante ter um lugar quente onde dormir numa noite de inverno.


O pessimismo da ausência de solução coletiva (estrofe 4) também nos anima, porque há indivíduos que, quando conseguem finalmente um lugar quente onde dormir numa noite de inverno, deitam-se, cobrem-se com a manta, apagam a luz, aconchegam-se ao travesseiro, mas nesse instante abrem os olhos e pensam: “E os outros?”. 





domingo, 26 de março de 2017

4220) A arte de escrever difícil (26.3.2017)




(ilustração: Salvador Dalí)

As palavras difíceis e as palavras fáceis são dois grandes testes para quem escreve.  Podemos chamá-las também de palavras complicadas e palavras simples, ou então de palavras raras e palavras comuns.  Tudo é a mesma coisa.

Acho que hoje em dia a grande maioria dos manuais ou das oficinas literárias aconselha as pessoas a usarem palavras simples.  Houve um tempo em que não era assim.  Palavrório rebuscado (ou, mais simplesmente: vocabulário difícil) era um sinal de talento, de erudição, de poder social. 

Principalmente no Brasil do século 19, um Brasil agrário com milhões de analfabetos, pouquíssimas universidades, e uma elite dirigente que sempre utilizou a cultura livresca e o diploma como filtros obrigatórios para a ascensão social. 

O povo podia ter a cultura que tivesse, mas só era considerado culto quem fosse capaz de usar provérbios em latim, de citar Sófocles ou Platão, de recitar em francês ou utilizar com propriedade termos obscuros. 

Muitos pretendentes a literatos dessa época costumavam folhear o dicionário de caderno em punho, anotando palavras difíceis (Objurgatória! Catafalco! Quejandos! Fâmulo! Tremebundo! Estentórico!) e depois procurando um pretexto para enfiá-la nos seus artigos ou contos. 

Um dos acusados desse cacoete é o quase esquecido Coelho Neto (1864-1934), dono de um vocabulário sonoro e cheio de preciosidades, e que foi por muito tempo considerado o maior escritor brasileiro. 

Abro ao acaso uma página de seu melhor romance, A Conquista, e logo dou de cara com “um pardieiro sombrio e lôbrego”, “lazarone”, “racimos”, “corbelhas”, “tresandava”, “comezaina”, “vinhaça”...  Podemos dar o desconto de que alguns destes termos fossem comuns em 1899, ano do livro; mas a gente vê que Coelho Neto não era autor de colocar uma palavra direta se dispusesse de um sinônimo enfeitado e obscuro. 

Uma boa comparação de estilo pomposo e estilo claro pode ser feita entre seus textos e os de Lima Barreto no recente livro Lima Barreto versus Coelho Neto: Um Fla-Flu Literário, de Mauro Rosso, que compara os artigos de ambos a respeito do futebol.


Guimarães Rosa é um dos primeiros exemplos que nos ocorrem quando pensamos numa linguagem arrevezada, troncha, abstrusa...  Palavras complicadas pareciam não faltar no seu embornal, e qualquer página aberta também ao acaso, como esta de Tutaméia, nos dá “intruge-se”, “lepidão”, “quizília”, “uca”, “sipipira”...

Entram aí regionalismos, arcaísmos, formações novas a partir de radicais conhecidos.  De tantas em tantas linhas uma palavra parece saltar da página e ficar de pé, oferecendo-se ao exame, pedindo para ser interpretada e encaixada na frase.  (E muitas vezes percebemos que a própria frase já nos indica ou insinua o que ela veladamente diz – e nisto reside uma das artes do escrever difícil.) 

E depois que o leitor pega o tom da voz narrativa de Rosa, torna-se um prazer a mais esse descascar das palavras novas para vê-las por dentro.

Existem autores que escrevem difícil numa outra clave musical, quer dizer, com o propósito de despertar um outro tipo de resposta no leitor. 

Há o caso curioso do curitibano Paulo Leminski, cujos poemas curtos eram de uma admirável limpidez de linguagem, e que por outro lado nos deu um dos romances de vocabulário mais idiossincrático em nossa literatura, o Catatau (1975).  Nele encontramos trechos destemperados como:

“Runáticos, versitergeremos, certo.  Nome, porém, não trocaremos por sinamônico algum nenhúnico!  Posso provar: tenho aprovação própria.  Pensar por pensar.  Some um círio suando de pensar, aceso na cabeça e as formigas me comendo e me levando em partículas para suas monarquias soterradas”. 

A citação mais longa é necessária para dar idéia do sabor do texto, da metralhadora verbal com que o autor dispara aparentes disparates sobre nós. 

O romance de Leminski cria um delírio verbal num tom desorientado (mas mantido do princípio ao fim com admirável coerência) para contar a história da viagem imaginária de René Descartes ao Brasil e a impressão que nosso mundo tropical e suas ervas alucinógenas despertam em sua mente lógica e científica. 

Neste caso, juntam-se palavras inventadas, palavras indecifráveis, palavras híbridas, pedaços de raízes gregas e latinas, fragmentos do tupi ou de gírias e jargões específicos. 

A palavra vale um pouco pelo que significa em si, mas talvez valha até mais em função do quanto sustenta essa voz narrativa: caótica, estilhaçada, multicultural. 

Gabriel Garcia Márquez costumava afirmar que coloca muitas palavras nos seus textos sem muita atenção para o seu significado, mas apenas pela sua capacidade de manter e prolongar certa musicalidade necessária ao encantamento da prosa.  “Basta uma palavra no lugar errado”, dizia ele, “e todo o efeito vai por água abaixo”.

Imagino que Coelho Neto queria exibir, para prazer seu e do leitor, seu preciosismo e erudição; que Rosa queria trazer para a língua geral, dentro da jurisdição de seus romances, certos processos internos do linguajar do homem do sertão mineiro.

E que Leminski produzia um caos ordenado para desequilibrar a tendência raciocinante e lógica do leitor e fazê-lo viver a experiência do mundo por dentro do personagem, de suas palavras (e um personagem literário, qualquer um, é uma criatura feita apenas de palavras e nada mais). 

A palavra difícil exige esforço do leitor, e convém que ele receba em troca alguma coisa.





(Uma outra versão deste texto foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento, São Paulo, # 64, fevereiro de 2011 )





terça-feira, 21 de março de 2017

4219) "Sagarana": "Minha Gente" (21.3.2017)




(ilustração: Poty)

“Minha Gente” é o quinto conto de Sagarana, de Guimarães Rosa (1946). Foi o terceiro conto a ser escrito para o livro, segundo comentário do autor, incluído nas duas primeiras edições e retirado nas seguintes.

Num depoimento-carta, bem longo,  para o jornalista João Condé, incluído no livro Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, de Vilma Guimarães Rosa  (Nova Fronteira, 1983, p. 331-337), Rosa comenta assim a história:

MINHA GENTE – Por causa de uma gripe, talvez, foi escrita molemente, com uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor não poderia ter, ao escrever as demais.

É um conto considerado menor dentro do livro, mas para mim é um dos mais bem amarrados, embora não pareça. É inclusive um conto cujo desfecho, no último parágrafo, nos leva a rever a história inteira com outros olhos, embora não chegue a ser uma surpresa mirabolante, e sim um mero cair da moeda, que girava, para um dos dois lados.

O Narrador do conto é um rapaz que vai passar uns tempos descansando na fazenda do seu tio Emílio. Lá reencontra a prima Maria Irma, com quem tivera um namorico na adolescência. O tio está enfronhado nas disputas eleitorais do município. O rapaz passeia, pesca, troca idéias com os moradores, azara a prima, presencia um crime. Não acontece nada de excepcional.

É uma historinha de amor no meio rural, mas um meio rural já consciente do moderno, do poder gravitacional da cidade grande (como ocorre também em “A volta do marido pródigo”, “Duelo”).

O Narrador volta disposto a reencontrar o passado: no vilarejo “a ladeira para a Rua de Cima ainda é "a mesma”, “a casa do Juca Cintra ainda tem a mesma pintura”, e por aí vai. Mas quando ele bota o pé na fazenda do tio tudo muda. O tempo passou. O tio está galvanizado pela campanha política, e a prima está mais crescida, mais bonita e mais sabida. O Narrador começa a arrastar uma asa firme na direção dela.

O tema da ida-e-volta, presente em todo o Sagarana, se orquestra nesse rencontro do Narrador com sua adolescência transformada, e o modo como ele, ainda ameninado, é manipulado pelos que cresceram mais depressa. E ecoa no nome da prima Maria Irma, quase um palíndromo, que se lê indo-e-voltando.

Outros elementos dão o tom da história. Um deles é Santana, o amigo mais velho que o Narrador reencontra logo no começo. Um típico interiorano de Rosa, que gosta de jogar xadrez e de citar a Odisséia de Homero. Descrevendo com propriedade os movimentos e a dinâmica do jogo, Rosa nos adverte de que o “modo enxadrístico de pensar” não é estranho ao autor.

Outro elemento é a política local (para o brasileiro médio, a única política que é possível compreender e ver com entusiasmo). Ele descreve o tranxinxim estratégico do tio Emílio num parágrafo saboroso:

Política sutilíssima, pois ele faz oposição à Presidência da Câmara no seu Município (no. 1), ao mesmo tempo que apoia, devotamente, o Presidente do Estado. Além disso, está aliado ao Presidente da Câmara do Município vizinho a leste (no. 2), cuja oposição trabalha coligada com a chefia oficial do município no. 1. Portanto, se é que bem o entendi, temos aqui duas enredadas correntes cívicas, que também disputam a amizade do situacionismo do grande município ao norte (no. 3). Dessa trapizonga, em estabilíssimo equilíbrio, resultarão vários deputados estaduais e outros federais, e, como as eleições estão próximas, tudo vai muito intenso e muito alegre, a maravilhas mil.

Não parece; mas é o tema do xadrez quer retorna com outro figurino. Sempre o tema das mil variantes de ataque e defesa, de pergunta e resposta, de aproximação e afastamento, de sedução e separação.

O grande momento dramático do conto é o assassinato de Bento Porfírio, um morador local que acompanha o Narrador em suas pescarias. Bento Porfírio está metido em um caso intrincado de amor e adultério (como ocorre em “A volta do marido pródigo”, “Duelo”, “Sarapalha”). Casado, está tendo um caso com uma mulher casada.

Um dia a pescaria é interrompida pelo surgimento do marido da outra, Alexandre, que o mata com uma foiçada. Olha o modo rápido e entrecortado como o assassinato é descrito:

Fui testemunha. Pode lá a gente ser mesmo testemunha? Não sei como foi: um grito de raiva, uma pancada, o t’bum n’água de uma queda pesada, como um pulo de anta. Alexandre, o marido, de calças arregaçadas. Só as calças arregaçadas, os pés enormes, descalços na lama... Um ramo verde-maçã, a se agitar, em rendilha... Daí, a foice, na mão do Alexandre... O Alexandre, primeiro de cara fechada, depois com um ar de palerma... A foice, com sangue, ficou no chão. A água ensanguentada... O Alexandre vai indo embora. Já gastou a raiva. O morto não se vê. Está no fundo.

Bento Porfírio tinha perdido a chance de casar com a de-Lourdes, cujo pai o queria para genro. Não se interessou em conhecê-la. Quando a conheceu, ela já estava casada com o Alexandre. Ele se apaixonou e se arrependeu. O que fez? Casou com a Bilica, “só por pirraça e falta do que fazer”. E o quadrângulo amoroso ficou formado, pois Bento e de-Lourdes se embrenharam num amor que terminou numa foiçada à beira-rio.

O xadrez, a política e o crime são elementos fortes que dão o tom do conto. Porque o conto na verdade é sobre outro quadrângulo amoroso, que nos lembra o famoso poema “Quadrilha” de Drummond: “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria...”

O Narrador começa a achar que ama a prima Maria Irma, mas descobre que ela tem um amigo muito gentil chamado Ramiro, que lhe empresta livros, o que acaba gerando ceninhas de ciúme; mas Ramiro é noivo de Armanda, grande amiga de Maria Irma, então tudo bem.

O Narrador elogia a prima sem parar. Inclusive relata, logo na chegada à fazenda, um episódio típico do que hoje se chama “mansplaining”, o vício masculino de dar às mulheres longas explicações sobre qualquer assunto antes mesmo de perguntar o que elas pensam a respeito:

Tolamente, fui empunhando a conversa. E o pior foi que minha prima me deixou discorrer, muito tempo, e eu procurava abaixar o nível do discurso, porque punha pouco preço no poder da sua compreensão. No fim, muito maldosa, com duas ou três respostas, deixou-me atônito. Tive ímpetos de gritar: -- Priminha, o falado até aqui não vale! Vamos riscar a conversa e principiar tudo de novo!...

Dubitativo, distraído, com a cabeça cheia de vacilações, o Narrador vai se deixando enredar. Quando acusa Maria Irma de estar interessada no Ramiro, a prima não faz outra coisa senão lembrar que Ramiro é noivo da Armanda, e começa a elogiar a amiga:

É muito bonita, foi educada com parentes no Rio, já esteve na Europa, é filha de fazendeira – porque o pai já morreu -, mora no Cedro... (...)  Da minha altura. Mais cheia de corpo... É bonita... (...) E guia automóvel muito bem. É saída... (...)  É muito desembaraçada... Independente... Moderna...

O Narrador é um inocente simpático e vai se deixando enredar. Quando se aproxima da prima querendo coisa, pensa consigo que se trata de “ceder terreno, para depois recuperá-lo. É boa tática... Um ‘gambito do peão da Dama’, como Santana diria”. Ele sabe que o jogo amoroso é um xadrez.

A política, também, e ele acaba ajudando sem querer o tio quando visita um adversário político deste e, tendo feito comentários inocentes, recebe do tio o elogio: “você costurou certo”. Costurou sem querer, porque o jogo político é aquele em que o adversário diz que vai viajar e a gente deduz que aquilo é para a gente pensar que ele vai ficar em casa, e que portanto o mentiroso vai viajar mesmo. Como na negociação do bezerro entre o tio Emílio e um fazendeiro amigo, minuciosamente narrada com suas idas e vindas.

No final, o partido do tio ganha a eleição e o Narrador, que tinha ido visitar outra fazenda, volta e reencontra quem? Maria Irma ao lado de Armanda:

Alguém riu. Era Armanda, a de maravilhosa boca e olhos esplêndidos. (...) Andamos. Calados. Crescia em mim uma coisa definitiva, assim como a impressão de já conhecê-la, desde muito, muito tempo. Nossas mãos se encontraram, de repente, e eu senti que ela também estremeceu.

Há histórias que vão o tempo todo numa direção, e no final dão uma guinada para outra, e só então percebemos para onde a história estava indo o tempo todo, com seus subterfúgios da política, suas estratégias de xadrez, sua arte de resolver os desencontros amorosos de maneira mais diplomática e moderna, sem tragédias e sem foices. E o conto se fecha com esse parágrafo exemplar:

E foi assim que fiquei noivo de Armanda, com quem me casei, no mês de maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma com o moço Ramiro Gouvêia, dos Gouvêias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom.

Ou, como disse Shakespeare ao tratar de situações semelhantes: “Tudo está bem quando acaba bem”, principalmente se deixarmos que as mulheres façam o corte e a costura das alianças amorosas.







sábado, 18 de março de 2017

4218) Eu me lembro - 10 (18.3.2017)




(foto: bairro do São José, por Cláudio Medeiros)


Eu me lembro de quando as maiores ameaças aos meninos de Campina eram um bandido chamado João Cabeludo e um tarado chamado Barba Rala.

Eu me lembro de uma exposição que teve na antiga FUNDACT, onde depois foi o Forum da av. Floriano Peixoto, onde eu nunca esqueci uma coleção encadernada dos livros de Walter Scott (que até hoje ainda não li).

Eu me lembro de quando os ônibus trocaram as senhas de papel por fichas de plástico, redondas e coloridas, que a gente enfiava numa urna ao sair.

Eu me lembro de uma brincadeira de mesa de bar que consistia em mandar o outro procurar a fórmula “dd042” no rótulo da cerveja Brahma Chopp, e era a palavra “Chopp” de cabeça para baixo.

Eu me lembro da lojinha Zimbo Música, na Cardoso Vieira (eu morava em frente), e toda vez que botavam um disco de coco de embolada formava-se uma pequena multidão na calçada para escutar; isso não acontecia nem com Roberto Carlos.

Eu me lembro de quando botaram uma pipoqueira no saguão do cinema com um vidro redondo onde a gente via as pipocas pulando; dava a hora do filme começar e eu ficava com pena de não poder mais assistir as pipocas.

Eu me lembro de uma loja que tinha perto da esquina da Floriano Peixoto com a Venâncio Neiva chamada “O Palácio das Louças” e eu quando era menino lia de longe “O Palácio das Loucas” e imaginava uma história meio Mil e Uma Noites.

Eu me lembro de uma época em que o clima entre Treze e Campinense andava tão tenso que em cerca de um mês houve uns três episódios de jogadores que cruzavam uns pelos outros no centro da cidade e acabavam brigando de murros.

Eu me lembro dos bailes de carnaval em clubes, quando a orquestra tocava frevo durante horas e quando mudava para samba as pessoas diziam: “Agora é bom um samba, para descansar”.

Eu me lembro da primeira e talvez única vez em que passeei de canoa no Açude Velho. Com meus pais, talvez. Entramos, sentamos, a canoa começou a dar voltas, e depois de algum tempo eu enfiei a mão na água. Tive um susto, porque como a água do açude era parada eu esperava senti-la parada, e o que senti foi como uma correnteza muito forte, quase levando embora o meu braço.

Eu me lembro de uma caneta-tinteiro preta que eu usava e que tinha sido de meu pai (trazia o nome dele gravado, em pequeninas letras de imprensa) e um dia eu vinha descendo a Irineu Joffily pela lateral do Cine Capitólio e veio um cara, esbarrou em mim, e seis passos adiante quando levei a mão ao bolso da camisa, cadê minha caneta?

Eu me lembro de propagandas de lojas nas rádios: “Vais ou não vais à Casa Vaz?”, “A Insinuante: a mais moderna! A Moderna: a mais insinuante!”, “Casas José Araújo, onde quem manda é o freguês”, “Armazéns BBB, onde tudo é bom, bonito e barato!”.

Eu me lembro das laranjas vendidas na rua, descascadas com uma maquininha com um torno horizontal onde a laranja ficava presa e o cara girava uma manivela fazendo a laranja rodar de encontro a uma ponta metálica que tirava a casca em espiral.

Eu me lembro de Cadete, o fotógrafo do bairro de José Pinheiro, cuja propaganda dizia: “FOTO CADETE – dez letras a serviço da sua economia!”.

Eu me lembro do time amador do Fracalanza, que jogava muitas preliminares de jogos do Treze, e tinha um jogador chamado Lambretinha que tinha um pique assombroso com a bola nos pés.

Eu me lembro dos abajures com paisagens coloridas que, quando a lâmpada esquentava, começavam a girar e produziam um efeito parecido com o de um desenho animado.












quarta-feira, 15 de março de 2017

4217) A palavra "editor" (15.3.2017)



É uma das palavras mais ambíguas do nosso mercado literário. Aliás, não sei por que fico me referindo à literatura como um “mercado”. Mercado é a livraria! 

Literatura é cirurgia da alma, é fantasia compensatória, é beco sem saída, é delta de veias abertas, é som e fúria, é guerra e paz, é bobagem sem sentido, é profecia no deserto, é voyeurismo da tragédia e da farsa nas vidas alheias. 

“Mercado” é aquele momento em que a moça do Caixa nos ergue os olhos desamparados de quem precisa tanto daquele salário e pergunta: “Débito ou crédito?”.

De qualquer modo, grande parte das confusões em torno da palavra “editor” e do verbo “editar” decorrem da nossa promiscuidade com a língua inglesa e com o jargão encantatório com que os povos de língua inglesa fazem brotar dólares onde antes só existiam as coisas acima enumeradas.

Reconheço que a língua inglesa é muito mais clara do que a nossa, porque emprega dois termos para duas funções: o publisher e o editor

O publisher é o cara que cuida do mercado: o dono da empresa, o patrãozão, o acionista-mor, o CEO, o cara que toma as grandes decisões estratégicas, que contrata a peso de ouro os autores best-sellers que em seus romances usam expressões como “a peso de ouro”. 

Os editors são os caras logo abaixo dele, que cuidam do varejo, do dia a dia: que lêem e avaliam originais, dialogam com os autores ao longo das etapas da produção do livro, coordenam projeto gráfico, tradução, capa, etc. São os que cuidam da literatura.

(Nada impede que um publisher exerça, quando lhe interessa, funções típicas de um editor, visto que o dono da empresa é ele.)

Em português, tanto o publisher quanto o editor são chamados de “editor”. Quando é uma mulher, de “editora”, que é também o termo que designa a empresa publicadora de livros. Isso gera frases meio desengonçadas como:

- Amanhã vou na editora conversar com meu editor.
- Meu editor brigou com o editor e acha que vai ser demitido.
- Minha editora disse que a editora não pode me pagar esse adiantamento.
- Meu editor mudou de editora.
- Minha editora trocou meu editor.

E assim por diante.

Sem falar que o crescimento do mercado televisivo trouxe para nosso vocabulário cotidiano o termo “editor de filmes”, que é apenas o velho “montador” do cinema, ou seja, o cara que pega 100 horas de imagens filmadas e as transforma no filme de hora e meia que vemos na tela.

Essa tarefa de cortar-e-colar é chamada em português de “montagem”, no cinema, por influência da língua francesa; mas em inglês a atividade chama-se editing e o técnico-artista que a pratica é um editor, numa coincidência de termos que não tem nada a ver com o trabalho editorial do livro.

Não tem nada a ver, vírgula. Tem sim. Todo esse palavreado vem do latim, do verbo edere, que significa “trazer à existência, produzir”, e é formado de “ex”, prefixo que indica uma ação geradora, de dentro para fora, e “dere”, que é uma variante de “dare”, origem do nosso verbo “dar”. 

“Editar” exprime a mesma idéia básica de “dar à luz”, o que no sentido lato (sentido mais amplo) tanto se aplica a quem faz imprimir livros quanto a quem fornece a versão final de um filme.

Voltando especificamente ao trabalho do livro, a sofisticação crescente dessa indústria começou a trazer novos sentidos para os termos correlatos. 

O Dicionário Etimológico Online registra, no inglês, que o verbo edit (=editar) é assinalado no sentido de “publicar” em 1791; no sentido de “supervisionar para publicação”, em 1793; no sentido de “fazer revisões num manuscrito”, em 1885. Já o termo inglês editor é detectado em 1712 no sentido de “pessoa que prepara trabalhos escritos para publicação” e a partir de 1803 para a mesma função relativamente ao jornal impresso.

É bom notar também que a palavra “editar” acabou, no meio desse tranxinxim todo, ganhando um novo sentido, que usamos com frequência: “cortar, alterar, introduzir mudanças substanciais”.  Dizemos que o discurso de Fulano foi editado e apareceu na TV numa versão mais pacífica ou mais agressiva. Dizemos que certa imagem foi editada para remover um detalhe indesejável. Dizemos que um jornalista se demitiu porque quiseram editar a coluna dele removendo referências a tal ou tal assunto.

Em todos esses casos, o sentido original de “dar à luz, fazer aparecer, produzir” sofre um desvio: “editar” vira sinônimo de “interferir em”, e deriva, visivelmente, do conceito de “editar” filmes de cinema e de TV.  (Embora o exemplo literário de 1885, citado acima, já traga em si a semente dessa idéia: revisar algo para publicação, modificar, “dar uma melhoradazinha”.)









domingo, 12 de março de 2017

4216) Dicionário Aldebarã XIV (12.3.2017)



(ilustração: Michael Whelan)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.



“Arp-indul”: o calor abafado em dias de sol sem vento, quando se tem a impressão de que o espaço em volta está coberto por uma redoma.

“Arp-kadhan”: o calor em dias de sol compensado por rajadas de vento fresco que anunciam a aproximação de uma chuva forte.

“Manthiess”: os últimos dois-dedos de café na caneca, que acabam sendo jogados na pia, porque já esfriaram; por extensão, qualquer coisa que perdeu a serventia por decurso de tempo.

“Zumpian”: a sensação terrível de que esquecemos alguma coisa de importância vital e que no instante em que lembrarmos nosso cérebro dará um pipôco.

“Xickmus”: duplas de trabalhadores que se revezam numa mesma função, tendo ambos o mesmo preparo, para que o trabalho flua sem interrupção enquanto um dos dois descansa.

“Nessimans”: pequenas coreografias combinadas que alguns grupos de dançarinos preparam para executar em festas populares, espaços públicos, bailes em residência, numa competição informal, brincalhona, com outros grupos que fazem o mesmo.

“Vorr-Porr”: certas palavras em outro idiomas sujo som corresponde ao de uma palavra na língua local, mas com um significado totalmente diferente, dando origem a interpretações engraçadas.

“Tinger”: perigos desnecessários que as pessoas correm; as histórias de jactância que contam depois, como se tudo aquilo tivesse sido uma prova de coragem. 

“Kanlions”: colares feitos de fios macios e resistentes, pendurados ao pescoço, com presilhas onde as pessoas penduram objetos leves como relógios, espelhos, artigos de maquilagem, etc.

“Matatum”: aquele argumento irrespondível que não apenas encerra em definitivo uma discussão mas deixa alguns minutos de desconfortável silêncio no recinto.

“Rev-Doiul”: a tensão contraditória de quem, às vésperas de um fato crucial, de desfecho imprevisível, precisa tomar providências cansativas e desgastantes visando ambos os resultados possíveis, sabendo que, depois, metade desse esforço terá sido desnecessário.

“Ronfre”: cidadão que depois de exercer uma função pública por vários anos e ser desligado dela continua agindo e falando como se continuasse com todos os direitos e deveres do cargo.

“Bordis-boul”: arranjos florais que as famílias preparam simultaneamente com a primeira refeição da manhã, e que exprimem a expectativa de todos para com o dia que começa.

“Arransa-Dou”: lembranças remotas da juventude, evocadas e compartilhadas em público, que nos fazem rir, depois nos emocionam às lágrimas e por fim nos permitem rir de novo.

“Trigtung”: a prática de atribuir duplo sentido a palavras e frases anódinas, para serem usadas como senhas pré-combinadas quando se está diante de outras pessoas.

“Isternay”: sentença penal para casos especiais, que consiste em fazer o culpado por um determinado dano ser submetido ao mesmo dano de que foi causador.

“Vidgamm”: pequeno frasco contendo fortes essências vegetais capazes de estontear uma pessoa por bastante tempo, usada como defesa por mulheres que viajam sozinhas, e pelos homens que as atacam.

“Fistveik”: termo prejorativo para designar pessoas tão inteligentes que se deixam ofuscar pela própria inteligência e não percebem a infinidade de bobagens que praticam.







quarta-feira, 8 de março de 2017

4215) O Barcelona e o impossível (8.3.2017)




O futebol é bom quando nos leva para as fronteiras do impossível. Aquelas jogadas que ninguém tinha imaginado até que um moleque ousado as inventa. Aquelas campanhas que de semana em semana vão construindo a ascensão impensável de um time sem nada especial a não ser o fato de que está fazendo o que ninguém fez.

Ou então as grandes viradas – como a do Barcelona hoje à tarde, eliminando o Paris Saint Germain num duelo da Champions League. Tendo perdido o primeiro jogo em Paris por 4x0, o Barcelona precisava de 5x0 pra se classificar. Chegou a fazer 3x0, mas quando o PSG diminuiu pra 3x1 aí a contagem de gols (o PSG havia acabado de marcar o famoso “gol no campo do adversário”, que tem peso diferenciado) dizia que ele precisava fazer 6x1.

E faltavam apenas, o que? Trinta minutos? É difícil fazer três gols em 30 minutos num dos melhores times da Europa. Pois os três gols decisivos do Barcelona foram feitos nos últimos 7 minutos.

Neymar, repetindo uma cobrança de falta que ele traz pronta no bolso (lembram o gol na Alemanha, no Maracanã, na decisão do ouro olímpico de 2016?).

Depois, Neymar de pênalti – um pênalti muito mal marcado, aliás.

E por fim Neymar cruzando um bola sobre a área e achando Sergi Roberto do lado oposto pra fazer o que a imprensa está chamando “o gol do milagre”.

Bem, a imprensa toda vai dissecar o jogo pelas próximas semanas, Vou falar das entrelinhas do jogo.

Os dois pênaltis a favor do Barça foram no mínimo duvidosos, mas os saites que olhei até agora (L’Équipe, França; ESPN Soccer, Inglaterra; Mundo Deportivo, Espanha) mal tocaram no assunto. Qualquer pessoa que entenda de futebol sabe que o resultado, por milagroso que pareça, não foi mais do que justo.

O presidente do PSG, Nasser Al-Khelaifi, disse depois do jogo: “Mesmo tendo havido dois pênaltis não marcados a nosso favor, isso não serve de desculpa. A gente não jogou nada no primeiro tempo. E estava perdendo de 3x1 até os 43 minutos. Levar três gols em sete minutos é demais.”

Fosse no Brasil, já teriam sido emitidas dezenove liminares. O futebol no Brasil é diferente. Aqui é a terra dos bacharéis, dos catadores de lêndeas jurídicas, dos campeões das tecnicalidades da letra miúda. O jogo é detalhe: tudo converge para a possibilidade de poder questionar a vitória do adversário.

Aqui, o futebol jogado em campo é um mero pretexto. O jogo mesmo é O Tapetão, esse sim o verdadeiro esporte nacional, a nobre arte de transformar Jesus em Barrabás ou Madalena em Maria citando alíneas e jurisprudências. Há quinhentos anos é assim. A vida real é mero pretexto.

O time parisiense pediu pra perder, como diz o pessoal do Calçadão. Montado no confortável 4x0, fez o que qualquer time medíocre faz: entrou todo recuado, chamando o adversário sobre si, pedindo para ser envolvido, para ser encurralado, para ser bombardeado. Deu no que deu.

Técnicos que fazem isso geralmente se defendem com um argumento do tempo em que a bola tinha cadarço. Dizem que chamam o adversário sobre si “para matar o jogo no contra-ataque”. Pode até ser. O PSG teve um vislumbre de justificação de seu recuo quando aos 17 minutos do segundo tempo Cavani acertou um chute dos mais difíceis, com uma precisão (passou a centímetros do cabelo do goleiro) e uma violência incríveis.


Pareceu ter matado o jogo. Podia tê-lo feito quando Cavani e depois Di Maria perderam gols incríveis. Os “deuses do futebol”, esses orixás nelsonrodriguianos, resolveram castigar sua incompetência, e chamaram Neymar.


terça-feira, 7 de março de 2017

4214) Canções de feira (7.3.2017)




(ilustração: Feira de Campina, de Irene Medeiros) 

São aberturas-de-canção tão parecidas que mesmo vindo de lugares tão distantes e vozes tão diferentes não tinha como não perceber a reiteração de um motif, de uma daquelas maneiras-de-dizer ou “gestos verbais” cristalizados por milênios de uso.

Bob Dylan cantava, em “Girl From the North Country”:

If you’re traveling to the North country fair
Where the wind hits heavy on the border line;
Remember me to one who lives there.
She once was a true love of mine.

Dylan com Johnny Cash (1969):

Eu ouvia essa canção do álbum Nashville Skyline (1969), onde a voz de Dylan fazia dueto com o barítono imponente de John Cash, mas Dylan já a havia gravado num álbum anterior, The Freewheelin’ Bob Dylan (1963).

Dylan solo (1963?):

Eu sempre traduzia essa primeira linha assim: “Se você está viajando para a feira do país do Norte...”. Depois me ocorreu que também pode ser: “Se você está viajando para o belo país do Norte...”, com “fair” sendo usado como em My Fair Lady, e posposto ao substantivo, ao estilo clássico.

Minha leitura estava contaminada, certamente, pela canção Scarborough Fair, balada tradicional adaptada por Simon e Garfunkel em 1966, e grande sucesso da época:

Are you going to Scarborough Fair
(parsley, sage, rosemary and thyme)?
Remember me to one who lives there;
She once was a true love of mine.


(Digressão: Essa repetição literal nos versos 3 e 4 não é plágio É o resíduo íntegro de linhas que passam intactas de geração em geração de poetas, tal como ocorre em nosso Romanceiro Ibérico, onde às vezes é possível rastrear um único verso (uma descrição, comparação, declaração de amor) que pula de romance em romance, de poema em poema, ao longo dos séculos e dos países.)

O ponto intressante aí é que na canção de Simon & Garfunkel existe, sim, a menção clara de que o poeta se dirige a alguém que está indo para uma feira, e lhe faz um pedido:

Você está Indo para a Feira de Scarborough
(salsa, salva, alecrim e tomilho)?
Dê lembranças minhas a alguém que mora ali;
ela já foi um grande amor meu .

Essa segunda linha indica justamente as ervas e temperos que se espera comprar nessa feira; é como se por aqui a gente dissesse: “coentro, cebolinha, pimenta-do-reino e cominho”.

Pode me chamar de abestado, mas eu marejei os olhos quando em 1976 me bateu nas mãos o álbum Nas barrancas do Rio Gavião, primeiro disco de Elomar, e eu me deparei pela primeira vez com este clássico, “O Pedido”:

Já que tu vai lá pra feira,
traga de lá para mim
água da fulô que cheira
um novelo e um carrim...


São milênios de vida rural em que a feira é o grande atrator dos produtos, dos projetos, das esperanças, das curiosidades de milhões de pessoas que vivem no semi-isolamento dos pequenos sítios e pequenos povoados. A gente tem a mania de dizer: “Nordestino não pode ouvir alguém falar que vai pra uma cidade grande, faz logo uma encomenda.” Não somos somente nós; aposto que no Cambodja, na Armênia, em Honduras  e na Calábria não é muito diferente.

E pouco me importa se a Elomar não é muito simpática a música popular dos Estados Unidos. As coisas que Bob Dylan e Elomar cantam já estavam sendo cantadas antes mesmo de Colombo descobrir a América.

A “ida para a feira” é uma mini-migração recorrente na memória das sociedades rurais; a feira ocorre sempre num lugarejo maior do que o lugar de origem dos feirantes. É lá que acontecem as coisas:

Se não chover, amanhã vou passear;
comprar farinha lá na feira do Pilar...

Na canção de Armando Nunes e J. Portella, “Moça de Feira” (1957), Luiz Gonzaga conta a história de uma velha sabida lá do Pilar, que bota a filha, bem bonitinha, pra vender farinha aos feirantes A moça é tão bonita que a mãe engana com facilidade os matutos, hipnotizados por ela:

Os olhos dela tem veneno da serpente
e é mais quente do que o sol de Quixadá...
Farinha crua, tá azeda, tá mofada,
mas os caba não vê nada; nem o troco quer contar.



O orgulho pela feira imbatível, onde “não falta nada”, bateu no teto com o clássico de Onildo Almeida, outra gravação de Luiz Gonzaga, “Feira de Caruaru” (1957):

Na feira de Caruaru tem tudo pra gente ver;
de tudo que há no mundo nela tem pra vender...



Inspiração fundamental para outros clássicos, outras “batidas no teto” como a “Feira de Mangaio” (1977) de Sivuca e Glorinha Gadelha:

Fumo de rolo, arreio de cangalha
eu tenho pra vender, quem quer comprar?
Bolo de milho, broa e cocada
eu tenho pra vender, quem quer comprar?



A ida para a feira é o grande momento na vida dessas populações. A poesia de cordel e a cantoria de viola não existiriam sem essas idas e vindas, esses fluxos constantes que convergem para a feira carregados de produtos e regressam, horas ou dias depois, carregados de aquisições.

Johan Huizinga, em Homo Ludens (1938), lembra o papel das feiras como espaço de mistura de comunidades, tribos, clãs, que se enfrentam poeticamente, cada um louvando sua região, seus produtos, a beleza de suas mulheres, a coragem dos seus guerreiros, a esperteza dos seus mentirosos. Torneios poéticos que já eram antigos na Ásia e na África antes de começarem a ressurgir na América.

E para quem quiser ter uma idéia do ambiente humano desses mercados, nada melhor do que Dedé Monteiro recitando seu clássico “Depois que a Feira Termina”:










sábado, 4 de março de 2017

4213) Albert Camus, Dashiell Hammett e o absurdo (4.3.2017)




Existe uma linha que me parece bem nítida ligando o romance policial “noir” ou “hardboiled” norte-americano e a literatura existencialista ou “do absurdo” francesa.

Esta última é mais difícil de delimitar, visto que não se trata (como o outro) de um gênero popular, submisso a fórmulas (ou pelo menos consciente da existência delas).  Ela também não se confunde, a não ser por uma certa contiguidade histórica e geográfica, com o Teatro do Absurdo, rótulo que abriga nomes como Samuel Beckett, Eugene Ionesco, Jean Genêt e outros, e foi objeto de um excelente livro de Martin Esslin.

A literatura do absurdo inclui principalmente Albert Camus e Jean-Paul Sartre, dois autores unidos por uma visão existencial semelhante e separados por fortes divergências políticas.  

Uma das características desse absurdo existencialista é a presença constante do Acaso como fator determinante da tragédia humana. O homem sempre acreditou no Destino, no “estava escrito”, no “maktub”, no fato (consequente da visão religiosa do mundo) de que nossa existência é governada por forças poderosas responsáveis pelo menor dos nossos atos, e que nos deixam, de acordo com cada crença, maior ou menor amplitude de ação através do livre arbítrio.

“Os desígnios de Deus são insondáveis” é a frase-padrão com que esses crentes reagem diante de qualquer evento inexplicável, bizarro, disparatado, aparentemente injusto e gratuito. A gente não sabe como é que um coisa tão aberrante aconteceu. Deus quis. Só ele sabe o motivo, mas motivo há, sentido existe. Nós é que não percebemos.

As filosofias do Absurdo substituíram essa perplexidade por uma pior. Não existe nem Deus nem destino. A vida é gratuita, não aconteceu em função de nenhum plano pré-desenhado por ninguém. O que se chamava Destino não é mais que o Acaso, um entrechoque cego de ações coletivas e individuais.

Quando Sartre dizia que “a existência precede a essência” dizia que a filmagem precede o roteiro. Pela crença milenar, havia um roteiro traçado por Deus (a essência) e nós o estávamos cumprindo com nossa existência (a filmagem). Sartre tomou um café, acendeu um cigarro e deu uma gargalhada.  “Roteiro coisa nenhuma”, disse ele. “A gente começa a existir, e passa a roteirizar a própria essência com cada gesto, cada atitude, cada escolha, cada confronto, cada concessão. A vida é um filme onde todo mundo está improvisando ao mesmo tempo.”

O romance policial hardboiled é a história de crimes gratuitos, tragédias que teria sido tão fácil evitar, paixões que não levam a nada, ambições que levam a seis cápsulas de chumbo num beco escuro.

Em vez das grandes engrenagens históricas, sociais e econômicas que impelem as tragédias dos personagens de Balzac, Tolstoi, Stendhal e Dickens, o policial noir mostra indivíduos pequenos, desamparados e arrogantes, violentos e sem propósito, agitando-se como insetos, copulando como insetos, morrendo como insetos atraídos por uma luz que os chama e os consome.

Essa insensatez da existência está nos livros de James M. Cain (The Postman always rings twice, Double Indemnity), de Horace McCoy (They shoot horses, don’t they?, No Pockets in a shroud), livros secos e brutais que foram vivamente elogiados na França por Sartre, Camus, e outros existencialistas.

Dashiell Hammett conta, em O Falcão Maltês (1929), um desses “casos” que encapsulam algum tipo de lição, simbolismo, mensagem, ilustração, o que quiser. 

O detetive Sam Spade conta a sua cliente o episódio que ficou conhecido como “a Parábola de Flitcraft”. Flitcraft é um agente imobiliário bem sucedido, pacato, estável, residente em Tacoma (Washington), que um belo dia desaparece sem deixar rastros. Tinha dinheiro no banco, não tinha inimigos, vivia em paz com a esposa e os dois filhos. Todas as investigações para localizar Flitcraft dão com a cara no muro. Ele desapareceu (diz Sam Spade) “como um punho desaparece quando alguém abre a mão”.

Cinco anos depois, a esposa de Flitcraft contrata o detetive por ter ouvido falar que em Spokane, a poucas horas de distância, fora visto um homem parecido com o marido dela. Spade vai até lá, e era Flicraft mesmo. O desaparecido confirma tudo e diz que fugiu porque quis, e deixou bens suficientes para que a família não passasse por problemas.

Spade pergunta por quê. E ele conta o que lhe aconteceu. No dia de sua fuga, vinha andando pela rua e uma viga de metal caiu de uma construção poucos metros à frente dele, arrebentando a calçada. Por segundos de diferença ele teria sido esmagado. E nesse instante ele percebeu que sua vida séria, profissional, ordeira e prática não fazia sentido. Podia morrer devido a um acidente besta. E ele se sentiu (diz Sam Spade) “como se alguém tivesse levantado a tampa da vida e lhe mostrado o mecanismo”.

Flitcraft fugiu, vagou pelo mundo, mudou de nome, voltou pra uma cidade próxima, casou e recomeçou a vida, mas a parábola se concentra nessa sensação terrível, de que por um instante fugaz a possibilidade da morte besta (o “ato gratuito” que tanto os Surrealistas quanto os Existencialistas tanto exaltaram, com conotações distintas) arrancou todo o sentido de sua vida.

Flitcraft é um herói absurdo, tanto quanto os heróis de Camus: o Meursault de O Estrangeiro, que mata um árabe a tiros na praia “por causa do calor” e é executado, o juiz-penitente de A Queda que deixa uma mulher se jogar na água do rio e a partir daí percebe que não era “a pessoa do Bem” que fingia ser.

Ou o guerrilheiro espanhol em “O Muro” de Sartre, que, pressionado a confessar onde estava escondido o líder do seu grupo (e ele nem sabia onde era), diz um lugar qualquer, ao acaso. Os inimigos dão busca, e o líder é encontrado e morto exatamente ali. Como não achar que o mundo é absurdo, diante de um fato assim?

A morte banal é o gatilho que dispara o absurdo na maioria dessas histórias, mesmo a morte evitada, como na Parábola de Flitcraft. Assim como na Antiguidade uma pessoa qualquer era subitamente convencida da existência de Deus devido a um fato fortuito, uma iluminação literalmente “caída do céu”, o homem moderno tem uma iluminação às avessas, uma anti-epifania. Uma experiência aleatória que faz desmoronar seu mundinho estável e revela por trás dele um Caos sem dono.