A primeira obra de M. C. Escher que vi na vida, com uns 12 anos, foi a gravura “Escadaria” (1951), reproduzida numa revista, e que ocupou meu juízo por muito tempo. É um labirinto de escadarias verticais, horizontais e oblíquas, pelas quais se arrastam lagartos mecânicos feitos de partes articuladas (que ele chamava “wentelteefjees”, “bichos rolapé”).
O que me fascinou primeiro foram esses monstrinhos articulados. Todo garoto adora monstros. Um dia, depois de olhar muito para os monstros, tentei entender o labirinto que eles percorriam, e fiz a pergunta fatal: “Peraí... onde é o chão?”. Perdi o chão e não o achei de volta até hoje.
Para Escher, aquelas centopéias-robô são apenas um ponto de referência de movimento, direção, orientação visual. O monstro é o espaço absurdo.
Nos contos de H. P. Lovecraft, o monstro surge como protagonista. Seu mundo é
um mundo organizado e racional no qual irrompe de repente a presença maligna de
algo impossível. É o mundo em que ele acreditava: um mundo com as obrigatórias
três (ou quatro) dimensões, onde o Tempo se organiza em passado-presente-futuro
e o espaço em norte-sul-leste-oeste. Um mundo onde existem os reinos
animal-vegetal-mineral; os cinco sentidos; os elementos químicos.
E nesse mundo geométrico, racional, brota
alguma coisa disforme, glóbulos de caos, tumor de formas, uma presença maligna
cuja existência põe em perigo todo o resto. Como numa teia de aranha, o
universo de Lovecraft é um desenho de Ordem que tem no seu centro um Monstro.
Nos contos de Jorge Luís Borges (os contos de FC-metafísica de Borges,
cuja obra é bem mais variada que a de Lovecraft) não aparecem muitos monstros.
(O mais notável deles é o de sua homenagem a Lovecraft, “There are more
things”, em O Aleph.)
Borges vai mais
fundo e, como Escher, interfere no software conceitual que nos orienta no
mundo físico. Seu espaço é múltiplo (Babel: hexágonos infinitamente ladrilhados
como num papel-de-parede) e desconexo (Tlon: produzido aleatoriamente pelas
mentes que o habitam).
Seu tempo não parece uma linha de metrô como o daquelas
FCs onde se vai e se volta num “tubo” inalterável; é um torvelinho browniano
onde não se cruza duas vezes o mesmo local. Cada ponto é ao mesmo tempo
zero-cartesiano, zênite, nadir, ponto-de-fuga no horizonte... Cada vez que os reinterpretamos assim, o
sentido da história muda.