domingo, 18 de julho de 2010
2286) Adeus, Dunga (6.7.2010)
Perdi minha inocência esportiva na véspera da decisão da Copa de 1974, entre Alemanha Ocidental x Holanda, quando li uma entrevista de Franz Beckenbauer, dizendo: “Não podemos perder o jogo de amanhã, pois eu e meus companheiros assinamos contratos de publicidade caríssimos, mas que só terão validade se formos campeões”. A Alemanha ganhou e Beckenbauer está rico até hoje. Aliás não só ele. Qualquer jogador que dispute uma Copa do Mundo, mesmo que pela seleção de Honduras ou de Gana, está rico, pelo menos pelos meus parâmetros financeiros.
Previ repetidas vezes, aqui nesta coluna, que o Brasil perderia esta Copa, porque seria muito arriscado – para os Poderes Que Mandam – permitir que conquistássemos agora nosso sexto título, com todas as condições de conquistarmos o sétimo em 2014, quando seremos anfitriões. Iríamos deixar os outros muito para trás (a Itália com quatro, Alemanha com três). Sermos penta nos dá mais orgulho do que sermos a sede da floresta amazônica. Nossa imprensa e nossa torcida se apegam a isso, naquelas madrugadas dostoievskianas quando a Inutilidade do Ser e a Falta de Sentido ds Existência se abatem sobre nós. O sujeito está vendido e mal pago, escorraçado ao botequim, enganado pelo sócio, traído pela mulher, perseguido pelos credores, ameaçado pelo gerente do banco onde passa borrachudos, mas aí ele chama o garçom para pedir uma cerveja e vê a propaganda da Seleção na parede. “Ora que diabo,” pensa ele, “sou Penta!” Aí em vez de uma cerveja pede um litro de uísque. E assim caminha a humanidade.
A Seleção de Dunga perdeu pelas suas limitações óbvias, mas é uma pena que suas qualidades também óbvias venham a ser esquecidas em breve. O mais interessante até agora é que tudo que pediam que Dunga fizesse foi feito por Maradona: encher o time de atacantes, convocar as novas revelações, abrir os treinos, ser simpático com a imprensa, mandar o time todo para o ataque, exaltar o futebol-arte... Maradona fez tudo que Dunga se recusou a fazer, mas ambos deram com os mesmos burros na mesma água. Alguém já levantou a lebre de que “ex-jogador não serve para técnico de seleção”, o que me parece um erro. Até porque os nossos melhores treinadores, ou pelo menos os mais candidatos à vaga de Dunga, são todos ex-jogadores.
Dunga perdeu o primeiro jogo realmente difícil que teve na Copa, e o perdeu, surpreendentemente, quando já o tinha ganho pela metade, num primeiro tempo impecável. Eu pagaria uma fortuna, se a tivesse, para saber o que foi conversado no vestiário do Brasil, antes do 2o. tempo contra a Holanda. Não, não estou pensando em Teorias da Conspiração, naquelas histórias mirabolantes de que a Nike ou a Adidas ofereceu 10 milhões de euros à CBF para o Brasil abrir o jogo. Espero que isso nunca aconteça, porque Ricardo Teixeira tem uma cara danada de quem aceitaria. O Brasil perdeu pelos nervos, mas fico pensando: o que deixou o Brasil tão nervoso?
2285) Os cavalos e as zebras (4.7.2010)
A Navalha de Occam (“Occam’s Razor”) é uma figura do discurso filosófico que consiste mais ou menos no seguinte: em qualquer problema, deve-se começar a procurar a solução pelas mais simples, não pelas mais complicadas.
O termo “navalha” entra aí com sugestão de que sejam “raspados” todos os excessos, todos os elementos desnecessários à resposta.
Isto não quer dizer que uma explicação complicada não pode ser verdadeira, mas que, na imensa maioria dos casos, são as explicações mais simples que matam a charada.
Suponhamos que estou em casa, no Rio de Janeiro, às 3 da tarde, lendo no sofá. Tocam à campainha. Levanto-me, pensando: “Puxa vida, deve ser alguém que veio da Paraíba para me visitar!”. Minha suposição não é absurda, pois o que imaginei pode muito bem acontecer. Mas se ao aplicasse a Navalha de Occam eu pensaria: “Não será o porteiro trazendo uma correspondência registrada? Um vizinho querendo me perguntar alguma coisa? Ou algum amigo que mora aqui perto?”.
Estas hipóteses são tão plausíveis quanto a anterior, e têm a vantagem de serem explicações mais simples, de serem estatisticamente mais prováveis.
Daí a crítica que faço muitas vezes a jornalistas ou pessoas em geral, mal-informadas, que quando se referem a OVNIs sugerem que são visitantes “de outras Galáxias”. Quem diz isto não tem a menor ideia do que seja uma galáxia, ou da distância a que fica a galáxia mais próxima.
Seria o mesmo que, ouvindo a campainha do meu apartamento, eu imaginasse que era alguém do Japão tocando – e não alguém do meu prédio, ou da minha cidade.
(Se algum OVNI viesse da galáxia mais próxima da nossa, a Nebulosa de Andrômeda, levaria, viajando à velocidade da luz, cerca de 2 milhões e meio de anos para nos fazer essa visita. Melhor supor que seja alguém que more mais perto.)
Numa discussão recente sobre a Navalha de Occam na lista “A Word a Day”, o leitor Dean Barnard lembrou uma frase repetida frequentemente no curso de Medicina, para aconselhar aos estudantes que procurem respostas mais simples: “Se ouvir lá fora um barulho de cascos, pense que é um cavalo, não que é uma zebra”.
Ele perguntou se num país africano este conselho continuaria valendo. O leitor Max Bennun, da África do Sul, respondeu: “Aqui em nosso país os estudantes de Medicina ouvem dizer que se vemos um pássaro pousado num galho é mais provavelmente um pardal do que um canário. Daí que no nosso linguajar médico a ocorrência de condições extraordinárias acabou sendo chamada de ‘canário’”.
A Navalha de Occam não nega a possibilidade de que fatos extraordinários aconteçam, apenas recorre ao bom senso para lembrar que se um fato extraordinário pode, sim, acontecer, um fato ordinário pode mais ainda.
É uma questão de ir por partes, do mais possível para o menos possível, e só imaginar uma resposta complicada quando não houver nenhuma resposta simples que resolva o problema.
2284) Drummond: “Infância” (3.7.2010)
O segundo poema de Alguma Poesia (livro de estréia de Carlos Drummond de Andrade, completando 80 anos de publicação) é dedicado ao poeta e tradutor Abgar Renault, seu amigo de juventude, e intitula-se “Infância”. Diz ele: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia. / Eu sozinho menino entre mangueiras / lia a história de Robinson Crusoé / comprida história que não acaba mais”. A infância interiorana está toda contida aí nessa paisagem doméstica, brasileira, provinciana, onde aparece como sintoma da Modernidade invasora o livro de Defoe, a literatura estrangeira, o mundo civilizado... A lembrança certamente é autobiográfica, mas Drummond articula a presença de Robinson no poema revertendo os signos: o menino lê a história do náufrago numa ilha de aconchego e segurança.
A segunda estrofe diz: “No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu / a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu / chamava para o café. / Café preto que nem a preta velha / café gostoso / café bom”. Os “longes da senzala” referem-se à Abolição, coisa de poucas décadas atrás. No tempo deste poema, o Brasil estava cheio de ex-escravos, o que não era muito diferente de estar cheio de escravos. Mas cada escritor dessa época guarda saudades culinárias das Tias Nastácias que serviam seu café, o qual surge como mais um sintoma de aconchego doméstico e familiar. E a preta velha de Drummond é uma parenta próxima da Irene de Manuel Bandeira, da Fulô de Jorge de Lima, da Guilhermina de Augusto dos Anjos, da Mãe-Preta de Raul Bopp e por aí vai. Negras acolhedoras e confortáveis como uma poltrona velha.
“Minha mãe ficava sentada cosendo / olhando para mim: / -- Psiu... Não acorde o menino. / Para o berço onde pousou um mosquito. / E dava um suspiro... que fundo!” O poeta assume aí o papel intermediário entre criança e adulto. Porque criança mesmo é o irmão mais novo, que até um mosquito pode ameaçar; ele não, ele lê livros de aventuras! E que sutileza esta linha repetida na íntegra, tintim por tintim: “Minha mãe ficava sentada cosendo”, a mãe congelada no âmbar da rotina e depois no da memória.
Última estrofe: “Lá longe meu pai campeava / no mato sem fim da fazenda. // E eu não sabia que minha história / era mais bonita que a de Robinson Crusoé”. O paralelismo entre a infância e a literatura está contido nas duas coisas sem fim (o mato da fazenda, a história de Robinson). E esta enigmática afirmação final, afirmação óbvia se a considerarmos apenas no plano da nostalgia açucarada tipo “ai-que-saudades-eu-tenho-da-aurora-da-minha-vida”. Mas não é absurdo vermos nessa lembrança dourada um lado negro e soturno finalmente domado e redimido na vida adulta. Porque o menino que lia Robinson queria com todas as forças abandonar aquele mato (como abandonou), até mesmo para, naufragado e sozinho na angústia dos 28 anos, ter o direito de ter saudade da roça de onde fugiu.
2283) Brasil x Holanda (2.7.2010)
(foto: Christopher Lee)
Ornejam as vuvuzelas, lá vem rugindo a Holanda! Toda vez que esse time cor-de-laranja surge à nossa frente eu me sinto tremer na base. Não propriamente de medo, mas de expectativa. Confesso de público que em duas Copas já torci contra a Seleção Brasileira e a favor da holandesa. Nas copas de 1974 e 1978, a Holanda era para mim o melhor time do mundo, e o Brasil de Zagalo (74) e Cláudio Coutinho (78) era uma Seleção ainda mais retrancada e temerosa do que a de Dunga. Não tinha como torcer. Aqui e acolá um craque, mas, no geral, quem me enchia os olhos eram os holandeses. Ainda hoje acho que o futebol deve uma Copa do Mundo aos conterrâneos de Van Gogh.
O problema é que a Holanda só será campeã passando por cima do nosso cadáver, e aí é pedir demais. Time por time, o time que eles têm hoje é nivelado ao de Dunga, e, se é pra trocar seis por meia-dúzia, prefiro que ganhe o Brasil. A Holanda tem alguns jogadores muito hábeis, talentosos. Gosto do jogo de Robben, Sneider (da Inter de Milão), o atacante Van Persie (que ainda não jogou bem na Copa), Van Bronckhorst e Von Bommel (ambos ex-Barcelona). O time ainda não jogou uma grande partida nesta Copa, mas o Brasil também não. É um jogo equilibrado entre duas equipes imperfeitas, por isso mesmo é um jogo imprevisível. Tanto pode dar um empate com prorrogação em pênaltis (como deu em 1998, e ganhamos com duas defesas de Taffarel) como pode um dos dois ter meia hora de brilhantismo a certa altura, descontrolar o adversário e liquidar o jogo.
O Brasil teve dois bons jogos (Costa do Marfim e Chile) e dois jogos totalmente medíocres (Coréia e Portugal). Imprevisível, portanto. Pode vir comendo pelas beiras e acabar campeã, como aconteceu com a Seleção de Filipão em 2002. Naquele ano, eu não botava a menor fé, e só acreditei que podíamos ganhar a Copa quando vencemos a temível Inglaterra de Beckham, de virada, por 2x1 (num tempo em que Lúcio ainda entregava gols de graça ao adversário). Daquele jogo em diante, a Seleção se encontrou.
Se o Brasil não for campeão, o campeão será provavelmente o vencedor do jogo Argentina x Alemanha. A Argentina está vivendo um momento surrealista. Colocou à frente um caudilho eufórico (Maradona), um craque (Messi) e está jogando na base do entusiasmo, da “camaraderia” e da volúpia de gol. Dá gosto e dá medo. O que aconteceria com um time assim se alguém botasse 2 gols de frente? Uma virada heróica ou o descontrole absoluto? Eu pago pra ver. Quem está me surpreendendo é a Alemanha, time com o qual nunca simpatizei. Acho-os truculentos e deselegantes, mas tiro o chapéu para o que vêm fazendo. Os dois gols de contra-ataque no 2o. tempo contra a Inglaterra foram duas obras-primas, coisa para entrar no currículo áudio-visual de qualquer escolinha de futebol. O time é cintura-dura (isso é genético, não tem como mudar), mas é veloz, inteligente e tem também a volúpia do gol. Se ganhar a Copa assim, merece.
2282) Cobertura de Copa (1.7.2010)
Não, não estou me referindo a apartamentos no andar de cima em Copacabana. É a cobertura jornalística de uma Copa do Mundo, algo que movimenta este país tanto quanto uma eleição presidencial. Como as duas coisas geralmente acontecem juntas, já se sabe nas redações e nas estações de TV: “Ano que vem, tem Copa e eleição”. São duas guerras pacíficas (até certo ponto) para as quais os órgãos de imprensa se mobilizam como se fossem os exércitos aliados preparando o Desembarque na Normandia.
Uma coisa que me incomoda, como espectador, é a quantidade absurda de informação irrelevante que essa situação produz. Toda TV brasileira, toda rádio brasileira, todo jornal brasileiro tenta mandar gente para a Copa. Algumas emissoras têm 100 ou 200 profissionais trabalhando por lá. (Multiplique isto por 32 países.) E esse pessoal quer somente uma coisa: mandar matérias para a redação. Estão sendo pagos para isso. Receberam passagem aérea, hospedagem, diárias de alimentação, equipamento, gratificação por hora-extra, o escambau. Precisam, portanto, registrar tudo que for possível dos jogos, dos adversários e da Seleção Brasileira. O problema é que quando não dá para achar uma matéria interessante, o pessoal começa a valorizar pequenos detalhes. Fulano mancou durante o treino; estará machucado? O ônibus da Seleção atrasou; terá havido alguma crise? Sicrano não cumprimentou o técnico ao ser substituído; ato de indisciplina?
A crise recente entre Dunga e a Rede Globo foi um sinal disso. Ao que se diz, Dunga cortou alguns privilégios que a Globo tinha em relação a outras emissoras. No tempo de Felipão, Fátima Bernardes viajava dentro do ônibus da Seleção, mandando entrevistas ao vivo para o “Jornal Nacional”. Está errada? De jeito nenhum, ela é jornalista e sua obrigação é conseguir a melhor matéria possível. Agora, Dunga disse: “Na-nani-nanão”. Está errado? De jeito nenhum, e eu como técnico faria o mesmo. O problema é que Dunga é mal-humorado e agressivo, e coloca todo mundo contra si. Quando desfechou palavrões contra um jornalista durante a coletiva isto lhe mereceu uma “blitz” monumental. No dia seguinte, todos os colunistas do “Globo” obedeceram a pauta de sentar o pau no treinador. Curiosamente, um dia depois o mar serenou ... Deve ter vindo uma ordem de cima: “Chega, já basta, vamos dar força pra Seleção, se não pega mal”.
Não é fácil encontrar um equilíbrio. Existe a privacidade de que os jogadores precisam. Eu, se fosse jogador, gostaria de ficar na minha, tranquilo, sem ter que dar 15 entrevistas por dia para a Rádio Bambala ou a TV Arimatéia. Mas também gostaria de poder bater um papo com jornalistas amigos (sim, muitos jornalistas e jogadores são amigos), ir num shopping ou dar uma volta para conhecer a cidade. Se fosse por Dunga, o time ficaria num quartel militar. Se fosse pela imprensa, ficaria num palácio com piscina e de portões abertos, como ficou em 2006 – e deu no que deu.
2281) “Bande à Part” (30.6.2010)
Vi em DVD este simpático filme de Jean-Luc Godard, que nunca tinha assistido. É um filme menor, talvez, um daqueles longas que Godard dirigia em algumas semanas com meia dúzia de atores e uma câmara. Casual, descontraído, com ocasionais momentos de beleza no diálogo. E a fotografia em preto-e-branco de Raoul Coutard, uma das melhores coisas não só do cinema de Godard, mas de toda a “nouvelle vague”. Nada parece tanto com a palavra Cinema quanto aquela tonalidade de pretos-e-brancos contra um fundo cinza.
A narrativa é de um policial B típico, baseada num romance de Dolores Hitchens (Fool’s Gold): uma moça e dois rapazes decidem roubar o dinheiro da casa onde ela trabalha, e, depois de um planejamento muito furreca, realizam um assalto mais furreca ainda, que acaba mal. Godard, Truffaut, Malle, Chabrol e outros passaram anos filmando variações desse enredo. Para eles, nada era mais moderno do que esquecer a Noite de São Bartolomeu ou a Queda da Bastilha e filmar pequenas aventuras de submundo à maneira norte-americana. Há toda uma ruptura sociológica e uma queda-de-braço cultural por trás disso.
O filme é pouco conhecido, mas duas sequências ficaram famosas. Uma é a da coreografia executada com displicência de cinema-verdade pelo trio de atores, tendo Anna Karina devastadoramente charmosa, de saia tartan, pulôver escuro e o chapéu de Sami Frey na cabeça. Esta dança (dizem) foi citada em Pulp Fiction de Tarantino, cuja produtora, aliás, chama-se A Band Apart em homenagem a este filme. (A cena pode ser vista no YouTube). A outra cena famosa é a dos três atores correndo pelas galerias do Louvre, tentando bater o recorde de um turista americano, que (dizem eles) viu o Museu inteiro em 9 minutos e 45 segundos. Esta cena foi citada e reconstituída por Bernardo Bertolucci em Os Sonhadores.
Uma terceira cena (que eu desconhecia até ver o filme) mostra o trio tentando fazer um minuto de silêncio. A trilha sonora é emudecida durante 35 segundos até que um deles se levanta da mesa do bar, dizendo “chega!”. Bergman retomaria alguns anos depois este desafio, em A Hora do Lobo, mostrando (“na sucessividade dos segundos”, como dizia Augusto dos Anjos) um minuto inteiro de Max von Sydow olhando um relógio e Liv Ullman olhando o rosto de Max von Sydow. (Para, sem mais do que isto, falar resmas de textos sobre o Amor, a Loucura e a Morte.)
O cinema de Godard é como a música de Philip Glass, a poesia de e. e. cummings ou a pintura de Edward Hopper. Há quem ame e quem deteste. Para os que nem-uma-coisa-nem-outra, é um documento inquietante de como um cinema feito por cinéfilos acaba se tornando, 45 anos depois, um cinema menos referencial e menos cheio de citações do que o cinema comercial de hoje. O encanto desses filmes, em 1964, era sua intelectualidade, sua ousadia vanguardista. Hoje, seu encanto é a pureza do seu olhar, que parece nunca ter sido corrompido por uma tecnologia, um Festival, um borderô.
2280) O shoooooow da Copa (29.6.2010)
(Maradona e os fotógrafos - foto de David Gray)
Os locutores da TV não param de comemorar: “Um shoooow de imagens para você! São 32 câmaras espalhadas pelo Estádio!”. De fato, o que salva as Copas do Mundo de hoje em dia é, mais que o jogo, a cobertura do jogo. A maioria dos gols é de uma banalidade assombrosa, mas se fixam em nossa memória depois que a gente vê de frente, de um lado, do outro, por trás, de cima, câmara lenta, câmara próxima, no detalhe... A Fifa descobriu, com meio século de atraso, o Canal 100. Descobriu que a beleza do futebol nem sempre é visível ao olho humano, é preciso retardar o movimento para que a gente tenha idéia do que acontece (e não é pouco) naquelas frações de segundo. Uma das imagens mais impressionantes desta Copa foi o pênalte cometido pelo zagueiro da Austrália no jogo contra Gana: ele está embaixo do travessão e a bola chutada pelo atacante se choca com seu braço, que evita o gol. A câmara lenta mostra o braço estendido, a jabulani se aproximando, explodindo de encontro ao braço, deformando-se, sendo mandada de volta, e todos os músculos do braço do sujeito estremecendo ao mesmo tempo. (Depois, é claro, o zagueiro reclamou do juiz e disse que não foi pênalti.)
Chegou um momento perigoso da relação entre imagem e mundo. Descobrimos ao longo dos séculos que o mundo enquadrado fica mais bonito (pintura, fotografia, cinema). Uma paisagem é banal? Vamos recortá-la em retângulo e reproduzi-la, emoldurada. Num instante ela fica poética. O recorte potencializa, concentra ali todos os significados possíveis. Cineasta gosta muito de erguer os polegares e indicadores das duas mãos formando um retângulo, para enquadrar rostos, paisagens, detalhes. Isolado do seu entorno, qualquer objeto vira signo. Dentro das quatro linhas da imagem, ele deixa de pertencer ao mundo físico e entra no mundo semiótico, deixa a Natureza para fazer parte da Cultura.
O momento perigoso foi quando alguém pensou: “Puxa vida, o simples ato de enquadrar uma coisa, por mais banal que seja, lhe confere um significado transcendental!”. Porque o pensamento seguinte é: “Bom, já que o significado transcendental está no enquadramento, e não na coisa, dispensemo-nos de escolher a coisa! A coisa pode ser qualquer uma! Tanto faz enquadrar o atentado às Torres Gêmeas quanto uma meia velha jogada no chão! Tanto faz enquadrar o rosto de Fernanda Montenegro quanto o de Xuxa! Tanto faz filmar em super-slow-motion um drible de Robinho quando uma trombada de Felipe Melo!”. E aí surgiu o cinema de Andy Warhol.
E este, amigos, é o futebol do futuro. Sou futeboleiro genético, não sei viver sem assistir um jogo de bola, e não me lembro quando fui a um estádio pela última vez, acho que foi quando o Treze foi campeão em 2005. Moro no Rio, e fui ao Maracanã pela última vez em 1990. Futebol para mim, hoje em dia, é um programa de TV, e com isto sou capaz de antever o futuro. Vinte e dois Felipes Melos em campo – e 128 câmaras dando um shoooow de imagens!
2279) As tartarugas telepáticas (27.6.2010)
Numa época remota (e bota remota nisso) o Cosmos era a carapaça de uma imensa tartaruga. Tão imensa era a condenada que olhávamos em 360 graus à volta do horizonte e não a víamos. Como o ser humano só captura o que a sua antena captar, a Tartaruga era tida como inexistente. (Modo inadequado de exprimir a situação. Melhor dizer: Não passava pela cabeça de ninguém que o mundo fosse o casco de uma tartaruga.) Mas era. Não havia ainda o “silêncio eterno dos espaços infinitos” que amedrontava Blaise Pascal. Tudo que conhecemos, o Sol, a Lua, a Terra, as Constelações, acomodava-se sabe Deus como naquele casco hospitaleiro, e vamos em frente. Como o casco é arredondado, cabia ali uma reprodução bidimensional da Esfera Armilar do Cosmos; como é abaulado ou convexo, cabiam ali inclusive umas duas páginas e meia da Teoria da Relatividade de Einstein e sua sugestão da existência de um espaço curvo. Beleza.
Ora, tartarugas têm cérebro, tanto quanto os caranguejos do mangue recifense. Se admitimos a ideia de Gaia, do planeta Terra consciente de si mesmo, por que recusaríamos a hipótese de um Cosmos lúcido? A Tartaruga do Mundo põe-se a pensar: “Muito bem, o mundo inteiro repousa sobre o meu casco, mas, eu mesma, repouso onde?...” O Cosmos, por lúcido que é, espia para baixo de si para ver onde repousa. Não sei o que viu; sei o que dizem os pergaminhos antigos. E dizem eles que a Tartaruga do Mundo repousa sobre o casco de outra Tartaruga, maior ainda.
Assimilaram, amigos, o terror desta descoberta? Quando postulamos que o Cosmos é uma Tartaruga, a proposta pode ser absurda, mas fica por aí mesmo, a gente empaca num beco sem saída. Porém no momento em que postulamos uma segunda tartaruga, o gene matemático em nós dá início ao processo reiterativo que às vezes é chamado Infinito (“e depois desta segunda uma terceira, e depois dessa terceira uma quarta...”), e às vezes é chamado Loucura.
Felicidade nossa que as Tartarugas do Cosmos são telepáticas. Destarte, a tartaruga número 1 pode se comunicar instantaneamente, de modo não-linear, com qualquer outra, seja a Tartaruga 12, a Tartaruga 35, a Tartaruga 222.111 ou não importa qual. E diz ela: “Meninas, tô com uma situação aqui. Os meus humanos estão meio abismados com esse Universo baseado, se bem me exprimo, numa proliferação concêntrica de quelônios, numa quantidade que bota Fernando de Noronha no chinelo. Não é por nada não, mas será que a gente não podia propor, telepaticamente, é claro, uma planta-baixa do Cosmos menos figurativa? Sabe como é, do século 20 em diante eles se tornaram mais abstracionistas, mais mondrianescos. Se a gente sugerir outro modelo pode ser que isto os sossegue”. Seguiram-se milênios (em tempo tartarugal) de debates e mesas-redondas, até que a Tartaruga 802.701 sugeriu: “Por que não sugerir telepaticamente a eles que o universo é composto, em níveis alternados, de ondas e de partículas?...” Assim foi feito; e fez-se a Luz.
2278) A estética do “Que Mundo Pequeno!” (26.6.2010)
O folhetim e seus derivados (o seriado do cinema, a telenovela, os romances de pulp fiction) criou uma estética dramatúrgica em que os acontecimentos oscilam o tempo inteiro entre duas forças cósmicas opostas e complementares: o Acaso e o Destino. Se o universo é regido pelo Acaso, então tudo é possível, mesmo os fatos mais mirabolantes, as coincidências mais gritantes, as casualidades mais imprevistas. Se é regido pelo Destino, essas surpresas são igualmente possíveis, porque o conceito de Destino pressupõe a presença de uma Vontade orquestrando, com autoridade absoluta, os fatos do Universo. Se “estava escrito”, tinha de acontecer.
Vai daí que algumas figuras narrativas são típicas deste gênero, porque exprimem de maneira recorrente as situações de que ele se vale para manipular acontecimentos e personagens.
Falei dias atrás sobre a “estética do Logo Agora”; podemos também chamar a estética do folhetim de “a estética do Que Mundo Pequeno”, porque esta é uma exclamação recorrente (explícita, ou subentendida) dos personagens. Não existe folhetim se não existir, em cada virada de página, a sensação de que aqueles personagens podem se deparar a qualquer momento com a última pessoa no mundo que eles imaginariam encontrar ali, naquele local, naquele momento.
Esses encontros inesperados podem trazer o êxtase ou a catástrofe, não importa. Para o Autor, trazem os cruzamentos indispensáveis entre as linhas narrativas, cruzamentos de que ele precisa para gerar ou resolver conflitos, produzir revelações, quebrar o fluxo narrativo e empurrá-lo noutra direção, propor mistérios, esclarecer mistérios.
As grandes cidades modernas são, portanto, o ambiente ideal para o folhetim, que é consequência dos grandes jornais modernos. A Londres de Charles Dickens tinha dois milhões de habitantes; a Paris de Balzac tinha um milhão; a Moscou de Dostoiévski tinha 800 mil.
Estas grandezas demográficas proporcionam tanto os encontros quanto os desencontros. O labirinto das ruas e dos bairros das grandes cidades permite que pessoas passem uma vida inteira sem se cruzar, mas também que pessoas possam se esbarrar inesperadamente quando menos esperam. O folhetim exige essa possibilidade simultânea de distanciamento e de aproximação, exige a possibilidade do Segredo Bem Guardado e a possibilidade da Revelação Súbita.
O folhetim é de certa forma um gênero guiado pela Fatalidade Estatística, pelo jogo constante entre o banal e o extraordinário, um jogo em que basta que algo não seja impossível (como afirmou Sherlock Holmes) para que possa ser verdade, por mais improvável que seja.
“Que mundo pequeno!” exclamam, ao se reencontrarem, dois amigos de infância, um casal de ex-namorados, dois parentes distantes, uma dupla de ex-sócios, todos aqueles personagens que, virando uma esquina, entrando num restaurante ou visitando um bairro distante se deparam, por obra do Acaso e do Destino, com a pessoa que irá mudar sua vida.
2277) George Orwell e o futebol (25.6.2010)
(foto: Laurence Griffiths)
Em tempo de Copa do Mundo, talvez valha a pena refletir sobre a impressão que essas disputas internacionais de futebol já causaram. Em dezembro de 1945 George Orwell publicou no jornal Tribune um artigo intitulado “The Sporting Spirit” em que comentava com azedume a visita do Dínamo de Kiev à Inglaterra para disputar alguns jogos amistosos, talvez como parte da política de boa vizinhança que Churchill e Stálin tentaram manter por algum tempo depois de derrotarem o nazismo. Se era esta a intenção, diz Orwell, eles podiam tirar os respectivos cavalinhos da chuva: “O esporte disputado pra valer não tem nada a ver com ‘fair play’; ele se alimenta de ódio, ciúme, jactância, desprezo pelas regras e o prazer sádico em observar atos de violência. Em outras palavras, é uma guerra sem armas de fogo”.
Ainda estava viva na memória de Orwell a maneira como Hitler tentou capitalizar politicamente as Olimpíadas de 1936, e ele via na utilização do esporte no mundo moderno uma manipulação cínica e deliberada de alguns dos piores sentimentos: “Na Inglaterra e nos EUA o esporte se tornou uma atividade de pesados investimentos financeiros, capaz de atrair enormes multidões e de despertar paixões selvagens, e essa infecção se alastrou de país em país. E foi nos esportes mais violentos e combativos, o futebol e o boxe, que ela mais se espalhou. Não há dúvida de que tudo isto está ligado à ascensão do nacionalismo, ou seja, este lunático hábito moderno de alguém se identificar com grandes estruturas de poder, e passar a enxergar todas as coisas do ponto de vista do prestígio competitivo”.
Estas reflexões são interessantes, de um lado, por revelar o pessimismo de um escritor e de um povo que mal tinham saído de uma das maiores catástrofes guerreiras que a humanidade já viu. E por outro lado nos levam a pensar que Orwell nesse momento estava iniciando a composição de seu último e melhor livro, 1984, que foi publicado em 1948. Li este livro há muito tempo e não me lembro se ele inclui o esporte entre as formas de manipulação totalitária do Big Brother. (Em todo caso, em 1975 Georges Perec publicou W, ou A Memória da Infância, uma aterradora parábola kafkeana sobre a utilização de esportes olímpicos como sustentáculo do fascismo.)
Orwell diz: “O mais significativo disso tudo nem é o comportamento dos jogadores, mas o da torcida, e, para além da torcida, das nações que se deixam tomar de fúria por causa dessa disputas sem sentido, e acreditam seriamente – durante um certo tempo, pelo menos – que correr, pular e dar chutes numa bola são testes das virtudes de uma nação”. O escritor talvez se decepcionasse ainda mais, se visse as somas fabulosas movimentadas pelo futebol de 2010, comparadas às de 1945. O lado positivo é o fato de que o esporte deixou de servir à guerra, à belicosidade, e hoje serve ao comércio e ao consumismo. Mas não sei se isso adoçaria a boca de um indivíduo lúcido e amargo como Orwell.
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