Na ficção científica tudo se cria, na medida em que tudo
se transforma. E toda vez que utilizamos a tradição – temas que já existem,
situações já exploradas, ambientes já descritos – nosso dever e nosso desafio é
fazer com que essa parte da nossa história, a parte tradicional, familiar,
já-conhecida, seja a parte menos relevante. A parte mais interessante tem que
ser o que o autor traz de novo, de seu, de único, de peculiar – mesmo que seja
apenas a receita na recombinação dos elementos antigos, como faz um chef de cozinha.
Na culinária, como na arte da narrativa, é meio raro
alguém inventar um ingrediente. Tudo
está na recombinação, naquela mistura única entre uma dúzia de ingredientes,
entre um milhão de combinações possíveis. E no estilo de cada um, a “mão” da
cozinheira.
O seriado Anos Luz (“Night
Sky”, 2021) está com sua primeira temporada em streaming no Amazon Prime. Concebida e coordenada por Holden
Miller, a série é uma agradável recombinação de temas antigos e recentes. Vou
citar os que me vieram à mente enquanto assistia; outros espectadores, claro,
terão lembrado de outras referências.
Way Station (1963)
é um romance de Clifford D. Simak, um dos clássicos da FC de sua época. Nele,
um fazendeiro solitário e discreto mantém num subsolo em sua fazenda um portal
que dá acesso a outros planetas. Por esse portal trafegam criaturas de espécies
diferentes, para as quais ele trabalha, servindo como uma espécie de hoteleiro,
guia, quebrador-de-galhos. É uma “estação de trânsito”, como diz o título que o
livro teve em português, para quem viaja pelo espaço.
Dark (2017-2020)
é uma série de TV alemã, criada por Baran bo Odar e Jantje Friese. Numa
cidadezinha alemã algumas pessoas descobrem portais subterrâneos que dão acesso
a outras épocas, recentes ou remotas. Isso desencadeia fugas, crimes,
tragédias, desaparecimentos, etc., e revela a existência de uma sociedade
secreta de “guardiões” do segredo da viagem no tempo. Uma gente bastante implacável.
The Lost Room (2006,
Canal Syfy), série de TV criada por Christopher Leone. Um quarto de motel,
vítima de um evento físico inexplicável, é transportado para outro plano do
espaço-tempo. Objetos associados a ele passam a produzir efeitos sobrenaturais
e são buscados com avidez por colecionadores, pesquisadores e gangsters, que
não hesitam diante de nada para obtê-los.
Elementos cruciais dessas três narrativas estão
misturados em Night Sky, cuja
história é centrada num casal setentão, J. K. Simmons (“Juno”, “Whiplash”) e
Sissy Spacek (“Carrie, a Estranha”, “Missing”, “Coal Miner’s Daughter”), numa
cidadezinha de Illinois. Os dois estão casados há uns 50 anos, perderam um
filho único, têm uma neta. No primeiro episódio da série acompanhamos seu
dia-a-dia carinhoso e às vezes áspero (por causa dele, principalmente), onde o
maior medo parece ser a invalidez, ou o Alzheimer.
Num barracão nos fundos da casa ele encontraram anos
atrás um bunker subterrâneo de onde é
possível acessar uma espécie de mirante que dá para um planeta desconhecido. É
o segredo deles. O “segredo”, como se vê, é de domínio público, no que diz
respeito aos roteiristas e dramaturgos. Portais subterrâneos que proporcionam
viagens no espaço ou no tempo não são mais propriedade intelectual de ninguém.
E justamente por não sê-lo, não é neles que a história precisa se concentrar, a
menos que disponha de uma super-idéia inovadora – o que é raro. O que interessa
a quem escreve e a quem assiste é o reflexo daquilo na vida das pessoas ao
redor.
Farnsworth, a cidadezinha onde tudo acontece, é um
ambiente ideal para os autores desenrolarem sua trama, que tem de tudo:
problemas conjugais de casal velho, problemas conjugais de casal jovem, relação
entre filhos e pais, entre avós e netos, entre mãe solteira e filha única, entre
ex-professores e ex-alunos... No meio da dinâmica inesgotável de tais
situações, Night Sky constrói uma
narrativa que avança a passos lentos.
Muitos críticos se queixaram do ritmo arrastado da série:
eu achei uma bênção. As séries de FC atuais têm mais “Ação & Aventura” do
que FC, e querem ganhar o público pelo excesso de efeitos, velocidade da
narrativa, brutalidade das situações, espetacularidade dos desfechos. No
primeiro episódio já ocorrem cinco assassinatos, quatro explosões, dois
estupros, três perseguições de carro e uma sessão de tortura.
Night Sky não
tem nada disso – nos oito episódios da primeira temporada, lembro de ter visto
um assassinato e alguns tiroteios apenas. Há violência, tensão e ameaça,
contudo: no avançar da história tomamos conhecimento de que, tal como em Dark, existe uma irmandade secreta,
cruel, autoritária e impiedosa, monitorando quem viaja (e quem foge) através
daqueles portais. Esses fugitivos são os “apóstatas”, que mesmo escapando para
o outro lado do mundo sabem que podem ser alcançados cedo ou tarde por agentes
vingadores – tal como ocorreu com Trotsky no México, Somoza no Paraguai ou
Orlando Letelier nos EUA.
A série tem o suspense necessário para atrair a atenção
dos que gostam do melodrama de perseguição, mas é no troco miúdo dos
desencontros cotidianos que ela ganha densidade e o ritmo arrastado fica
imperceptível. Já observei que uma cena longa, parada, onde “nada acontece”,
onde um personagem está apenas fumando um cigarro e olhando pela janela, ou
duas pessoas estão em silêncio numa mesa de restaurante, ganha densidade se
àquela altura a gente sabe quem são elas, o que sentem, o que pensam, e o que
deve estar acontecendo na cabeça delas naquele instante. Quando o espectador
não se interessa por isso, ou não desenvolveu esse tipo de “psicografia” (ficar
adivinhando o que o personagem pensa), a cena não tem graça nenhuma. Cabe ao
escritor/diretor evitar que isto aconteça.
Night Sky – que
tem no Brasil o título de Anos Luz –
deixou mais perguntas do que respostas no fim desta primeira temporada, o que é
uma boa coisa. A base do seu “visgo” é sem dúvida o casal idoso de
protagonistas, suas gentilezas, suas distâncias, seus carinhos, suas amarguras,
suas cumplicidades ritualizadas ao longo dos anos e, ao longo dos episódios, as
mentiras, os segredos, os fatos escondidos “para não magoar o outro”, “para não
assustar o outro”.
Este último aspecto se reflete com mais força em um dos
núcleos narrativos secundários, o das duas mulheres argentinas que cuidam de um
dos portais secretos: a mãe, que sabe de tudo, e a filha de 15 anos, protegida
do segredo, uma garota esperta, inquieta, revoltada com a solidão em que vive
(a mãe a proíbe de ter amigos), revoltada com a quantidade de vezes em que ouve
variantes de “você ainda não está pronta para saber a resposta”.
Tal como em outra série que comentei aqui recentemente, Severance, a narrativa desta primeira
temporada começa lenta, expositiva, desvelando pouco a pouco as complicações do
enredo, e ganha uma acelerada nos três últimos episódios.
Dark, a série
alemã, esticou-se demais, foi vítima do próprio sucesso e acabou emaranhando em
excesso a própria narrativa (mesmo assim, merece ser vista). Já The Lost Room tinha uma premissa e uma execução tão
“davidlynchianas”, tão cheias de elementos surrealistas e bizarros, que nunca
teve a chance de uma “temporada 2”, e parece que seus mistérios ficarão
mistérios para sempre.
Resta torcer para que Anos
Luz possa prosseguir em paz.