terça-feira, 8 de junho de 2010

2125) Os 100 livros da década (30.12.2009)



O Times Online escolheu há pouco tempo os 100 melhores livros da década que se finda. Eu percorro essas listas com várias finalidades. Uma delas é descobrir algum livro que pode me interessar. Certos autores que hoje me encantam foram encontrados assim. Não é que eu vá atrás de elogios. Elogios entram por um olho e saem pelo outro. Mas às vezes um jornalista consegue fazer a sinopse certa, a descrição certa de um livro, aquela que basta a gente ler para ter certeza (logo confirmada) de que vai gostar daquilo. Quando a descrição é boa, o cara pode até estar dizendo que o livro é uma droga, pra mim é irrelevante.

Outra finalidade é constatar como sou desinformado. De um escritor profissional, mesmo do 3o. Mundo, talvez se espere que ele tenha lido pelo menos 20 ou 30 dos melhores livros da década, afinal teve dez anos para se informar, correr atrás, ficar em dia. Não é o meu caso. Dos cem livros mencionados pelo Times (aqui: http://tinyurl.com/y8783kt), que incluem obras de ficção e de não-ficção, em diversos gêneros (incluindo poesia, ensaio, biografia, etc.) li apenas quatro: Cloud Atlas de David Mitchell (em 66o. lugar), Crônicas, vol. 1 de Bob Dylan (em 33o.), O Código da Vinci de Dan Brown (em 10.) e Dreams from my Father de Barack Obama (em 3o.). Pouco, muito pouco para uma década inteira, ainda mais se percebermos (pelo livro de Dan Brown) que o critério de seleção não é apenas qualidade literária, mas repercussão junto ao público (há um Harry Potter e um Crepúsculo na lista).

Os redatores do Times consideraram o melhor livro da década o terrível e ominoso A Estrada, de Cormac MacCarthy, a história de um pai e um filho vagueando na paisagem brutal de uma América pós-apocalíptica. Tecnicamente, portanto, trata-se de um livro de ficção científica, embora os críticos prefiram morrer a admiti-lo, uma vez que para eles o uso de temas da FC impossibilita alguém escrever boa literatura. Outros títulos já foram traduzidos e publicados no Brasil, como a HQ Persépolis de Marjane Satrapi (em 2o. lugar), A Vida de Pi de Yann Martel (em 7o.), Atonement de Ian MacEwan (em 9o.), Lendo Lolita em Teerã de Azar Nafisi (em 14o.), Deus, um Delírio de Richard Dawkins (em 15o.), A Luneta Âmbar de Philip Pullman (em 22o.), O Caçador de Pipas de Khaled Hosseini (em 30.) e vários outros.

Confirmada minha ignorância enciclopédica, resta-me apenas sair ganhando pelo outro lado. Anotei para consulta futura, além do livro de MacCarthy: The Arrival de Shaun Tan, um dos melhores ilustradores de histórias fantásticas infanto-juvenis-adultas; White Teeth de Zadie Smith, uma escritora sobre quem já li muita coisa contra e a favor; Meu nome é vermelho de Orhan Pamuk, idem idem; A Feiticeira de Florença de Salman Rushdie, autor que geralmente me agrada. “Estou atrasadíssimo nos gregos”, como se queixava Drummond, mas não custa nada olhar o que os contemporâneos andam fazendo.

2124) Pais e filhos (29.12.2009)



A imprensa adora descobrir (ou inventar) uma pequena fábula natalina para ser encenada no fim do ano, no teleteatro a que chamamos de telejornal. A deste ano foi o destino do menino Sean, que morava no Rio de Janeiro com a família de falecida mãe, e cuja guarda era reivindicada por seu pai biológico, o norte-americano David Goldman. Não vou questionar os meandros jurídicos ou políticos da história, que vocês podem encontrar alhures na imprensa. Basta dizer que na véspera de Natal, uma providencial decisão jurídica do impertérrito ministro Gilmar Mendes possibilitou a Goldman receber o filho no Consulado dos EUA e embarcar imediatamente com ele num avião rumo à Flórida, onde o garoto deve estar (no momento em que escrevo, sexta-feira à noite) sendo apresentado aos encantos “da Disney”.

Um resumo do começo dessa história pode ser lido nesta reportagem da revista Piauí (em: http://bringseanhome.org/piaui_port.html). O processo é complicado porque, além dos detalhes jurídicos, parece ser um daqueles casos em que as duas partes, mutuamente ressentidas e magoadas, fazem e dizem coisas que só contribuem para piorar a situação. O que chama a atenção é o modo como esse “conto de Natal moderno” vem se encaixar certinho com a necessidade, por parte da imprensa (a daqui e a de lá), de ter em mãos na época do Natal um drama familiar pungente, de cortar o coração. Ainda mais este, uma polêmica boa danada para colocar em campos opostos americanos x brasileiros, pais x mães, pais x padrastos...

Isso me lembra outra história emblemática que rolou este ano, a do “Balloon Boy”. Uma família dos EUA mandou aos ares um balão cheio de hélio e alegou para a polícia que o filho de 6 anos tinha subido para a cestinha do balão antes que este se desprendesse do solo. Foi desencadeada uma busca ao balão, atravessando três Estados, e cobrindo cerca de 18km. Quando o balão caiu, nada de guri lá dentro. O pirralho foi encontrado em casa pelos pais, e a partir daí uma série de circunstâncias suspeitas levaram a polícia a concluir que tudo tinha sido um falso alarme. Os pais sabiam o tempo todo que o filho estava em casa; armaram aquele circo para aparecer na mídia e, ao que se diz, ganhar um programa de TV para si. A esta altura, já confessaram a culpa, pagaram multas, e, ao que parece, foram judicialmente “proibidos de lucrar com o episódio”. Sábia medida, porque nos EUA é comum um sujeito matar alguém famoso, ir para a cadeia, escrever um livro e ficar milionário. (Em certas culturas se dá mais importância à conta bancária do que à liberdade.)

O avião em que David Goldman levou o menino para os EUA era fretado pela rede de televisão NBC, que tem direitos exclusivos de explorar jornalisticamente o episódio. A própria TV Globo teve que exibir na íntegra o filme produzido pela NBC na viagem de volta. A diferença entre a história do Balloon Boy e esta é a diferença que existe entre amadores e profissionais.

2123) Tuitando com a mente (27.12.2009)



(ilustração: Frank R. Paul) 

O saite da revista Time fez uma matéria destacando as principais invenções de 2009. Entre elas, o Twitter mental. 

Muitos adolescentes preguiçosos ficarão assanhados quando souberem que em abril, na Universidade de Wisconsin, os pesquisadores Adam Wilson e Justin Williams conseguiram enviar um texto de 22 caracteres para o Twitter, usando apenas a força mental. 

Como é possível? A cobaia (no caso, Williams) instalou na cabeça um capacete com eletrodos que monitoravam sua atividade mental. Em seguida, ele fixava a atenção numa tela, onde o alfabeto ia sendo projetado letra por letra, e “escolhia” mentalmente a letra que queria usar na formação de uma palavra. Os eletrodos captavam esse aumento de atividade cerebral no instante em que ele escolhia a letra, e davam o comando para que ela fosse transmitida. 

Desse modo, Williams transmitiu a frase que talvez um dia torne-se mítica e emblemática: USING EEG TO SEND TWEET, “usando eletro-encefalograma para tuitar”. Note-se que são 18 letras e 4 espaços: os espaços também entram no processo de escolha. 

Parece milagre mas é muito simples: tudo de que precisamos é uma maneira confiável de captar um pequeno “estremecimento mental” de reconhecimento e escolha, associá-lo de maneira inequívoca ao símbolo que o produziu, e transmitir esse símbolo para qualquer equipamento produtor de texto. 

Processo que não é muito diferente do que é usado com pacientes tetraplégicos ou acometidos por algum tipo de problema que deixe seu corpo paralisado mas a mente intacta. 

Ocorreu isso com Assis Chateaubriand após o famoso derrame que o tornou inválido em fevereiro de 1960, conforme conta Fernando Morais no capítulo 34 de seu livro Chatô. Imobilizado por uma trombose, Chateaubriand estava totalmente consciente, e uma enfermeira esperta teve a idéia de combinar com ele sinais com os olhos (fechar os olhos para dizer “sim”, deixá-los abertos para “não”). Depois, ela pregou, na parede do quarto do hospital, folhas de papel com o alfabeto. Ia apontando cada uma com uma régua, e quando ela chegava à letra que ele queria, Chatô fechava os olhos. 

Compôs assim sua primeira frase pós-trombose, que provou (para desespero de seus inimigos e euforia dos seus xeleléus) que ele continuava lúcido: “Já entendi tudo: o edifício pegou fogo, só sobrou a biblioteca”. 

A biblioteca agora, ao que parece, pode se tornar virtual, pode se transformar em impulsos elétricos do cérebro transmitidos via wireless para um computador ou um celular, etc. e tal. A Time comenta com bom-humor que por enquanto a maior velocidade conseguida pelos pesquisadores é de 8 caracteres por minuto, o que torna esse processo mais adequado para o Twitter do que para textos mais densos. 

Em casos assim, contudo, o que importa é comprovar o processo, mostrar que pode ser executado com precisão e com meios acessíveis. Aumentar a velocidade é mera questão de tempo, e as possibilidades, como sempre, são infinitas.






2122) No Reino da Dinamarca (26.12.2009)



O relativo fracasso das negociações ambientais na cúpula de Copenhague já estava mais ou menos previsto, e, como bem falou nosso presidente, somente um milagre ou um anjo descido do céu seria capaz de reverter, de última hora, a tendência do mundo para uma inexorável rota de colisão consigo mesmo. A colisão pra valer só acontecerá dentro de algumas décadas, portanto nenhum de nós, participantes e espectadores da cúpula, tem motivo para se preocupar. Como na velha história do cara que prometeu ao rei que em 10 anos ensinaria um burro a falar, “até lá ou morro eu, ou morre o rei ou morre o burro”.

Claro que os líderes comunistas chineses não estão a fim de sustar sua industrialização galopante por motivos ambientais. Quando a China começar a sofrer os efeitos das suas decisões de hoje, todos eles já estarão confortavelmente embalsamados em seus mausoléus. Claro que Barack Obama (que para manter os EUA respirando a curto prazo precisa costurar dezenas de acordos políticos internos, delicados, com seus adversários domésticos), não vai “dar uma de frouxo” e obrigar o país a um sacrifício a que os americanos não estão habituados, e que considerariam sinal de fraqueza. Ou seja: em princípio, ninguém tem nada contra o meio ambiente, ninguém tem planos de destruir o planeta. Mas todo mundo tem prioridades políticas a curto prazo. Se elas ameaçam de extinção a Humanidade, tanto pior para a Humanidade. Numa democracia, os eleitores são mais importantes do que ela. (É ou não é?)

É a velha solução do bêbo liso: se não tem dinheiro para pedir a conta, melhor dar de ombros e pedir outra cerveja. Alguém vai pagar a conta, e posso até ser eu-amanhã, mas eu-agora é que não pago.

A teoria freudiana diz (na verdade não é bem assim que ela diz, estou fazendo uma bruta simplificação, a bem da brevidade) que o ser humano é movido por dois impulsos, um impulso de prazer (Eros) e um impulso de morte (Tânatos). O impulso do prazer quer a gratificação contínua e ininterrupta dos nossos desejos físicos. O impulso de morte nos leva à auto-destruição como indivíduo e como espécie. Abstraindo a visão psicanalítica e projetando-a para o gênero humano, podermos ver a junção dos dois impulsos neste nosso processo de destruição do planeta. No momento atual, predomina o impulso do prazer. Criamos uma industrialização e uma sociedade consumista que nos gratifica física e psicologicamente: roupas caras, carros, ar condicionado, aquecedor, indústrias, empregos, luz elétrica abundante, eletrodomésticos para fazer a mais boba tarefa, toda uma civilização do ócio e do conforto, que exige quantidades indescritíveis de energia, e joga na atmosfera quantidades equivalentes de poluição. Tudo isso para garantir nosso prazer. Quando percebermos o mal que fizemos a nós mesmos, nos destruiremos. Pense Mad Max, pense ficção pós-apocalíptica, pense um mundo de gangues em guerra por comida, por água, por oxigênio para respirar.

2121) Natal 2009 (25.12.2009)



...eis que volta o Natal, com alegria,
como voltam as estações e festas.
As que foram não voltam. Voltam estas.
Inesperadas. Por primeira vez.
Desorganizam tudo em seu talvez,
em seu impulso de dobrar esquinas.
Nem o recurso de tombar ruínas
cancela a cachoeira dos minutos
que se dissolvem, soltos, dissolutos,
na volúpia gozosa de extinguir-se.

Romper por quê, o encanto desta circe,
se a prisão do prazer nos reconforta?
Se a masmorra tem luz, que se abra a porta;
declinará o preso dessa oferta.
A luz (somente a luz) a luz liberta,
a luz de que são feitas as partículas
da matéria. Minúsculas. Ridículas.
Mas são o barro com que fomos feitos:
as moléculas, ondas e conceitos,
hard e software por onde explode a vida.

Essa miragem auto-produzida,
penélope a tecer o véu de Maya.
Universo, finíssima cambraia
que a cada volta torna-se mais fina
e através de si mesma descortina
o seu próximo estágio em quase ser.
Diluir-se é uma forma de embeber
tudo quanto nos cerca, como a tinta
no papel a secar sente-se extinta
e não sabe que Alguém a está lendo.

Mundo velho a girar!... Mundo tremendo!...
Foi tão bom ter podido conhecer-te,
vir travando contigo a dança, o flerte
em que me fazes crer que sou querido,
que vim pra transformar-te, pressentido
por filósofos, vates e profetas
(translúcidos titãs que tu projetas
nos écrans da memória coletiva):
um homem quer razões para que viva,
já que a morte prescinde de porquês.

O dia. A noite. Dominós. Xadrez.
Alfabeto de polos em contraste.
(Cai no teu colo o que não procuraste...
basta alguém respirar que acaba achando!)
Como dados febris se entrechocando,
as palavras produzem seu resulto.
E o sentido do mundo arfando, oculto,
à espera de quem o desencante.
Que seria do Inferno sem um Dante
sublimando seu fogo em pura luz?

E essa rima de volta me conduz
ao Natal, que já foi festa pagã
e hoje é festa paga; e amanhã
com que moeda nos farão comprá-lo?
Em que templo haverá Missa do Galo
com roleta, carnê, bilheteria?
Que 5 estrelas sobre a estrebaria?
E esses ternos Armani dos pastores?
Em que mundo, senhoras e senhores,
vim parar, sem sair deste planeta?

Já sonhei pertencer ao IRA, ao ETA,
já sonhei apertar a tecla “Enter”
e ver cacos do World Trade Center
a chover sobre toda Nova York...
Já fui mais proletário do que Górki
(e sou mais leninista que Lenine)
mas em mim tudo isso é sonho, é cine,
mise-en-scène, poesia, science-fiction;
olho o mundo com olhos Robert Mitchum
(esse olhos de inextinguível lombra)...

Só me resta afirmar que canto a Sombra
com esta mesma voz que canta a Luz,
pois não sei qual à outra é que produz
e nunca vi a linha que as separa...
Gira mais, mundo velho! Ele não para,
por mais que se o requeime e descongele;
como cobra, o planeta troca a pele,
descartando a nociva Humanidade...
Mas que diabo, é Natal! Tenha a bondade,
encha o copo... Pois bem: como eu dizia...





2120) A antiárvore de Natal |(24.12.2009)



(a tal árvore)

Quando eu era pequeno houve um ano em que se montou a primeira árvore de Natal pra valer em nossa casa. Era uma arvorezinha banal, comum, mas não tanto que não me produzisse uma porção de epifanias. A primeira foi constatar que aquelas agulhas verdes de pinheiro eram todas de plástico (murmurei comigo: “É falsa!”). A segunda foi a surpresa de ver que as bolas coloridas, que eu via nas fotos e imaginava maciças e pesadas, eram levíssimas, e feitas de uma espécie de vidro muito fino, que se estilhaçava facilmente (como meus dedos constataram numa infeliz ocasião), frágil (avisou minha Tia Adiza) “como casca de ovo”. A terceira foi a incessante surpresa de ver as lampadazinhas compridas, cheias de água colorida, e que, uma vez acesas, ferviam e borbulhavam sem parar. A quarta foi escutar o comentário jovial de minha mãe: “Agora vamos ter que fazer todo ano, porque dizem que quando a gente faz árvore de Natal em casa e fica um Natal sem fazer, tem morte na família”. Como esquecer um Natal assim?

Razões para perplexidade e incessante deslumbramento têm, também, os frequentadores da Tate Gallery, em Londres, uma das galerias de arte mais famosas (e mais caras) do mundo. Como faz todos os anos, a Tate montou uma árvore de Natal para saudar os clientes, e encomendou o projeto a uma artista. O projeto de 2009 coube a Tacita Dean, e o resultado vem produzido um relativo sucesso-de-escândalo no meio artístico londrino – pelo simples fato de ser uma árvore de Natal com bolas coloridas, velinhas, etc.

A razão do espanto é que a Tate sempre caprichou em árvores que, de acordo com o espírito de vanguarda que caracteriza a instituição, pareciam-se com instalações, intervenções, desconstruções, releituras, tudo menos uma árvore de Natal. Eram coisas que poucos cidadãos se atreveriam a colocar na sala da própria casa. A árvore criada em 2006 por Sarah Lucas, por exemplo, era decorada com “querubins doentios, quase pornográficos, com genitália balouçante”. A árvore de 2007, de Fiona Banner, ostentava o título de “Paz na Terra”, e vinha decorada com aeromodelos de aviões de guerra.

Um artigo de Martin Gayford no saite Bloomberg diz: “Existe um descompasso quase absoluto entre a vanguarda cultural e o espírito natalino. Este último é tradicional, festivo, alegre, voltado para a família; a outra não é nada disso”. A vanguarda seria, então, moderna, austera, triste, afastada dos valores familiares. Pode-se dizer também que o espírito do Natal tende a colocar acima de tudo os valores afetivos e o compartilhamento de emoções agradáveis. A vanguarda, nesse sentido, é brechtiana: quer raspar o excesso de emoções, deixando a nu apenas o osso luzidio e impessoal do raciocínio. A vanguarda quer ser puro pensamento crítico, talvez como uma reação natural à cultura-de-massas, cuja estratégia é a de bajular os afetos, evocar emoções familiares no seu público – e produzir emoções artificiais onde encontra um vácuo.

2119) A invasão britânica (23.12.2009)



O Canal Multishow exibiu o documentário The Beatles – The First US Visit, com material de arquivo sobre a primeira ida dos Beatles aos EUA em 1964, quando entre outras coisas eles fizeram três apresentações no Ed Sullivan Show, batendo todos os recordes de audiência. Numa campanha bem conduzida pelo empresário Brian Epstein (que neste documentário vi falando pela primeira vez, pelo que me lembro), essa viagem foi o trampolim dos Beatles para o sucesso. Conquistando a América, os cabeludos conquistaram o mundo.

Todo artista pop que fazer sucesso na “terra do sonho distante”. Como diz a letra de “New York, New York”: “Se eu fizer sucesso ali, faço em qualquer canto”. Porque é ali que a competição é mais ferrenha, as apostas são mais altas, as raposas mais predadoras, as alianças e os contratos mais cheios de talvezes e de poréns. Bob Dylan, que desembarcou em Manhattan apenas dois anos antes dos Beatles, disse em suas Crônicas: “Era um mundo estranho que começava a se mostrar, um mundo semelhante a uma trovoada com raios coruscando nas bordas. Muitos o enxergaram erradamente e ainda hoje não sabem vê-lo do jeito certo. Eu mergulhei direto nele. Estava escancarado. Uma coisa é certa, quem mandava ali não era Deus – mas também não era o Diabo”.

Os Beatles eram cromossomicamente menos metafísicos do que Dylan. (Um dia ainda vou pesquisar quais foram, cronologicamente, as primeiras aparições das palavras “God” e “Devil” nas letras de Lennon e MacCartney.) Queriam apenas tocar, sacudir a cabeleira, dizer piadas nas entrevistas e levar garotas para a suíte. Mas sonhavam há muito em invadir aquela praia. Parecia impossível, até uma noite no começo de 1964, quando estavam cantando no Olympia de Paris, uma temporada problemática (a imprensa francesa os esnobava) e deficitária (o cachê não cobria os custos, e Brian hospedou a equipe inteira no Hotel Georges Cinq). Após o show, o fotógrafo Dezo Hoffmann (que acompanhava o grupo) estava jantando quando recebeu um recado para voltar urgente ao hotel. Ele recorda: “Brian Epstein estava sentado numa cadeira e os Beatles estavam sentados no chão à sua volta. Brian me disse ter acabado de receber a notícia de que “I Wanna Hold Your Hand” tinha alcançado o primeiro lugar na parada de sucessos dos Estados Unidos. Os Beatles não conseguiam falar; nem mesmo Lennon. Estavam só ali, sentados como gatinhos, aos pés de Brian.”

Semanas atrás, no programa de David Letterman, Sir Paul MacCartney, aos 67 anos, recordou aquelas apresentações no show de Ed Sullivan (no mesmo prédio onde Letterman se apresenta hoje). Disse ele que a produção do programa lhe pediu para cantar “Yesterday” sozinho, sem o resto da banda. Ele hesitou, mas cedeu. Na hora em que a cortina ia se abrir, um técnico perguntou ao cantor de 22 anos: “Está nervoso?”. “Não”, disse ele. O outro retrucou: “Pois devia estar. Tem 75 milhões de pessoas assistindo o que você vai fazer agora”.

2118) A casa, a escola e a rua (22.12.2009)



(grafitos de Vitche e Flip)

São nossos três palcos de aprendizado, os três ambientes onde nos ensinam o básico (ou seja, nos ensinam a aprender e a utilizar o aprendido) e depois nos mandam às feras. Cada um desses ambientes tem primazia em diferentes épocas da nossa vida. A primeira infância pertence toda à Casa. Os pais e a família concêntrica passam pro bebê as primeiras noções de qualquer coisa, num processo que muitas vezes vai até a vida adulta. O rapaz ou a moça que sai da casa paterna (geralmente para casar) aos vinte e tantos anos de idade está partindo um cordão umbilical que é real, não tem nada de simbólico. É um cordão psicológico, mas tão real que tem gente que não consegue parti-lo nunca.

A Escola começa quando chega a hora do pirralho ser enviado para seu primeiro jardim-de-infância, onde começa a ser deixado sozinho (longe dos pais), a bater de frente com outros pirralhos que estão passando pelo mesmo susto e desmame, e a ter lições formais num ambiente formal. Escola tem sempre uma conotação chata. Nossos filhos sempre perguntam, principalmente dos 12 anos em diante: “Mas pra quê que eu tenho que estudar essas coisas? Pra que é que eu vou precisar disso?” Não sei, e até a idade em que estou não precisei extrair nenhuma raiz quadrada ou cúbica, não precisei saber quem eram os membros da Regência Trina Provisória, nem alguém jamais me perguntou quais eram os elementos químicos monovalentes, bivalentes ou trivalentes. Mas respondo: “Estudar essas coisas ensina disciplina de estudo, não ensina as coisas em si. Ensina você a enfiar a cara num livro e aprender alguma coisa, e vai precisar disso um dia, quando se defrontar com coisas que lhe interessam mas que exigem esforço para serem assimiladas”.

E finalmente vem a Rua. Essa está sempre presente, de um modo ou de outro, mas é a partir da adolescência que ela rapidamente bota as outras duas no bolso e impõe ao garoto ou à garota suas leis inescapáveis. O mais danado da rua é que ela é sedutora de um modo que Casa e Escola nunca são. Ou talvez devêssemos reconhecer que a Rua parece ter as respostas para as perguntas que os hormônios ficam fazendo 24 horas por dia, 60 segundos por minuto, dentro dos metabolismos turbilhonantes dos nossos filhos. É fácil dizer que essas respostas são o sexo, as drogas e o rock-and-roll. Pelo que me lembro, de quando passei por essa encarnação, o que a rua tinha de mais fascinante era a solidão. O fato de eu saber que ali estava entregue a minhas próprias forças e espertezas, e que na hora de um problema não poderia contar com meus pais, nem com o surrado recurso de “ir me queixar na Secretaria do Colégio”. A Rua é fascinante porque é o nosso destino final. Quando chegamos nela, nunca mais saímos. É para viver na Rua que Casa e Escola nos preparam, é para atuar na Rua que estávamos estudando não importa o quê (frações, pronomes, Tordesilhas, co-senos), porque as perguntas que a Rua nos fará nunca são as que esperávamos.

2117) Os políticos e os maridos (20.12.2009)



Por que motivo tantos políticos desviam verbas públicas, cobram propinas para cumprir suas obrigações, usam o poder conferido pelos seus mandatos para tornar-se milionários em poucos anos de atividade? (Nunca esquecerei a frase que li uma vez: “Eu só tenho quatro anos para ficar rico, talvez nunca mais tenha outra chance!”). Muitos fazem isso porque são (como a imprensa e a população não cansa de chamá-los) canalhas, calhordas, larápios, etc. Mas no meio dos políticos desonestos deve existir um contingente de sujeitos que não são tão maus assim. São bons administradores, são amigos leais dos seus amigos, são pais de família exemplares... Por que roubam, então? Resposta: roubam porque lhes foi dito que todo mundo rouba, e nenhum deles quer ser o primeiro a abrir mão de um direito adquirido há séculos.

Nesse aspecto, não diferem muito de outro tipo de cidadão: o marido que trai a esposa. Um marido, no mundo ocidental (não faço uma idéia muito clara de como se comportam os maridos em culturas como a da China, a do Irã, a da Índia, etc.), assume compromissos civis e religiosos quando se casa. Entre estes, está (se não me falha a memória) o de ser fiel à esposa. Claro que um tal compromisso é apenas “pro forma”, da boca pra fora, porque em grande parte dos casos todo mundo sabe (ele, a esposa, o padre, o sacristão, as testemunhas, os garçons e os manobristas da festa do casamento) que, na primeira chance que tiver, ele a trairá de coração alegre e consciência tranquila. Por que não o faria? Todo mundo faz. Claro que se for a esposa a traí-lo ele invocará prontamente o Código Civil, a Bíblia, e qualquer legislação que lhe dê o direito de se sentir prejudicado. Mas todo mundo sabe (eita frasezinha fatal) todo mundo sabe que essas coisas só valem para a mulher, não valem para o homem. Esses maridos traem porque nenhum deles quer ser o primeiro a abrir mão de um direito adquirido há séculos.

Com o erário público é a mesma coisa. O dinheiro público (e o dinheiro das propinas, das percentagens por-baixo-do-pano, etc.) oferece-se a um político com todo o coquetismo e todos os decotes de quem nasceu para se oferecer, de quem nasceu para se dar. Pegue uma nota qualquer de dinheiro público, e olhe atentamente. Você vai ver que em alguns segundos a efígie daquele vulto histórico barbudo se metamorfoseia na imagem de uma mulher linda, provocante, que pisca o olho em câmara lenta e sussurra: “Leve-me. Posso ser sua. Você tem direito a mim, é só querer. Todo mundo já me levou.” Noventa por cento dos políticos, noventa por cento dos maridos (não tabulei pesquisas; esta percentagem é meramente metafórica) levam.

Um antigo provérbio anarquista dizia que só existirá justiça social no mundo quando o último burguês for enforcado com as tripas do último padre. Eu afirmo que em nosso mundo os políticos só deixarão de roubar quando os maridos deixarem de trair. Pra vocês verem o tamanho do problema.

2116) Apocalypse Forever (19.12.2009)




Muitos filmes que tenho comentado nesta coluna estou revendo num curso que ocorre (ocorreu -- em 2009) aqui no Rio, no Teatro Nelson Rodrigues, da Caixa Econômica Federal. Chama-se “História da Filosofia em 40 Filmes”, e todo sábado de manhã há a projeção de um filme e depois uma palestra/debate com um dos dois professores (Alexandre Costa e Patrick Pessoa).

 É com entrada franca, mas mesmo assim me surpreendo às vezes em ver cerca de 300 ou 400 pessoas, num ensolarado sábado de manhã, indo assistir um filme preto-e-branco de 50 anos atrás para depois discutir conceitos filosóficos. Será que o mundo se salva?...

Hoje saí achando que não, depois de rever o Apocalypse Now de Francis Coppola, que integra o módulo sobre o Fascismo (quatro filmes: M de Fritz Lang, Taxi Driver de Scorsese, este de Coppola e depois Laranja Mecânica de Kubrick).

A melhor coisa, para mim, foi rever o filme poucas semanas depois de ter lido Heart of Darkness, o livro de Joseph Conrad cuja linha narrativa Coppola transpôs da África de 1890 para o Vietnam/Camboja dos anos 1970. O colonialismo britânico na África do século 19 e a intervenção norte-americana no Vietnam são duas coisas muito diferentes. Mas é como se fossem duas marchinhas diferentes tocadas num mesmo Baile da Ilha Fiscal.

Ainda não vi o Apocalipse Redux, em que Coppola aumentou para quatro horas a duração deste filme, que sempre vi com duas horas e meia. Pode até ser melhor; mas não sinto falta de nada. 

Coppola pode ter ido à falência com este filme, mas poucos filmes de guerra terão alcançado um nível tão primal, tão arquetípico quanto o que o diretor alcança em várias cenas daqui: a carga dos helicópteros ao som de Wagner; a passagem lenta do barco por entre os cambojanos silenciosos pintados de lama cinzenta; a execução simultânea de Kurtz e do boi sagrado; os soldados em desespero jogando-se ao rio de mala na mão à passagem do barco e pedindo para ir embora; cenas que o cinema nunca fizera ou pelo menos nunca fizera com tal impacto.

Em momentos assim, o Vietnam deixa de existir, ou melhor, Coppola nos faz perceber que aquilo que chamamos “o Vietnam” (em História, não em Geografia) existe desde o dia em que um troglodita rachou o crânio de outro.

Imagino o que Joseph Conrad (que chegou a conhecer bem o cinema, pois só morreu em 1924) pensaria ao assistir este filme de Coppola. Talvez imaginasse que o destino do homem ocidental é produzir sistemas cada vez mais complexos de exploração dos primitivos. Pensaria que essa exploração é conduzida pelos medíocres, pelos medianos, pelo que ele chama de “os Mefistófeles de papel-machê”, e que nesse sistema gigantesco de triturar destinos humanos só os medíocres sobrevivem e se dão bem. Os homens de gênio, como Kurtz, fracassam porque tentam procurar o limite do mundo que defendem, e onde quer que se aproximem desse limite só encontram “o horror, o horror”.