(escada em espiral da Quinta da Regaleira, Portugal)
O sonho é uma atividade mental parecida com a criação
literária, daí não ser surpreendente que tantos poemas e contos e romances tenham
se originado de sonhos.
Os três grandes clássicos da literatura de terror tiveram
como ponto de partida sonhos dos seus autores: Frankenstein de Mary Shelley (após um debate sobre histórias
terroríficas, numa reunião entre amigos), o Drácula
de Bram Stoker (um pesadelo devido a
algo indigesto que ele comeu, de acordo com depoimento do seu filho) e O Médico e o Monstro de Robert Louis
Stevenson (pesadelo de efeito tão forte que a primeira versão, “pesada” demais,
teve que ser queimada; a versão que conhecemos é a segunda).
O sonho é uma atividade tridimensional, eu acho, em que
nos sentimos envolvidos (se bem que de modo virtual) por todos os lados. Vemos,
ouvimos, apalpamos, caminhamos, travamos diálogos, atravessamos espaços
físicos.
É muito diferente de quando estamos simplesmente
escrevendo ficção:
“Caminhei pela
calçada cheia de lixo, fui observado com desconfiança por um cachorro que
ergueu seu focinho de dentro de uma caixa de papelão desconjuntada, e ao dobrar
a esquina vi o matagal tomando conta de tudo e um carro ardendo em fogo lento
junto da calçada”.
Uma cena boazinha, mas para compô-la recorri apenas a
palavras e a 20 ou 30% de flashes visuais sugeridos por elas. Não sei a textura
da calçada, não sei se fazia frio ou calor, não senti o cheiro do lixo nem o da
fumaça. No sonho a gente sente tudo.
Uma das traduções mais envolventes que fiz nos últimos
tempos (eu sou um desses profissionais afortunados que só traduzem os autores
de que gostam) foi a trilogia Comando Sul
de Jeff VanderMeer, que saiu pela Ed. Intrínseca sob os títulos de Aniquilação, Autoridade e Aceitação.
A obra conta os mistérios de uma “Área X” que há mais de
30 anos surgiu no sul dos EUA, cercada por um campo de força invisível onde só
se penetra com a maior dificuldade. Acontecem ali fatos biológicos estranhos,
inexplicáveis. E os livros contam o que acontece com as expedições que se
aventuram lá dentro.
Toda a trilogia tem um clima onírico, que ressalta ainda
mais porque praticamente todos os personagens são pessoas pragmáticas: militares,
cientistas, agentes da CIA ou outros envolvidos com esse fenômeno que ameaça a
segurança nacional e o próprio planeta Terra.
Num artigo recente, VanderMeer comenta alguns aspectos da
criação da trilogia, escrita (por contrato) ao longo de dezoito meses
fatigantes.
A certa altura ele diz que sua mente estava obcecada por
duas coisas: o famoso vazamento do poço submarino da British Petroleum no Golfo
do México (que ele visualizava como uma espiral de óleo negro elevando-se da
profundezas e poluindo o mar da Flórida, onde ele morava) e uma cirurgia de
dente do siso que lhe causou muito incômodo e o fez tomar muitos remédios. E
relata:
Até que, uma noite, em algum lugar profundo do meu subconsciente aquela
espiral de petróleo se transformou ou se inverteu e eu fui possuído por um
sonho tenebroso. No sonho, eu descia os degraus de uma torre escavada no solo. Havia
palavras vivas na parede. Uma matéria estranha. Uma energia peculiar. As
palavras na parede eram feitas de limo, ou de fungos, algo tão comum ali no
norte da Flórida que essa parte do sonho nem me pareceu estranha.
O que me pareceu, sim, estranho foi o fato de que as palavras iam
ficando mais brilhantes, mais vivas, até que eu não pude mais ignorar um fato
essencial e horrorizante: lá embaixo da escadaria, alguma coisa estava ainda
escrevendo... e ao descer eu me aproximava dela.
Vocês podem achar que isso já bastaria para me acordar, mas era aquele
tipo de sonho em que você não sabe que está sonhando. Eu tinha a noção bastante
lúcida de que estava numa expedição, e era capaz até de lembrar o que tinha
comido de manhã cedo, e de que tinha saído para dar uma volta... e encontrara
aquilo.
Não vou mentir. Era algo que me desorientava e aterrorizava. Eu estava
morrendo de medo naquele sonho. Mas mesmo assim continuei a descer os degraus,
até perceber que depois da próxima curva estava o quem-quer-que-fosse que
estava produzindo aquelas palavras. E não sei se foi por causa do medo ou se
foi porque minha mente de escritor soube que se eu avistasse o que estava ali
jamais seria capaz de escrever uma história sobre ela. Mas acordei com o enredo
e os personagens principais prontos, na minha cabeça. Além de cerca de 500
palavras estranhas escritas na parede, que continuaram as mesmas até a versão
final do livro.
Depois disso, escrever Aniquilação foi um processo simples. Eu levantava, escrevia durante umas três
horas, dormia de novo, editava um pouco durante a tarde, e repetia o processo.
Em cinco semanas, estava com o livro pronto. (...) Foi uma das melhores
experiências de escrita que já tive.
Nem vou entrar nas associações freudianas ou sei lá o que
desse sonho. O que me interessa é o método. O sonho proporciona:
a) Uma forte impressão de realidade em 3-D, onde
paisagem, personagens, ação, diálogo, local etc nos chegam já prontos, num
“pacote”, sem a necessidade que temos, na vigília, de imaginar cada detalhe,
num esforço longo e cansativo.
b) Uma poderosa carga emocional – no caso, de medo,
estranheza, etc. Essa emoção “grava” de
maneira mais profunda as imagens sonhadas, deixa-as indeléveis.
c) Uma forte sensação de mistério, de algo que precisa
ser investigado, lembrado, examinado – no caso, por se tratar de um escritor,
através de uma história que vá mais fundo nessa imagem inicial.
Note-se a afirmação do autor de que acordava, escrevia e
dormia de novo. Como se precisasse diariamente revisitar o “locus” mental da
inspiração que deflagrou a história.
Quem leu Aniquilação
sabe que a descida da bióloga (a narradora do romance) nessa torre invertida,
com escada em espiral, que mergulha no interior da terra, é uma das primeiras
cenas do livro. VanderMeer partiu dela para criar uma narrativa sobre
catástrofes ambientais, machismo e feminismo, o complexo de espionagem militar
dos EUA, numa história intrincada que envolve inclusive a possibilidade de um
contato extraterrestre.
O link abaixo traz o texto completo de seu relato, com a
revelação de muitos outros detalhes do seu cotidiano que ele considerou
inexplicáveis e acabou introduzindo no livro, bem como a impressão crescente
que ele teve, durante esses 18 meses de escrita, de que o universo do livro
estava fazendo certas coisas aparecerem no mundo real.