No
dia em que a Revolução Descalça tomou a capital do país, Henryk Rhysdael amaldiçoou-se pelo otimismo que o
impedira de fugir. A família estava em segurança em Londres, com a promessa de
que voltaria para casa quando o governo controlasse os rebeldes. Agora, por
entre os vidros à prova de balas do terraço do seu bunker de banqueiro, ele via
o tsunami de torsos negros superlotando as ruas, os móveis sendo arremessados
das janelas, os incêndios se alastrando. Um ratatá ensurdecedor vindo do alto disse-lhe
que os selvagens, além de armamento, contavam com helicópteros estrangeiros. Colado
à porta blindada, acompanhou o tiroteio
no corredor. Vestiu a roupa suja de operário que guardava para uma emergência,
lançou o último olhar para o duplex de 900 m2 onde fôra feliz, e desceu pelo
alçapão para o apartamento de baixo, que sabia desocupado, dali para a escada
de serviço, e dali, em meio à turba que saqueava tudo, para as ruas, a
fronteira e o exílio.
Voltou
ao país dez anos depois, numa missão humanitária para investigar denúncias de
torturas por parte do governo revolucionário. Pela janela da limusine viu que
os prédios ainda guardavam marcas de fogo e buracos de balas. Durante os
debates, ficou amigo de um capitão do exército cujo pai lhe devia favores. Na
véspera da partida, fez o pedido: queria visitar seu antigo endereço. Soube que
o edifício era agora um alojamento para migrantes fugindo das epidemias do
campo.
O
prédio estava cercado de barracas de fruta e de peixe. No hall, eles abriram
caminho por entre filas de pessoas com mochilas às costas e sacos na cabeça.
Subiram pela escada; o elevador estava quebrado há dois anos. Crianças fugiram
ao vê-los, escondendo-se nos apartamentos e espiando pela fresta da porta.
Alguns andares tinham pintura recente, outros estavam cobertos de grafittis e
de frases numa língua que ele não reconheceu.