sábado, 13 de setembro de 2008

0545) Ratinho, a isca e a ratoeira (17.12.2004)


(Brian White)

Dias atrás estive participando de um ciclo de palestras promovido pela ONG “Leia Brasil”, numa mesa onde se discutiam assuntos ligados à indústria cultural. O mais interessante dessas discussões é que geralmente toma-se algum exemplo-símbolo de uma situação qualquer. Neste caso, as pessoas começaram a citar o programa de Ratinho como exemplo do que havia de pior na indústria cultural. De dez em dez minutos, lá vinha ele no meio de uma argumentação qualquer: “O problema de país é a baixa instrução, o pouco acesso à cultura, porque se as pessoas tivessem acesso à boa literatura elas não iriam assistir o programa do Ratinho”.

Coitado do programa do Ratinho, do qual não gosto nem um pouco, mas que acaba concentrando em si bordoadas que poderiam ser mais bem distribuídas. Em primeiro lugar, eu não acho que se toda a população brasileira de repente ficasse alfabetizada e culta esse tipo de programa iria desaparecer. O programa de Ratinho (pelo que me lembro dele, das 10 ou 12 vezes que o vi até hoje) se baseia num tipo de sensacionalismo que já vem desde a imprensa escrita, desde Gutenberg. É a exploração dos crimes, das tragédias familiares, dos episódios mundo-cão, de personagens grotescos ou ridículos, tudo isto misturado com uma atitude veemente de defesa da moral e dos bons costumes, e da “proteção às camadas populares”. A própria literatura de cordel, que tanto exaltamos, tem ciclos inteiros dedicados a explorar esse filão.

A TV americana faz a mesma coisa. Não é a escolaridade-média que resolve. Programas desse tipo sempre vão existir. Eles satisfazem algum tipo de fascinação mórbida que todos nós temos na direção do que é grotesco. Proibir esses programas (como alguns mais exaltados sugerem) não iria resolver nada. O problema não são os programas ruins, é o fato de que, sendo impostos de cima para baixo, a população se acostuma com eles e passa a tê-los como uma espécie de ritual diário. E o que leva a isto é a enorme concentração de poder nas mãos de uma meia-dúzia de grupos que controlam as telecomunicações.

Ratinho é apenas a isca da ratoeira. Ele serve como o chamariz para atrair a curiosidade meio doentia do público e fazer os níveis de audiência (e o preço do minuto de publicidade naquele horário) subirem à estratosfera. Se em vez de 3 ou 4 grandes redes de TV tivéssemos 30 ou 40, talvez tivéssemos dez vezes mais Ratinhos, mas nenhum teria esse mesmo peso, e as probabilidades de que surgissem programas de boa qualidade (do nossos ponto de vista) seriam muito maiores. Quebrar o monopólio das grandes redes, regionalizar a produção, é o único caminho para melhorar a TV. Muita besteira nova ia aparecer, decerto. Mas eu preferiria correr o risco de ter dez ratinhos em cada Estado, desde que as coisas boas que certamente existem em cada Estado, e que não têm vez nas redes centralizadas no Rio e em São Paulo, pudessem também aparecer.

0544) Ser gordo e ser magro (16.12.2004)


(Laurel & Hardy, 1956)

Não sei o que é mais triste: ser gordo ou ser magro. Digo isto, a bem da verdade, com o confuso sentimento de culpa daqueles que têm braços e pernas finos, e uma ligeira protuberância no equador-ventral, devida ao consumo indiscriminado de cerveja e sanduíches. O culto ao corpo (dietas, academias, malhação incessante) acaba se tornando uma escravidão. As pessoas consomem anos inteiros de suas vidas em busca de um ideal inatingível de perfeição. Por mais que se esfalfem, por mais que martirizem suas articulações e músculos, por mais que se encham de traumas e condicionamentos para evitar comer as coisas que mais gostam, jamais terão os corpos torneados e estonteantes dos rapazes e moças que aparecem nas capas das revistas.

Olho-me no espelho, e de perfil a minha silhueta lembra a do saudoso Marlon Brando em O Poderoso Chefão. Eu decidi me conformar com o que sou, mas não permitir que nenhuma característica minha se acentue mais do que as outras. Pretendo manter este peso, este formato e esta silhueta até o apito final, aumentando ou diminuindo as doses de alimentação e exercício conforme necessário. Já tive (não tenho mais) inveja de sujeitos bonitões como Brad Pitt ou Keanu Reeves. Quero ver esses caras quando tiverem a minha idade e meu saldo médio.

Passo pelas academias e vejo aquele monte de masoquistas se auto-destruindo (ver “Precisa-se de chapeados”, 19 de setembro). Levam uma vida de privações, de torturas auto-infligidas. São como a Pequena Sereia do conto infantil, que sonha em ter pernas como as moças de verdade, e quando as adquire descobre que o preço a pagar por isto é sentir, a cada passo, as solas dos pés sendo picadas por milhares de agulhas. As academias abrem aquelas vidraças amplamente devassáveis para nos lembrar esta lição metafísica: não há beleza sem sofrimento.

A contrapartida seria, então, abrir mão da Beleza e abraçar esta outra divindade sedutora, o Prazer. Cervejas e salsichas consumidas sem culpa na poltrona, assistindo futebol, corujão e talk-show. Doces e mais doces. Queijos, iogurtes, batatas fritas, xistudos, Big Macs, nuggets de frango empanados, todos eles acompanhados por niágaras de Coca-Cola. E uma pilha de livros junto do sofá, ao alcance da mão.

O Prazer, contudo, é uma divindade tão traiçoeira quanto a Beleza. Esta quer escravizar a nossa auto-estima, mas o Prazer vai igualmente longe, escraviza nossa força de vontade, transforma cada um de nós num títere, num fantoche dos próprios instintos. Tenho algo de puritano em minha formação que me faz ver com certo desprezo as pessoas que se entregam a um prazer sem limites. Não creio em pecado e não faço uma crítica moral: mas prefiro mil vezes a disciplina masoquista dos atletas à auto-indulgência dos que se empanturram de guloseimas (concretas e abstratas), dos idólatras que veneram o bezerro-de-chocolate, e que não conseguem dizer um “não” a si próprios.

0543) O cachorro sagrado (15.12.2004)


(Imagem: William Wegman)

Ouvi uma história interessante sobre um acadêmico que se dedicou durante anos a uma pesquisa sobre as possibilidades de consumo da carne de cachorro. Levando em conta que a população dos EUA (onde ele vivia) cresce a cada ano, ele achou que seria interessante considerar a carne de cachorro como uma possível alternativa de consumo. Fez todos os tipos de exames, em busca de possíveis toxinas ou outros elementos que desaconselhassem a ingestão de carne de cachorro. Não encontrou nada. É uma carne tão saudável e tão aceitavelmente saborosa quanto a de vaca ou a de porco. Então, ele fez a pergunta: Por que os americanos não comem carne de cachorro?

Chegou à conclusão de que eles não a comem por motivos espirituais. Assim como os hindus morrem de fome mas não sacrificam uma vaca, por razões culturais e simbólicas, os norte-americanos, tão pragmáticos, agem da mesma maneira com os cachorros, por motivos igualmente culturais e simbólicos. E o pesquisador, com uma certa ironia, disse que do mesmo modo que os hindus cultuam a Vaca Sagrada, os americanos cultuam o Cachorro Sagrado.

As razões neste caso não são religiosas, são sentimentais. Americano adora cachorro. Segundo um velho princípio na publicidade americana, qualquer coisa que mostre uma criança e um cachorro atrai a atenção e a simpatia do público. O cachorro não é propriamente um animal sagrado, porque não há motivação religiosa no seu culto. Mas pode-se dizer que é, nos EUA, um animal semi-humanizado. Posso estar enganado, mas creio que nenhum outro povo refinou tanto o conceito de “animal de estimação” (“pet”) quando o americano. É como se o poderoso empuxo da ascensão social das classes altas arrastasse para cima, na direção de “ser quase humano”, até mesmo os lulus e os totós que fazem a alegria daquelas famílias.

Ninguém comeria um bife de Lassie ou um filé de Rin-Tin-Tin. São criaturas parecidas conosco, às quais atribuímos, graças a uma dramaturgia que chega quase a ter algo de liturgia, emoções e desejos semelhantes aos nossos. Nos EUA existe um imenso folclore de episódios pitorescos ou bizarros envolvendo cachorros e seus donos, dos quais o mais reiterado é o do milionário que ao morrer deixa uma fortuna para o cachorro, traduzida em criados, moradia, alimentação de primeira, etc. e tal.

O cachorro dos americanos não passa de um tamagochi orgânico (ver “Gatos e Cachorros”, 8 de abril), beneficiário dessa imensa ternura represada que têm as pessoas ricas para com alguém que lhes dá carinho e aconchego e dos quais eles não precisam temer que estejam botando olho-grande na herança. O cachorro só quer uma comidinha quente, uma festinha atrás da orelha, e nossa presença. Ele nos adora: aquele arquejo não é cansaço, é a excitação dos apaixonados. Matá-lo, temperá-lo, cozinhá-lo, e servi-lo à mesa para saciar nossa fome nos transformaria em alguém pior do que o canibal Hannibal Lecter, que por alguma razão fascina os americanos.

0542) A volta do Inspetor Clouseau (14.12.2004)



Todo mundo gosta de fazer piada com os portugueses, inclusive eu, mas vejam só o que os nossos civilizadíssimos franceses andam aprontando. Dias atrás, a polícia francesa estava fazendo um treinamento com cães farejadores, no aeroporto Charles De Gaulle. Uma certa quantidade de explosivo foi colocada no interior de uma mala escolhida aleatoriamente numa esteira de bagagens. (Não me perguntem por que eles pegaram a mala de um pobre coitado, em vez de levarem uma mala deles mesmos. Não acho que o cachorro fosse perceber a diferença.) Em todo caso, os explosivos foram colocados na mala, e alguém foi buscar o cão.

Foi aí que alguém se distraiu... e a mala, com os explosivos dentro, foi colocada de volta na esteira rolante, que a levou embora. Ao chegarem os policiais com o cão farejador, estava o canto mais limpo, ninguém tinha idéia de onde a mala tinha ido parar. Cerca de 80 a 90 aviões estavam partindo do aeroporto naquele horário, entre as 5:30 e as 7 horas, e a mala poderia ter ido para qualquer um deles. Não houve como pegá-la de volta. O máximo que os franceses conseguiram fazer foi avisar as autoridades dos EUA para revistarem todos os vôos que chegassem do Charles De Gaulle. O que deu no belo bafafá. Um avião que desceu em Los Angeles, por exemplo, foi evacuado, as bagagens de 300 passageiros foram revistadas, e o vôo só prosseguiu rumo ao Taiti com várias horas de atraso.

A polícia apressou-se a explicar que não havia perigo de explosão, uma vez que os explosivos não estavam conectados a um detonador, mas duvido que isso me deixasse muito tranqüilo se eu descobrisse aquela má-notícia dentro da minha valise. São apenas 150 gramas, ou seja, dificilmente o portador da bagagem vai sentir um peso extra e desconfiar. Provavelmente ele só vai perceber o objeto estranho quando desembarcar aqui no Rio (sim, havia vôos de Paris rumo ao Brasil naquele horário), e não vai saber do que se trata. Mais paranoicamente ainda, podemos imaginar que o desafortunado passageiro estava indo na direção de Londres, e acabou sendo preso no aeroporto de Heathrow, sem saber explicar o que diabo era aquilo que trazia entre suas meias e cuecas.

Osama Bin Laden, no seu vídeo mais recente, divulgado há mais de um mês, dizia que iria destruir os EUA usando a própria força e riqueza destes. Disse ele: “Basta um árabe aparecer em qualquer recanto do seu país dizendo que pertence à Al-Qaeda para mobilizar um aparato militar e policial, e gastar centenas de milhares de dólares.” Há muitas maneiras de destruir um inimigo poderoso, um inimigo dado a excessos, um inimigo que tem muito poder e que na hora de um aperto é obrigado, pelo simples fato de dispor desse poder, a usá-lo em sua plenitude. Se Bin Laden quiser, leva os EUA à falência nos próximos 10 anos, sem precisar disparar um tiro sequer. Basta-lhe criar alarmas falsos e ameaças fantasmas. Além de contar com as ameaças que os próprios trapalhões que o combatem irão criar para si próprios.

0541) O obscuro enigma de Drummond (12.12.2004)




(quadrijet.blogspot.com)

“O Enigma” é o último texto do livro Outros Poemas, que reúne os poemas escritos por Carlos Drummond de Andrade entre 1946 e 1947. É um dos raros poemas em prosa de Drummond, pelo menos naquela fase inicial de sua obra, dos dez primeiros livros enfeixados em Reunião

Sempre o considerei uma espécie de parábola kafkeana, de alegoria hermética. Nunca me detive sobre ele, e é um texto de Drummond que jamais vi comentado por quem quer que fosse. Relendo-o, dias atrás, ocorreu-me uma interpretação óbvia. Nada nos parece tão óbvio quanto uma coisa que não conseguimos ver durante décadas e de repente enxergamos.

O texto começa assim: “As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma obscura lhes barra o caminho.” 

A curta parábola é contada do ponto de vista das pedras (que são seres pensantes e sentintes), as quais se deparam inesperadamente com essa “forma obscura”, com essa “coisa sombria, desmesurada” que se coloca à sua frente, sem nada dizer, sem nada fazer. 

As pedras tentam em vão comparar este acontecimento a outros do passado, mas aquele objeto “em nada se assemelha às imagens trituradas pela (sua) experiência”. As pedras param, imobilizam-se diante daquilo.

Diz o narrador: “É mal de enigmas não se decifrarem a si próprios”. E a Coisa nada diz, nada faz, limita-se a colocar-se à frente das pedras, que se lastimam, achando inúteis sua “inteligência” e sua “sensibilidade”, incapazes de ajudá-las naquele impasse. 

E o impasse não se resolve: anoitece, o luar se espalha sobre a paisagem, e “...a Coisa interceptante não se resolve. Barra o caminho e medita, obscura.”

Eu tenho pra mim que esse poema é um recontar às avessas do mais famoso poema de Drummond: “No meio do caminho tinha uma pedra... Nunca esquecerei deste acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas...” 

Desta vez, o mesmo evento é relatado do ponto de vista das pedras que se deparam com essa criatura, que “travou o avanço das pedras” e que acabará fazendo o mesmo com todas as criaturas: “o enigma tende a paralisar o mundo”

O enigma é o Homem, a criatura que ao ver a pedra registra sua existência mas não chega a uma conclusão sobre ela. “No meio do caminho” é um exemplo perfeito do poema existencialista, onde se constata a apavorante realidade das coisas físicas, e o (mais-apavorante-ainda) vazio espiritual ou transcendental por trás delas.

A incapacidade do poeta para entender as pedras no primeiro poema encontra simetria na incapacidade das pedras para entendê-lo, no segundo. Ambos são enigmas um para o outro. 

Muitos anos depois do seu poema emblemático, Drummond revira pelo avesso a experiência numinosa que tivera naquele “meio do caminho” (que evoca o “nel mezzo del camin di nostra vita” de Dante) e parece nos dizer que não somos apenas alguém que não decifra um Enigma, somos um Enigma também, que outras criaturas não conseguem decifrar.