terça-feira, 9 de março de 2010

1770) O lixo da História (11.11.2008)



Falei aqui sobre o filme Sob o domínio do mal (The Manchurian Candidate) de John Frankenheimer, um thriller político de 1962 em que um oficial do exército americano, preso pelos chineses na Guerra da Coréia, sofre uma lavagem cerebral que o transforma num assassino em potencial. Depois que ele volta aos EUA, os chineses mexem os pauzinhos para que ele assassine um candidato à presidência, facilitando a subida ao poder do marido de sua mãe, um anti-Comunista ferrenho que na verdade está a serviço dos comunistas.

Revi este filme em DVD nesta semana que antecedeu as eleições presidenciais norte-americanas. Revi-o pensando, como penso com frequência, na veia de irracionalismo e brutalidade que corre ao longo de um dos povos mais racionais e cordatos que existem. Existe uma veia gótica no organismo da América, por onde corre um sangue sanguinário, um sangue de tragédias macbethianas, de poder conseguido pelo força e mantido pela opressão, mesmo no seio dos cavaleiros-andantes da democracia ocidental. Nós também, aqui em nosso país tropical e afetivo, temos os nossos cromossomos escravagistas e chacinadores. Todo povo tem. O que fascina nos americanos é a linguagem única que eles usam para sarjar em público seus abscessos e expulsar os demônios que os atormentam, como John Frankenheimer faz neste filme.

Em seu livro The Dustbin of History, Greil Marcus comenta longamente o filme de Frankenheimer, lançado um ano antes de Kennedy ser assassinado em Dallas. Marcus comenta outros assassinatos políticos (ou tentativas mal-sucedidas) que ocorreram depois: Medgar Evers, Malcolm X, Martin Luther King, Bob Kennedy, Andy Warhol, George Wallace, Gerald Ford, George Moscone, Harvey Milk, John Lennon, Ronald Reagan. Todos foram vítimas, fatais ou não, de pesadelos indiretamente semelhantes ao pesadelo (ilógico, incoerente, exagerado) da conspiração de The Manchurian Candidate. Diz Marcus: “O filme pode fazer parte destes acontecimentos incompreensíveis, ou deste evento inexplicavelmente mas totalmente inteiro, completo, singular, desta corrente subterrânea em nossa vida pública: a transformação do que era tido como uma vida pública aberta e visível em crimes privados ou conspirações ocultas”.

As “forças ocultas” que Jânio Quadros denunciou renunciando, em 1961, geraram este filme-pesadelo, geraram a série de crimes políticos citados por Greil Marcus, e transformaram a segunda metade do século 20 num vitrine cheia de luzes e de música berrante, encobrindo manobras escusas, “tenebrosas transações”, tramas secretas em que vultos sem nome e sem rosto traçam o destino das nações e eliminam, da maneira mais tosca, mais descuidada e mais impune, quem se atravessar na sua frente. A Guerra Fria real não é travada entre o Ocidente e o Oriente, e sim entre Os Que Mandam Na Sombra e nós, que vivemos na luz, que tudo enxergamos e pouco compreendemos. Boa sorte, Barack Obama.

1769) O Candidato da Mandchúria (9.11.2008)



O título brasileiro deste filme é Sob o domínio do mal, um desses títulos banais que a gente ou esquece ou confunde com o Sob o domínio do medo atribuído a Straw Dogs de Sam Peckinpah No presente caso, é um thriller político feito em 1962 por John Frankenheimer e refilmado há poucos anos com Denzel Washington no papel principal. Não vi a refilmagem; é do notável filme de 1962 que falarei aqui. Durante a Guerra de Coréia, soldados americanos são presos e submetidos a lavagem cerebral que os transforma em futuros assassinos robotizados. O objetivo é, no momento certo, assassinar um candidato à presidência dos EUA e substituí-lo por um pseudo-direitista que tem a função de abrir caminho para um complô russo-chinês.

O filme não é uma análise política, é um exercício em paranóia. Laurence Harvey é o militar em quem basta um jogo de paciência no baralho para desencadear o condicionamento hipnótico. Os crimes que comete são encenados de forma seca e brilhante por Frankenheimer. A crítica fala na influência de Orson Welles na estética do filme: o uso da profundidade de campo, dos ângulos invulgares de câmera, da iluminação em claro-escuro. Há também uma porção de elementos hitchcockianos. A cena em que Harvey entra à noite no quarto de dormir do patrão, para matá-lo, parece tirada diretamente de Pacto Sinistro. O atentado programado para quando o candidato disser uma frase específica do discurso lembra o famoso momento dos címbalos em O homem que sabia demais, para não falar na presença do caveiroso Reggie Nalder no elenco de ambos os filmes, e da “psicosiana” Janet Leigh.

Pacto Sinistro também está presente na semelhança entre o personagem de Harvey e o de Farley Granger nesse filme, um homem que se vê impelido a cometer um crime contra a própria vontade. Frankenheimer, que nunca foi um diretor de grandes ousadias, dedica-se aqui a compor uma narrativa visual cheia de lances espetaculares. A cena em que os cientistas chineses fazem Harvey matar dois soldados diante de uma platéia, imaginando que assiste uma reunião de um Clube de Jardinagem, é uma das mais desnorteantes que já vi no cinema, mesclando ilusão e realidade de uma maneira brilhante como linguagem, e aterrorizante como recurso dramatúrgico.

Frank Sinatra faz o oficial encarregado de vigiar Harvey e, ele também, vítima do mesmo condicionamento hipnótico. Em seu comentário do filme, Roger Ebert chama a atenção para um possível sub-enredo, em que ele também seria um criminoso e Janet Leight a sua “supervisora” – um pouco como Harrison Ford, em Blade Runner seria ele também um andróide igual aos que caçava. The Manchurian Candidate foi feito dois anos antes de Lee Oswald assassinar John Kennedy. Revê-lo agora, depois de ver Barack Obama em campanha para a presidência sob gritos de “Kill him!” nos dá o que pensar como “plus ça change, plus c’est la même chose”.

1768) O três no conto popular (8.11.2008)




(Sílvio Romero)

Lendo os contos populares ou, como chamamos aqui na Paraíba, “histórias de Trancoso”, a gente vê que existe uma fascinação pelo número três. São episódios que acontecem três vezes, são três objetos ofertados ao herói, são três tarefas que precisam ser cumpridas, são os três filhos de um velho casal, são três princesas encantadas. 

Essa fixação numérica pode ser interpretada de acordo com Freud, com Marx, com Jung, com Lévi-Strauss, com Peirce, com a Cabala, com a Numerologia, e por aí vai. 

Cada interpretação enriquece o fenômeno, nenhuma o esgota. A razão de sua longevidade é justamente esta: significar, de forma plausível, coisas diferentes para diferentes leitores.

Para este leitor aqui, existem padrões narrativos para os quais cabe uma pequenina explicação. Refiro-me àquelas situações, nesses contos, em que o herói recebe a ajuda de (ou precisa enfrentar) três criaturas sobrenaturais sucessivas. 

Pego um exemplo entre centenas, o conto “O Bicho Manjaléu”, recolhido por Sílvio Romero em Contos Populares do Brasil

O herói sai à procura de suas três irmãs, que casaram com três desconhecidos. Chega na casa da primeira e descobre que o rapaz com quem ela casou é o Rei dos Peixes. Ele é um cara muito brabo, que chega em casa procurando intrusos, ameaçando matá-los, mas depois que toma banho e faz uma refeição sossega. A esposa revela a presença do irmão, e os dois tornam-se amigos. O herói procura então a segunda irmã, que casou com o Rei dos Carneiros, e depois a terceira, que casou com o Rei dos Pombos. Os três episódios são rigorosamente iguais.

Estes episódios, que fogem à vivência cotidiana do herói, ensinam-lhe uma maneira de se relacionar com o sobrenatural, e se repetem para que seus elementos sejam reconhecidos com segurança. Correspondem a três fases: 1) informação, 2) revelação, e 3) confirmação. 

No primeiro encontro, acontecem situações inesperadas em que o herói é forçado a improvisar procedimentos para se relacionar com o sobrenatural. Tudo aquilo é informação nova, algo que fugia a sua experiência prévia, e ele tem o direito de recear que, num segundo encontro, tudo recomece também do zero e as lições deste primeiro episódio não lhe sirvam para nada.

No segundo encontro, ocorre a Revelação. Certos elementos do primeiro encontro se repetem, e só então ele tem a idéia de quais são as regularidades, as “constantes” do fenômeno sobrenatural. Ele age de acordo com essa revelação, e desta vez seu procedimento não é totalmente improvisado ou intuitivo, é produto de uma reflexão e de um conhecimento.

O terceiro encontro serve apenas como Confirmação do que fora improvisado no primeiro e posto conscientemente em prática no segundo. O terceiro é quase pró-forma, quase supérfluo, está ali apenas para que não restem dúvidas. Ele “rubrica e carimba” a ação do herói, certificando-o de que sua maneira de lidar com o sobrenatural estava correta, e de que ele agora é o senhor da situação.






1767) O Presidente Negro (7.11.2008)



São 3:20 da madrugada de terça para quarta-feira (horário de verão no Rio), e acabei de ver o discurso de Barack Obama em Chicago, como presidente eleito dos Estados Unidos. Às 2 horas, a CNN já tinha proclamado o resultado, baseando-se nas projeções das pesquisas. Às 2:20 o senador republicano McCain subiu ao palanque para reconhecer publicamente a derrota, num discurso calmo, comedido e emocionado. A vitória de Obama parece ter sido aplastante (ainda não saíram os números definitivos, mas a esta altura vocês já devem saber). Senti nesta noite a emoção de ver a História acontecer diante dos meus olhos, como a senti quando o homem chegou à Lua, quando caiu o Muro de Berlim, quando um operário nordestino foi eleito presidente do Brasil.

É engraçado um sujeito tão desiludido com a política brasileira ainda marejar os olhos quando vê coisas aparentemente boas acontecerem em países distantes. Acho que a política dos EUA me emociona porque é colorida e distante como um filme, e é fácil emocionar-se com um simples filme, com uma coisa que não alcança nossa vida real. É como um jogo de futebol, cujo resultado não muda rigorosamente nada no mundo, e que por isso mesmo permite que nos entreguemos sem prudência à euforia e ao desespero. O Brasil não emociona porque sabemos como é o jogo, sabemos o quanto as cartas estão marcadas, conhecemos aqueles personagens e não conseguimos ver neles um super-herói. Mais fácil enxergá-lo em alguém que noutro país, no Olimpo dos Super-Heróis, e que no frigir dos ovos não tem carne nem osso, é apenas uma imagem eletrônica como tantas outras.

Por outro lado, a vitória de Obama me emociona porque, como todo escritor de ficção científica, eu tenho a deformação profissional de achar que o mundo é mais importante do que o meu país. Comparada a uma eleição presidencial norte-americana, que muda o perfil do mundo, a eleição de um presidente brasileiro é uma mera substituição de barnabés obscuros. Os EUA, queiramos ou não, gostemos ou não, detêm Poder. São os “senhores do baraço e do cutelo” cantados pelos poetas antigos. Nunca pensei que viveria para ver um presidente negro ser eleito dessa forma, com uma campanha limpa e equilibrada, num momento em que o país se afunda num pântano moral e definha numa hemorragia econômica.

Obama será um salvador da pátria? Duvido. Não existem salvadores. Existem funcionários escolhidos pelo povo para resolver seus problemas. O funcionário cujo mandato (ilegalmente conquistado através de fraude nas urnas) se encerra em janeiro próximo não passou de um mamulengo daquilo que existe de pior em seu país, e ajudou a precipitá-lo em guerras inúteis, mal-intencionadas e cruéis. A eleição de Obama pode reconquistar um pouco de respeito pelos EUA no resto do mundo, dependendo, é claro, das políticas que adotar, das decisões que tomar. A História está em movimento, e é emocionante ver quando a História, este paquiderme reumático, dá um passo à frente.

1766) O mundo infra-real (6.11.2008)



(José J. Veiga)

Falei aqui nesta coluna sobre uma recordação de infância do poeta Gerardo Mello Mourão, de quando seu irmão de oito anos, antes de morrer, saiu pela casa se despedindo de todos os objetos: o pote, o caneco, a poltrona... Diz Mourão que existia, naquelas pessoas simples do interior, um apego afetivo às coisas. Não o apego materialista de quem se cerca de objetos caros, para ostentação, mas o apego sentimental que a gente desenvolve por coisas simples, que de tanto nos fazerem companhia parecem estar se humanizando, estar fazendo parte de nós mesmos.

Na mesma revista (Azougue 10 Anos, Rio, 2004), há outra entrevista com o escritor goiano José J. Veiga, autor de belos livros de contos regionais (Os Cavalinhos de Platiplanto) e curiosos romances fantásticos (A Hora dos Ruminantes). Veiga, da mesma geração de Gerardo, e também interiorano, ecoa, sem saber, o depoimento do colega, dizendo:

“Os objetos que você usa em casa, que fazem parte de sua vida como se fossem da família, suscitam um apego enorme. Quando acabam, quebram ou ficam inutilizados, me dá uma certa tristeza... Puxa, aquele aparelho de barba, tão bom, que eu tinha, caiu, entortou, não entra mais a lâmina... Que pena. Posso comprar outro, mas não é o mesmo. Tenho apego às coisas que me servem, das quais eu me sirvo”.

Esse amor aos objetos banais é, para mim, sintoma de um humanismo transbordante, de uma vontade de afeto, vontade de humanizar e de carregar de sentimento mesmo as coisas mais corriqueiras. Como dizia Drummond: “amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas”. No caso, distribuído pelas coisas ínfimas, pelos objetos caseiros, por pedaços de matéria a que ninguém lança um segundo olhar, e que, para esses humanistas incorrigíveis, alçam-se quase à condição de um animal doméstico a quem é preciso conceder uma atenção, um acarinhamento.

O que me lembra o “tamagochi”, os bichinhos eletrônicos que eram moda entre as crianças alguns anos atrás. Era uma espécie de videogame do tamanho de um celular, com um bichinho virtual que era preciso alimentar, cuidar, dar carinho... Se o tamagochi fosse esquecido, “morria”. E já vi histórias de crianças que por descuido perdiam seu tamagochi e desfaziam-se em lágrimas. Lágrimas que eu achava idiotas: “Em vez de criar um cachorro ou um hamster, esses cyberboys ficam levando a sério um mero agregado de bytes made-in-Taiwan, como se fosse um bicho de verdade!”

Mal sabia eu que é melhor ter afeto por um tamagochi ou um aparelho de barba do que não tê-lo por um peixe de aquário ou um passarinho de gaiola, como muitos por aí. O grande perigo para esses garotos viciados em games é a diluição da afetividade, a desvalorização da experiência única que é a vida: porque no jogo você tem sete vidas ou mais, aí morre, recomeça, nem liga. O game torna o mundo daqui menos real. Viva o tamagochi, viva tudo que nos leve a transbordar nossa afetividade até pelas coisas que não existem.

1765) Machado: “Idéias de Canário” (5.11.2008)


 

 
(Machado, por Stegun)

Este sempre foi um dos meus contos preferidos de Machado (em “Páginas Recolhidas”, 1899). Curtinho, semi-fantástico, filosófico, bem-humorado, é um apólogo com múltiplas leituras, que nunca se esgotam. 

O narrador é Macedo, mais um dos gênios incompreendidos machadianos, um sujeito voltado para a investigação de assuntos abstrusos a fim de comunicar suas descobertas ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico ou a universidades alemãs. 

Ocorre-lhe entrar um dia numa loja de belchior, atulhada de objetos imprestáveis, e descobrir ali uma gaiola onde saltita um canário falante. A uma pergunta sua, o canário diz não saber o que é o céu, ou o sol, e assim define o seu mundo: 

“O mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira”.

Macedo se deslumbra, compra a ave e a leva para casa, onde lhe destina uma paisagem mais arejada, e gaiola mais hospitaleira. Passa a tomar notas copiosas: 

“Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabetizar a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas idéias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc.”

A certa altura da pesquisa, Macedo volta a indagar do canário sua definição do mundo, para passá-la a limpo, e se surpreende. 

“O mundo,” responde-lhe o pássaro, “é um jardim assaz largo com um repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira”.

Macedo adoece, e ao melhorar fica sabendo que o canário fugiu durante a limpeza da gaiola. Deixa-se abater pelo desespero, procura em vão, nenhum sinal da ave. Passa-se algum tempo. Um dia, visitando a chácara de um amigo, ouve o canário cumprimentando-o do galho de uma árvore. Implora-lhe que volte; não estará com saudade do jardim, do repuxo?... O canário afirma nunca ter visto semelhante paisagem, e, indagado sobre o que é o mundo, responde com firmeza: 

“O mundo é um espaço infinito e azul, com o sol por cima”.

É uma recriação da parábola dos três brâmanes cegos, que apalpam um elefante e o descrevem pelas partes que lhes tocam. Do canário de Machado pode-se dizer que evolui, mesmo que sua visão-do-mundo seja fenomenológica, capaz de conceber apenas o que percebe a cada momento. É uma pequena sátira intelectual, com ironia, mas uma ironia simpática, pois o próprio Macedo não sabe se seu mundo é mais ou menos veraz que o do canário.