sexta-feira, 25 de junho de 2010
2195) Idéia para um conto (21.3.2010)
Tenho uma idéia ótima para um conto. Começa descrevendo uma rua de uma grande cidade, falando em traços rápidos sobre as vitrines das lojas, os ônibus que passam, a multidão indo e vindo... Logo focaliza um sujeito de terno cinza parado no meio-fio, como se estivesse esperando o sinal abrir para atravessar a rua. Em toda essa descrição deve haver algumas lacunas obrigatórias (não dizer a cidade, nem sequer o país, nenhum traço identificável) e alguns adjetivos meio deslocados para dar idéia de estranheza (“ele usa um terno de um cinza implacável...”).
Só tenho isso por enquanto – e o personagem. Ou seja, a identidade dele, o que vai fazer nos parágrafos finais e devastadores. Mas como a revelação só virá no final, preciso preencher o espaço intermediário com uma trama qualquer. Houve uma época em que imaginei uma história de espionagem. Ele é um Agente Duplo. Vive naquela cidade sob uma identidade falsa, mas o faz há tanto tempo que essa identidade assumida se sobrepôs à verdadeira. É um agente de baixo escalão, numa cidade sem importância estratégica, e há anos não é contatado para executar nenhuma missão. Ele agora acredita ser quem finge que é, está satisfeito com essa vidinha, será capaz de qualquer violência para mantê-la, até mesmo de matar outro Agente Duplo enviado para eliminá-lo, assim que descobrir uma maneira de poder fazê-lo e continuar vivo.
Depois imaginei que esse cara não seria ninguém. O verdadeiro protagonista é, ou melhor são, um homem e uma mulher que o observam com binóculos, do quinto andar de um prédio próximo. São viajantes no Tempo que vêm do futuro. Daí a poucos minutos uma adolescente (a filha deles) irá atravessar aquela rua correndo; e vai escorregar, cair, e ser atropelada. O casal veio do futuro para impedir, mas os campos de força probabilísticos impedem que eles ajam diretamente sobre fatos que os emocionam. Não podem se aproximar, porque causariam uma turbulência emocional muito forte. O máximo que podem fazer é trazer consigo uma terceira pessoa, o homem de cinza, com instruções para aproximar-se da garota e não permitir que ela atravesse a rua. A hora está chegando, e os binóculos vacilam em suas mãos quando vêem a filha andando apressada (está atrasada para a aula de dança).
Essa idéia vingou durante alguns anos, mas já li tantas histórias assim que a descartei. Poderia ser algo mais best-seller. O homem de cinza é um mero advogado de causas cíveis. O casal luta por uma herança milionária. Só que o advogado (que em tese os defende) está sendo subornado pelos adversários no processo. Instalaram-se ali para fotografar com teleobjetiva o encontro dos dois, que descobriram ter sido marcado para uma lanchonete próxima. Acho que isto é mais realista. De qualquer maneira, acho esta idéia espetacular: um homem de terno parado numa calçada! Só não escrevi ainda o conto porque uma idéia tão boa vai acabar sendo plagiada por alguém.
2194) Poe e o efeito (20.3.2010)
Estou preparando uma antologia sobre os contos obscuros de Edgar Allan Poe (1809-1849), um dos escritores que mais influenciaram a literatura de hoje. Basta pensar que três dos gêneros mais populares do mercado em 2010 têm Poe como precursor: o romance policial, a ficção científica e a história de terror.
Pela complexidade de sua obra, e pelo modo como nela estão presentes elementos culturais que só hoje começam a se disseminar pelas sociedades tecnológicas, podemos dizer que Poe, nascido há 201 anos, foi o primeiro escritor a praticar a literatura do século 21.
Há um outro aspecto em que a influência de Poe foi extremamente positiva em sua época, mas tornou-se tão forte, e tão adequada ao Espírito do Tempo, que hoje passa a ser uma distorção e uma ameaça.
Ocorre isto com o espírito de racionalidade e deliberação que Poe imprimiu à poesia e ao conto, onde tudo, aos seus olhos, devia ser organizado não em função de uma suposta “mensagem” ideológica (este seria o objetivo do Ensaio) ou da criação da Beleza (este seria o objetivo da poesia).
No conto, dizia Poe, tudo deve ter em mente o efeito a ser produzido no leitor. Isso foi uma verdadeira puxada de tapete numa época em que se pressupunha que o objetivo da literatura era exprimir o que se passa na mente do autor, e que cabia ao leitor o esforço de entender.
O centro era o Autor. Poe deslocou esse centro: o centro é o Leitor, a mente do Leitor, e cabe ao autor organizar os seus recursos (enredo, personagens, efeitos estilísticos, etc.) para produzir no Leitor um efeito previamente escolhido.
Ora, isso que Poe propõe é exatamente o que faz, em escala maciça e massacrante, a indústria cultura de hoje, o cinema, a TV, a literatura popular em geral. Pesquisas de mercado passam o pente fino no gosto do público, listam os elementos mais preferidos e menos preferidos, organizam esses elementos de forma a criar um produto “customizado”, talhado na medida exata para atender a expectativa do freguês.
Dizem os americanos que qualquer filme que tenha crianças, cachorros e esporte é sucesso garantido.
Este excesso de deliberação e planejamento chega quase a um cinismo. A indústria cultural não trabalha com o conceito de Autor, de um indivíduo que centraliza a criação e a utiliza para exprimir sua própria visão do mundo, suas emoções, o que lhe vai pela alma.
A própria literatura está se aproximando dessa visão mercadológica em que o escritor primeiro pesquisa “o que o público está gostando” e só depois escolhe o assunto do seu livro e se senta para escrever. Claro que a literatura de autor, o cinema de autor e até mesmo a televisão de autor ainda existem. Isso não se extingue por decreto nem por ibope.
Mas a literatura, influenciada pela mudança de enfoque sugerida por Poe há quase dois séculos, tende cada vez mais a ser um produto pesquisado, planejado, cuidadosamente produzido para produzir os efeitos X ou Y no onipresente e impotente Leitor.
2193) A capa sobre a lama (19.3.2010)
(A Hard Day's Night)
No final do século 16 Sir Walter Raleigh era um dos nobres da Corte presentes num evento social em que a Rainha Elizabeth I, ao caminhar, deteve-se, hesitante, diante de uma poça de lama.
Todo mundo ficou pensando em alguma coisa para fazer, mas Raleigh adiantou-se e fez: arrancou sua capa de veludo, que custava uma nota preta, e a estendeu sobre a lama para que a Rainha não sujasse os sapatinhos e a barra do vestido.
Qual a Rainha que não se apaixona, diante de uma galanteria como esta? Sir Walter caiu nas graças de Elizabeth, e o resto, como se diz, é História.
Ou Estória, porque este episódio (segundo os historiadores) nunca ocorreu. Seu maior popularizador foi o romance histórico Kenilworth de Walter Scott (1821), em que o caso todo é recontado com certo charme.
Gestos assim se fixam no inconsciente coletivo de um povo, porque em 1899, em seu livro The Wind Among the Reeds, William Butler Yeats publicou um pequenino poema, hoje um dos mais famosos de sua obra, intitulado “He Wishes For the Clothes of Heaven”, que diz:
Se eu fosse dono dos panos bordados do Céu
tecidos com luz de ouro e de prata
os panos azuis e escuros e negros da noite
e da luz e da meia-luz do crepúsculo
eu estenderia esses panos aos teus pés;
mas, já que sou pobre, tenho apenas os meus sonhos
e os estendi aos teus pés;
pisa devagar, porque estás pisando sobre os meus sonhos.
Além da historicidade do gesto (familiar a qualquer britânico, pela tradição), o poema encanta pela beleza das imagens e pelo paradoxo de alguém não ter nada precioso para oferecer a sua dama, mas este mesmo fato torna preciosa a única coisa que ele tem: os seus sonhos.
Tudo que mergulha e se deposita no inconsciente coletivo pode ser trazido à tona pelo humor, que é uma perfuratriz capaz de atingir qualquer Pré-Sal em dois segundos. Em 1964, Richard Lester dirigiu o primeiro filme sobre os Beatles A Hard Day’s Night. Uma das sequências mostra Ringo Starr saindo dos estúdios, onde os amigos esperam a hora do ensaio, e indo passear sem destino por Londres.
A certa altura, ele está atravessando algo que parece um canteiro de obras (não tenho o filme à mão agora, estou citando de memória). Aparece uma dama elegante que hesita diante de uma poça de água e lama. Ringo cobre a poça com sua capa, a dama passa e sorri. Mais adiante, outra poça. Ringo repete o gesto, ela fica ainda mais feliz. Mais à frente, uma terceira poça. Ringo coloca a capa mais uma vez, a dama pisa... e afunda até desaparecer, pois era um buraco enorme.
John Lennon, na letra de “I’m so Tired”, referiu-se a Raleigh:
Embora eu esteja tão cansado
vou acender outro cigarro
e maldito seja Sir Walter Raleigh
aquele bastardo tão estúpido.
É uma referência a outra lenda: que um criado de Raleigh teria despejado um balde dágua sobre o patrão quando o viu fumando, por não saber o que era aquilo. Raleigh foi um dos responsáveis pela introdução do tabaco na Europa.
2192) Mais pérolas do vestibular (18.3.2010)
A realização recente de alguns vestibulares trouxe novamente à baila a questão do despreparo dos nossos estudantes, principalmente quando se trata de responder perguntas por extenso, usando suas próprias palavras.
Ninguém mais discute que o nefando método quantitativo (o método do xizinho, ou da múltipla escolha) destruiu o sistema neuronial de várias gerações sucessivas. Os jovens não são mais capazes de dizer o que pensam, se é que pensam. Não têm mais opiniões e nunca aprenderam a tê-las, porque sempre foram estimulados a responder com qual opinião alheia, num conjunto de cinco, eles concordam.
São nossos frankensteins. Mangamos deles, e deve existir alguma entidade metafísica mangando mais ainda de nós. Eis algumas das pérolas mais recentes.
HISTÓRIA GERAL:
“O Egito era especializado em obras faraônicas que continuam de pé a milhões de anos”.
“A Guerra da Sucessão nos Estados Unidos colocou em pontos contrários os escravagistas e os tabagistas”.
“Durante a Revolução Francesa foram guilhotinados inúmeros reis e rainhas e inclusive gente do povo mesmo”.
“O Rei Luís XIV criou o Museu do Louvre para abrigar os tesouros do Iluminismo”.
ECOLOGIA:
“A floresta amazônia está no meio dos ambientes ameaçados pelo gás estufa”.
“Devido ao esquecimento global, nossas forestas estão em petição de miséria”.
“O governo federal faz somente promugar novas leis de desmatamento mas a serração continua”.
“Desde a morte de Chico Mendes a floresta amazônica nunca mais foi a mesma”.
MATEMÁTICA:
“Números primos são números ímpares que não se deixam dividir”.
“Raiz quadrada é o processo para adivinhar qual foi o número que elevado ao quadrado deu aquele”.
“A Álgebra surgiu para satisfazer uma necessidade da mente humana de resolver problemas complexos usando letras simples”.
PORTUGUÊS:
“Oração principal é aquela mais importante nos momentos de maior necessidade, como por exemplo o Pai Nosso”.
“O português teve origem no Latim vulgar, que era a língua falado pelos centuriões romanos enviados para Portugal”.
“A Reforma Ortográfica veio promover a opressão das consoantes mudas e dos assentos diferenciados”.
LITERATURA BRASILEIRA:
“Durante o apogeu do Modernismo, virou moda fazer versos sem rimar, a menos que o poeta quisesse”.
“João Cabral de Melo Neto ficou mundialmente famoso pelo seu poema da Pedra no Caminho”.
“O Romantismo e o Realismo são as duas escolas mais importantes da literatura, com a diferença que cada uma não acha a outra importante”.
Achou graça, amigo? Eu também achei. Recebo pela Internet tantas besteiras atribuídas aos nossos vestibulandos! Boa parte delas deve ser produto não da ignorância dos coitados, mas da galhofa de redatores de humor desocupados, como o locutor que vos fala. Inventar estas frases me divertiu enormemente, e vou me divertir mais ainda quando as reencontrar daqui a alguns anos, atribuídas aos pobres coitados que herdarão o que restar do nosso país.
2191) Guerra ao Terror (17.3.2010)
Vendo este filme de Kathryn Bigelow, não foi difícil entender porque ganhou mais Oscars do que Avatar de James Cameron. Em primeiro lugar tratava-se, como a imprensa espremeu até a última gota de assunto, de uma disputa pessoal entre ex-esposa e ex-marido. Atrevo-me a dizer que todas as mulheres da Academia de Hollywood votaram no filme da ex-esposa, e os homens devem ter se dividido entre ele e os outros nove candidatos. Barbada. Há outro aspecto: era o filme de 11 milhões de dólares (o dela) contra o de 500 milhões (o dele). Por fim, o filme de Cameron é uma fantasia de animação (para mim metade do filme é tão animação quanto Fantasia de Walt Disney) e o de Bigelow é, surpreendentemente para uma mulher, um filme áspero e realista, um elogio àquilo que os EUA tanto prezam: sujeito durões fazendo um trabalho duro sem se deixar abater. Inclusive por escrúpulos morais.
É um excelente filme de ação, com narrativa seca, câmara na mão e montagem de cortes bruscos transmitindo uma sensação quase física de perigo, incerteza e envolvimento com uma ação em que tudo está o tempo todo por um fio e ninguém sabe exatamente o que está acontecendo. Para mim o grande diferencial deste filme em relação à maioria dos filmes sobre Vietnam, Guerra do Golfo e Iraque é que o tema do filme é a arte e a ciência de desarmar bombas. Isso faz dele menos um filme de carnagem (embora a carnagem aconteça) do que um filme de tensão e suspense, muito bem explorados pelo uso consciente de câmara, som (durante bem um terço do filme escutamos a respiração dos personagens), montagem. E interpretação, porque os atores, todos desconhecidos para mim, se saem muito bem.
Há um longo tiroteio no deserto em que a noção de tempo é bem explorada, dando-nos a sensação de estar acompanhando uma escaramuça em tempo real. Escaramuças desse tipo têm momentos alternados de tiroteio frenético e longas pausas em que cada um fica espreitando as intenções do outro. Aqui e acolá, tiros esparsos, muito bem alvejados, com direção. Um grande erro em filmes de guerra é tentar estabelecer um ritmo “emocional”: mostrar cenas de morte alternadas com cenas de bebedeira eufórica ou de saudades da família. Guerra ao Terror, mesmo pagando tributo a esses clichês, os empurra para segundo plano, e passa passar a impressão de um trabalho cotidiano em que a morte pode vir daí a um segundo, sem ser precedida por fanfarras, trombetas ou “Cavalgada das Valquírias” (que só funcionou bem quando Coppola fez pela primeira vez; de lá para cá virou um clichê insuportável).
Uma das últimas cenas mostra o desarmador de bombas defrontando-se, numa praça evacuada às pressas, com um iraquiano que grita e chora dizendo que não quer morrer. O técnico abre o paletó do sujeito e se depara com uma estrovenga cheia de cadeados, fivelas, detonadores, “timers”, e vê que não vai conseguir. Excelente metáfora. O Iraque vai morrer lutando, e os EUA não vão conseguir evitar.
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