Eu discuto política, religião, futebol... discuto
qualquer coisa. O que eu não discuto são os gestos totalizadores da vontade. Eu
não discuto o que é questão de fé pessoal.
Um gesto totalizador da vontade é quando decidimos
professar uma crença absoluta, um amor absoluto, uma obediência absoluta ao que
quer que seja. É um gesto “totalizador” por causa desse caráter pessoal, “de
foro íntimo”, incondicional, que nos faz crer numa religião, numa doutrina
política. E que, num plano mais restrito, nos faz amar uma pessoa. Ou, num
plano mais superficial, torcer por um time de futebol, ser fã de um artista...
Por que não discuto? Porque discutir significa tentar ver
algo pelo lado de fora, e quando uma pessoa executa esse gesto (crer num Deus,
ter uma ideologia, etc.) é como se não existisse mais a possibilidade de um “lá
fora”. Aquela crença permeia tudo, impregna tudo. Ela explica e justifica, ou
explica e condena, cada gota dágua, cada grão de areia.
Não discuto porque discutir significa tentar decompor
essa crença em seus elementos: os argumentos que a justificam, as provas (mesmo provas meramente verbais, meramente retóricas) que a confirmam. Para
quem tem fé absoluta em alguma coisa, essa fé é indivisível como um número
primo. Não é composta de fatores que podem ser isolados, e depois analisados
separadamente. Não há fatores. Não há argumentos. É algo totalizante.
Há uma famosa frase da tradição religiosa, “credo quia absurdum”, que vem sendo
discutida há séculos pelos exegetas. Não entrarei aqui nos labirintos latinos e
teológicos, mas comentarei a frase como ela é, hoje, percebida em português,
pelas pessoas de hoje.
Por muito tempo imaginei que essa frase, uma
justificativa frequente da fé religiosa, queria dizer algo como “Eu acredito nisso, mesmo que isso pareça
absurdo.” O que do meu ponto de vista, aos quinze ou vinte anos, fazia
sentido. Eu também acreditava em coisas que pareciam absurdas aos adultos da
época. Não me era difícil ficar alternadamente tanto na posição dos que creem
quanto na posição dos que ficam atônitos.
Depois, fui direto às fontes e me explicaram que não é
bem assim. É o contrário: “Eu acredito
nisso, justamente porque é absurdo”. É por ser absurdo que eu creio. Se
fosse uma coisa lógica, eu não precisaria acreditar: bastaria prová-la com dois
ou três silogismos.
E é engraçado, porque esse argumento aparentemente
contraditório me pareceu mais forte do que o anterior. Porque ele se refere a
outro tipo de crença. É a crença dos iluminados, dos que um dia são fulminados
por um raio de compreensão e esse raio não se extingue dentro deles.
Há os que são convertidos a uma causa pela razão, pela
lógica, pelos argumentos, pela força da persuasão alheia. E há os que vêm
cavalgando pela Estrada de Damasco e são fulminados pelo relâmpago da Fé.
(“A Conversão de
São Paulo”, Nicolas-Bernard Lepicie, 1767)
Como explicar isso? Não sei, só sei que é assim. E é
porque é assim (dizem os crentes) que eu creio. Ninguém precisou me convencer.
Ninguém me fez escalar degrau por degrau, lição por lição, apostila por
apostila, até um dia chegar no alto da montanha. Eu vinha andando na rua, de
repente houve um clarão e eu estava no alto da montanha, “e a Verdade se
desvelou para sempre diante dos meus olhos”.
Vai se discutir o quê com uma pessoa como essa?
A fé filosófica ou religiosa não se distingue muito,
nesse aspecto, de outras revelações que podemos comprovar de forma
experimental, em laboratório. As descobertas científicas brotam às vezes do
Inconsciente (olha aí, já é uma tentativa de decompor o relâmpago).
Alguns exemplos são clássicos. O cientista passa meses ou
anos pesquisando uma coisa, sem resultado, e um belo dia está fumando charuto
numa poltrona ou subindo no ônibus, e zapt!
– a resposta brota prontinha em sua mente, armada da cabeça aos pés como a
deusa Palas-Atena.
Em casos assim, é possível mostrar que houve uma
pré-elaboração dessa idéia, ela não “caiu do céu”. Não é maluquice presumir que
as faculdades analíticas da mente possam ficar “rodando” como aplicativos, fora
da consciência, enquanto o cientista almoça, bota os filhos pra dormir, dá
aula, joga xadrez com os colegas, troca afagos com a consorte.
O programa está rodando, caladinho, à sorrelfa, está
checando caminhos, experimentando outras variáveis. Um belo dia, zapt! – aparece uma resposta, o
cientista tem um sobressalto, e voilà!...
Um livro muito útil a respeito desse processos é The Psychology of Invention in the
Mathematical Field (1943), de Jacques Hadamard.
Voltando à fé religiosa: talvez não seja despropositado
imaginar que esse é um domínio onde iluminações desse tipo possam acontecer com
maior frequência, até porque não precisam ser demonstradas mediante cálculos
matemáticos ou experiências de laboratório, como ocorreu com as iluminações de
Isaac Newton, Einstein, Descartes, Poincaré, Kékulé e tantos outros.
Os raios da fé religiosa dificilmente desabam no senador da república ou na verdureira da quitanda, que têm outras preocupações. Desabam
em mentes já envolvidas com questões religiosas ou existenciais mal resolvidas,
desabam em pessoas que passam noites em claro, com o juízo bouleversado,
tentando fazer sentido das experiências de sua vida. Essas pessoas são
pára-raios prontinhos para atrair o relâmpago da fé. (Que, sempre é bom
lembrar, não cai do céu – cristaliza-se no inconsciente, e com tal força que
emerge, de baixo para cima.)
Quando o crente diz “acredito
justamente pelo fato de ser algo absurdo, inacreditável”, está dizendo, por
um lado, que o que pudesse haver de análise, exame, avaliação, já foi feito
pelos aplicativos do seu Inconsciente, nos quais ele instintivamente confia.
Por outro lado, está dizendo que essa crença não é o
resultado de uma operação lógica, mas um gesto da Vontade. Acredito porque
decidi acreditar. Acredito porque tudo que me mobiliza intelectualmente e
emocionalmente me disse que acreditasse “sem discutir”.
Não é muito diferente de muitos exemplos do “amor
romântico”, essa outra divindade onisciente, onipotente e onipresente em nossa
cultura. Claro que a maioria dos apaixonados encontra laudas e laudas
laudatórias para se justificar: ela é linda, é inteligente, é carinhosa, tem
caráter, tem bom coração, tem rosto formoso, corpo bacana, é de boa família, se
veste bem, gosta dos Beatles, torce pelo meu time... Argumentos nunca faltam, e
mesmo que faltassem à donzela todas essas qualidades aí, o romeu acharia
outras, igualmente importantes.
A raiz do fenômeno pode ser investigada melhor naqueles
casos “quia absurdum”, em que o desafortunado
se rói de paixão e ele mesmo comenta: “não sei que diabo está acontecendo
comigo, isso não pode dar certo nunca.” Ou (como cantavam os Beatles), “I don’t like you but I love you; I don’t
want you, but I need you” (“You’ve Really Got a Hold On Me”, de Smokey
Robinson).
– Mas John Lennon, essa mulher
é muito feia!
– É feia mesmo que eu gosto.
(foto: Susan Wood)
Um crente religioso sincero passa por um processo
semelhante. Crer em Deus é uma iluminação totalizadora, que nem sempre brota da
Vontade, no sentido da intenção original (veja-se o caso de São Paulo, o típico
perseguidor que se converte à fé dos perseguidos), mas é encampada por ela no momento em que o intelecto orgulhoso abaixa a cabeça diante de uma certeza
que seus raciocínios nem sonham em abarcar.
Como discutir com alguém assim? Como tentar convencê-lo
de que o Deus dele não existe, de que o ideal político dele é falacioso ou historicamente
datado?
Notem que estou me referindo aos sinceros, e não aos
bilhões de zumbis que aceitam aquele credo como teriam aceitado outro qualquer,
desde que lhes fosse imposto nas mesmas circunstâncias da vida e por meios
semelhantes.
“Acredito porque é
absurdo”, porque diante do absurdo só existem duas reações possíveis: a
rejeição prudente ou a aceitação total.