sábado, 28 de junho de 2014

3537) Vilões do passado (28.6.2014)



Se um cara é um grande artista, estou falando de artista grande mesmo, será que somos capazes de perdoar qualquer coisa politicamente incorreta que ele tenha feito no seu passado? (Esse conceito de politicamente correto/incorreto, aliás, está se expandindo exponencialmente, o que é um perigo.)  Na lista dos escritores politicamente apedrejados sempre aparecem Ezra Pound que teve simpatias pelo fascismo, Louis-Ferdinand Céline que era antissemita, e meia meia-dúzia de espantalhos habituais, que, como Guy Fawkes, conhecem a fama e o opróbrio na mesma medida.

Por exemplo: os escritores franceses colaboracionistas, cúmplices dos nazistas que invadiram o país e o sujeitaram durante alguns anos vergonhosos.  A Resistência Francesa foi uma coisa notável, mas ao mesmo tempo fomos ensinados a não achar que era tudo assim tão simples.  Em Hiroshima meu Amor, de Alain Resnais, vemos a violência e a humilhação a que é submetida uma mocinha que fica amante de um soldado alemão. Precisava mesmo, fazer aquilo tudo com ela?

As lealdades políticas já serviram para inflar carreiras artísticas ou literárias. e no mundo da esquerda isto já foi visto muitas vezes. O Partido decidia investir em determinados artistas e sufocar outros. Em alguns casos, tudo dava com os burros nágua, os exaltados resvalavam para o Limbo, os reprimidos explodiam em girândolas de idiomas. Vitória do Mercado?  Não, porque o mercado, como sempre, apenas corria a faturar um sucesso pré-existente.

Talvez no futuro nossos bisnetos vejam a briga ideológica entre a França de De Gaulle e a França da República de Vichy como uma mera dissensão entre iguais. Iremos todos para a mesma vala comum, misturando nosso DNA ao dos sacripantas contra quem lutamos a vida inteira. Estávamos todos (considerarão nosso bisnetos, à luz dos “ismos” em voga) no mesmo barco, o Titanic. Da literatura que produzimos só virá a se salvar o que ela tiver de literário, porque politicamente nos olharão com a mesma incompreensão com que olhamos os cristãos europeus da Renascença ou os fetichistas da natureza.

Chegará um momento em que será irrelevante dizer que Jorge Amado, George Orwell e David Siqueiros eram de esquerda; deles só ficará o que era seu e de mais ninguém. Pouco importa a linha ideológica a que se julgassem pertencentes. Tudo isso retrocederá para segundo plano à medida que os séculos passarem e eles forem vistos com outros olhos. Pouco importa o que acreditaram. Quem pode dizer para quem rezava Shakespeare quando não estava escrevendo?  Do ponto de vista de quem o lê, faz diferença se Fernando Pessoa acreditava mesmo em Deus ou não?