(Primeira edição,
Ed. Melhoramentos, 1973)
Sou, nessa hora, a partir dessa hora, a foz terrível das coisas, o
ponto ou o ser para onde converge, com suas múltiplas faces, o que o homem
conhece, o que julga conhecer, o de que suspeita, o que imagina e o que nem
sequer lhe ocorre que exista.
(Avalovara, 1973, p. 135)
Neste ano está sendo comemorado o centenário de Osman
Lins (1924-1978), autor de uma obra que não se encaixa com justeza em nenhum
gênero ou corrente literária. Estou aqui terminando a leitura de Avalovara, o romance que o projetou para
o grande público e que o levou a ser traduzido em várias línguas.
É um romance complexo, com uma linguagem elevada, rebuscada,
mas belíssima, e narra, basicamente, os três casos amorosos do narrador, Abel,
com três mulheres: na Europa, durante uma viagem; no Recife, sua terra natal; e
em São Paulo, a cidade onde escolhe viver.
Um trajeto semelhante ao da biografia de Osman.
A imensa maioria das críticas sobre este livro se detêm
em alguns detalhes cruciais: uma espiral, um quadrado, um palíndromo com 5
palavras de 5 letras, uma personagem cujo nome é um mero sinal gráfico... São
alguns dos artifícios estruturais usados pelo autor.
Já existe uma boa bibliografia sobre a obra de Osman.
Um ótimo livro focado quase exclusivamente em Avalovara é o ensaio de Regina
Dalcastagnè A Garganta das Coisas (Brasília/São
Paulo: UnB/Imprensa Oficial do Estado, 2000). Uma leitura inteligente e útil,
inclusive por trazer um glossário de nomes próprios e uma cronologia interna da
narrativa (que é cheia de idas e vindas).
Uma boa biografia é a de Regina Igel, Osman Lins – Uma Biografia Literária (T.
A. Queiroz, 1988), que fornece uma boa base informativa sobre a vida do autor,
fazendo, sem exagero, paralelos entre sua vida pessoal/profissional e os seus
livros.
São dois bons pontos de partida para se começar a estudar
a obra de Osman, que é grande e variada: quatro romances, dois volumes de
contos, peças de teatro, numerosos volumes de ensaios e artigos, roteiros para
televisão. Sem falar nas várias coletâneas de artigos, acadêmicos ou não, dos
muitos pesquisadores de sua literatura.
Osman Lins usou como ponto de partida para Avalovara o palíndromo Sator Arepo Tenet Opera Rotas – uma
frase clássica que serviu de base também para o filme Tenet (Christopher Nolan, 2020), uma aventura de viagem no tempo. As
oito letras que compõem o palíndromo (S, A, T, O, R, E, P, N) sugeriram ao
autor criar oito linhas narrativas diferentes, que se entrelaçam de acordo com
o movimento de uma espiral no quadrado mágico.
Eu não devia fazer os comentários que se seguem, porque
eles acabam sendo uma espécie nova de spoiler.
São aqueles comentários prévios que assustam o leitor, “espantam a caça”, fazem
a pessoa pensar que o romance de Osman é uma espécie de problema de álgebra a
ser resolvido.
Não é nada disso! O leitor ganharia se pensasse apenas
que são oito contos entrelaçados, contos que voltam, de forma recorrente, como
se o autor quisesse contar oito histórias ao mesmo tempo, pulando de uma para
outra ao acaso. (Não é ao acaso – é
de acordo com uma regra – regra que o leitor não tem a menor necessidade de
saber, para poder fruir o livro.)
Lembrei do comentário modesto e sensato do tradutor
norte-americano Gregory Rabassa, que verteu o livro para o inglês. Em sua memória If This Be Treason: Translation and Its Dyscontents [sic] (New
York: New Directions, 2005), ele diz (trad. BT):
Aqui está um livro que merece uma segunda leitura. Na segunda vez em
que percorri o texto, percebi o que estava acontecendo, e vi com prazer que
minha tradução tinha captado muitas coisas sem que eu soubesse ao certo, da
primeira vez, o que significavam. Essa segunda leitura amplia o livro ao
revelar suas verdadeiras dimensões. É o contrário de muita literatura chamada
de pós-moderna, que ao invés de se alargar, ao ser relida, simplesmente murcha
e é levada pelo vento. (p. 117)
O comentário é bom porque reconhece que no livro de Osman
existe um planejamento arquitetônico, mas também existe força, ímpeto, energia
vital, entusiasmo fabulatório. Em algum momento do livro o autor emprega a
imagem da jaula de metal tendo no seu interior uma onça ou pantera; é essa a
dualidade do livro, de um máximo de disciplina geometrizante trazendo dentro de
si uma energia vital ansiosa para escapar – e escapando, frase por frase.
Das oito linhas narrativas (todas detalhadamente
indicadas no índice final do romance), “Roos e as Cidades” conta a paixão de
Abel, quando viaja pela Europa, pela alemã Anneliese Roos, que ele conhece em
Paris. Roos é distante, enigmática, meio desdenhosa às vezes. E é feita de
cidades: olhando-a, Abel vê nela uma reprodução da Europa, seus tesouros,
mistérios, indagações, viagens, um mundo a ser descoberto:
Roos... Nunca vimos o quarto nem o país do outro. Conhecemo-nos como
soltos no mundo. Não sei que perfume têm seus vestidos no armário; de que modo
arruma suas loções, seus cremes, que cor tem seu roupão de banho e em que
posição ficam as sandálias, quando as descalça na hora de dormir. Muito menos
sei como é o seu pai e em que trabalha. Se o sol, em Eltville, entra na janela
do seu quarto pela manhã ou à tarde; se há, na vizinhança, algum pássaro ou cão
que você ouça; se detesta o cão, se ama o pássaro. (p. 228)
Dessas incompletudes é feita a curiosidade erótica e
afetiva, e quando Abel volta a Pernambuco encontra ali Cecília, que trabalha como
assistente social num hospital do Recife. O caso entre os dois ocorre em 1962-63,
época do “Recife pegando fogo” com o governo Miguel Arraes e as Ligas
Camponesas. A princípio ela também se esquiva a Abel, mas os dois acabam
ficando juntos, quando ele por fim descobre que ela é hermafrodita.
Nesta cena, ela está na casa da família de Abel, depois de
um episódio em que os dois são espancados na rua:
Suspicaz, Cecília nos espreita, as mãos cerradas. Vendo as duas velas
acesas em frente ao oratório, pede à minha irmã: “Apague a lâmpada.” Obedeço. Procuro no guarda-roupa um vestido
nosso, antigo, leve e limpo, que lhe sirva. Ouço o grito. Um soluço? Soluço ou
grito: vejo sem querer, à luz discreta das velas, o sexo duplo e dúbio de
Cecília. Verso e reverso. Bainha e faca. (p. 263-264)
O segmento dedicado a ela tem o nome de “Cecília entre os
Leões”, e mereceu este comentário de Julio Cortázar, que leu o livro em francês
e disse em 1983, numa carta a seu amigo Eduardo Jonquières:
Me alegra que tenhas gostado tanto de Avalovara, porque mesmo
que não o recorde em detalhe, ficou-me como uma grande experiência de leitura.
Coisas como a imagem de “Cecília, rodeada de leões” perduram em minha má
memória destes tempos. Penso às vezes que as coisas mais fortes que li nos
últimos dez anos é a obra de dois
brasileiros, Clarice Lispector e Lins; quase dá vontade da gente mergulhar no
português em busca de outras coisas que por acaso existam.
(Cartas A Los Jonquières, Alfaguara, 2010, p. 546, trad. BT)
A história com Cecília termina de maneira trágica (como a
do país naquele momento) e Abel se refugia em São Paulo, onde encontra sua
terceira amada – que não tem nome, é representada apenas por um sinal gráfico,
e que chamarei aqui de ‘O’.
Esta é a personagem mais complexa, e a ela são dedicadas
quatro linhas narrativas: “História de ‘O’, Nascida e Nascida” / “ ‘O’ e Abel:
Encontros, Percursos, Revelações” / “ ‘O’ e Abel: ante o Paraíso” e “ ‘O’ e
Abel: o Paraíso”.
É uma mulher de São Paulo, e dela se diz “nascida e
nascida” porque “morreu” duas vezes: ao cair no poço do elevador aos 9 anos de
idade, e depois, adulta, numa tentativa de suicídio com revólver. São duas
mortes simbólicas mas que a transformam também numa pessoa múltipla, porque
dentro dela continuam a viver as duas já morridas.
As duas outras narrativas do livro são meio afastadas do
enredo principal. “A Espiral e o Quadrado” transcorre na Antiguidade, em 200
antes de Cristo, quando um comerciante romano de Pompéia promete a um escravo a
liberdade se ele compuser um palíndromo dentro de um “quadrado mágico” – um
frase que possa ser lida igualmente da esquerda para a direita e vice-versa, de
cima para baixo e vice-versa.
E a última narrativa é “O Relógio de Julius Heckethorn”,
também uma história de origem européia, cujo desfecho explode no Brasil. Um
músico e relojoeiro constrói um relógio de pêndulo cujo mecanismo, a cada hora,
toca um trecho de uma peça para cravo de Scarlatti ( a Sonata em Fá Menor, K
462). O mecanismo é concebido de tal maneira que cada trecho da peça musical é
tocado isoladamente, mas com o passar do tempo eles irão se conectando, se
superpondo, até que num momento futuro, e só nesse momento, a peça será
executada por inteiro – e isto coincide com o clímax do romance.
Não me preocupo com este tipo de spoiler porque, como observou Gregory Rabassa, ler este livro pela
segunda vez duplica o prazer, porque somente agora enxergamos todos aqueles
detalhes, sabemos para onde estão conduzindo, sabemos o peso e a função de cada
elemento aparentemente secundário ou banal. E isso duplica o poder revelatório
da escrita, fazendo o leitor sentir-se no papel de um leitor onisciente, capaz
de voltar no tempo e fazer com que aquelas pessoas voltem a viver, a amar, a
sofrer, a matar. A segunda leitura eleva aquele drama ao quadrado. E à espiral.