terça-feira, 18 de junho de 2024

5073) Drummond: "Poema da Purificação" (18.6.2024)




(Carlos Drummond de Andrade) 
 
 
O Brasil anda fervilhando de gente religiosa, a julgar pelos jogadores de futebol que atribuem a Deus os seus gols e suas copas, pelos empresários que mandam os empregados começarem o dia rezando pelos lucros da firma, pelos incontáveis shows de canção gospel, samba gospel, blues gospel, carnaval gospel e assim por diante. 
 
Não custava nada alguém organizar uma antologia poética de Carlos Drummond de Andrade reunindo todos os seus poemas que falam de Deus, meditam sobre Deus, usam Deus como personagem, examinam o conceito de Deus, agradecem a Deus, questionam Deus... Todos não, porque talvez se tornasse um volume proibitivamente grande. Mas fizesse uma seleção, porque são muitos poemas, e chega a nos parecer que são muitos poetas. 
 
É curiosa a relação de nossos literatos com a religião. Penso no caso de Machado de Assis, tido por muitos como nosso maior prosador, tanto quanto Drummond é tido como nosso maior poeta. Machado não podia evitar falar em Deus; qual de nós pode, mesmo o mais cético e descrente? Mas o tom com que ele fala! 



(João Cabral de Melo Neto)
 

Já outro cético famoso, João Cabral de Melo Neto, era uma figura trágica porque confessava: “Meu problema é que eu não acredito em Deus, mas tenho medo de ir para o inferno.” Um cínico aconselharia Cabral a fazer o contrário: não acreditar, mas ter certeza de que iria para o Céu. 
 
Entre céus e infernos arde o coração desses poetas, e ardia também o de Carlos Drummond em plena filosofia de seus 28 anos, quando estreou em livro com Alguma Poesia, onde se lê esse belo e enigmático “Poema da Purificação”. 
 
Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio. 
 
Este verso sempre me inquietou e me pacificou. Tudo bem, fala-se de combates, de guerras olímpicas entre as divindades, e mesmo um leitor que não acredita na existência de anjos não tem dificuldade em acreditar que eles lutam entre si. As guerras existem. 



(G. K. Chesterton)
 

Não estou sendo blasé – estou apenas glosando o católico Chesterton: 
 
Os contos-de-fadas não fornecem à criança a sua primeira noção do que é um monstro (“bogey”). O que eles fornecem à criança é a sua primeira idéia real de que é possível derrotar o monstro. As crianças sabem o que é um dragão, bem no seu íntimo, desde que começam a ter imaginação. O que os contos-de-fadas lhes dão é um São Jorge capaz de matar o dragão. 
(Tremendous Trifles, 1909, trad. BT) 
 
No meu raciocínio, a criança pode até mesmo não acreditar em gigantes, mas se o conto-de-fadas for bom, ela irá acreditar que eles podem ser derrotados. 
 
Carlos Drummond de Andrade, independentemente de sua fé (ou não) na existência de anjos, escreve em seu poema que o anjo bom matou o anjo mau. Isto seria o final de um conto-de-fadas – o triunfo inevitável (segundo os contos-de-fadas, os folhetos de cordel, o cinema de Hollywood) de todas as lutas do Bem contra o Mal. 
 
A diferença entre um adulto cético e uma criança que crê (não tento ser irônico) é que nenhum final feliz é bastante para o adulto. Se o Anjo Bom mata o Anjo Mau, pensa ele, isto significa que o ato de matar pode ser, em si, um ato bom? Um não-pecado? Cabe ao Bem matar os maus? Bastaria isto para justificar a morte violenta de alguém? Se eu acredito que pertenço ao lado Bom, posso sair matando quem eu acho que pertence ao lado Mau? 
 
Podem parecer questões ociosas, mas comentei dias atrás aqui no Mundo Fantasmo o sofrido poema “Outubro 1930” em que Carlos Drummond narra episódios e sentimentos da Revolução que levou Getúlio Vargas ao poder (onde ficou por quinze anos). Brasileiros matando brasileiros. Eram os brasileiros bons matando os brasileiros maus? – perguntaria a criança de Chesterton. E responderia: “Se for assim, então tudo bem”. 
 
Essa questão não se esgotou em 1930. Nos Estados Unidos de hoje, onde a proliferação de armas de fogo e de crimes gratuitos com armas de fogo tem um índice jamais visto na História, esse é um dos argumentos mais frequentes para justificar o uso de armas. Porque (dizem) se um “Bad Guy” armado tentar invadir a sua casa, é preciso haver um “Good Guy” armado para defendê-la. Precisamos do Anjo Bom. 
 
As águas ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram. 
 
Os rios são um escoadouro tradicional para as grandes matanças. No Massacre da Noite de São Bartolomeu, em Paris, em 1572, mais de mil cadáveres de huguenotes (protestantes) foram arremessados nas águas do Sena. O rio leva, o rio lava, o rio limpa; mas às vezes há um sangue que não descora. 
 
Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador. 
 
O poeta termina sua pequena fábula com a promessa de uma luz não identificada que vem colocar as coisas às claras, e de que um outro Anjo virá cuidar dos ferimentos do Anjo Bom. Esta seria a interpretação mais óbvia do poema. (Alguém perguntará: “Mas você não diz sempre que poemas não são charadas u enigmas para serem interpretados?”. A resposta é que este poema se desenrola como uma pequena fábula, uma pequena alegoria, uma pequena narrativa com personagens e uma possível “moral da história”.) 
 
O termo usado no derradeiro verso, “anjo batalhador” refere-se ao anjo bom que venceu, ou ao anjo mau que foi morto? Se é de anjos que estamos tratando, não é impossível que o anjo morto e atirado ao rio (que era também um anjo “batalhador”, é claro) possa ter sido resgatado, ressuscitado e curado por algum colega. Ou será que os dois anjos, o bom e o mau, não seriam apenas versões parciais de um mesmo anjo, ou cópias reversas um do outro? 
 
Afinal, Drummond já usou (ou melhor – viria a usar, anos depois de Alguma Poesia) um tema análogo em “Os Dois Vigários”, em Lição de Coisas, onde conta a história de dois padres: o casto e piedoso Padre Olímpio e o dissoluto e debochado Padre Júlio, cada um deles sendo o oposto-simétrico do outro, e no final acabam “enterrados lado a lado / irmanados confundidos / dos dois padres consumidos / juliolímpio em terra neutra / uma flor nasce monótona.” 
 
Esse dúbio final feliz guarda uma última sutileza para o leitor cuidadoso. Diz o poeta que “outro anjo pensou a ferida / do anjo batalhador”. É um uso raro, mas normal e correto, do verbo “pensar” com o sentido de “cuidar, tratar convenientemente, fazer curativo”. Existe inclusive o substantivo “penso” no sentido de “curativo protetor que se coloca sobre um ferimento” (é um termo corrente em Portugal).  




(Augusto dos Anjos)


Existe uma longa história  etimológica por trás dessas formações, mas basta considerarmos que a palavra “cuidar” vibra nessa mesma região intermediária: significa “tratar com medicamentos”, significa “preocupar-se com a situação de algo ou alguém”, significa “pensar, ajuizar, formar um conceito mental”, como quando Augusto dos Anjos nos diz: 
 
Porque o amor, tal como eu o estou amando,
é espírito, é éter, é substância fluida,
é assim como o ar que a gente pega e cuida,
cuida, entretanto, não o estar pegando!
(“Versos de Amor”, em Eu e Outras Poesias
 
Pensar a ferida do anjo é cuidar dela, tratá-la com um unguento qualquer; e pode ser também ficar pensando na ferida, ficar ajuizando aquilo, ficar fazendo-se perguntas tipo: Existem anjos bons e anjos maus? Um anjo que mata outro pode ser bom? Se um anjo mau obriga um anjo bom a matá-lo, isto não acaba sendo uma vitória do anjo mau, que tornou o outro igual a si? 
 
 




sábado, 15 de junho de 2024

5072) A mecânica do humor (15.6.2024)




Vou transcrever aqui a primeira versão que ouvi desta piada, com seu inevitável sabor datado, visceralmente ligado a um momento histórico e social.
 
A professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, contasse como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é bombeiro, meu pai é comerciante, meu pai é motorista...
 
Na vez de Joãozinho, ele disse:
 
– Meu pai é travesti e faz strip-tease numa boite gay.
 
Todo mundo ficou assustado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Glorinha veio falar com o menino.
 
– Joãozinho, eu não sabia que seu pai era travesti.
 
– Ele não é. Ele é jogador do Flamengo, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
A anedota é um gênero literário ainda pouco analisado. O próprio Sigmund Freud, citado amiúde, não escreveu propriamente sobre ela, e sim sobre o “chiste”, o “gracejo” geralmente baseado num trocadilho.
 
A obra de Freud (Os Chistes e a Sua Relação com o Inconsciente, “Der Witz und seine Beziehung zum Unbewußten”, 1905) é voltada para os desvios verbais, os trocadilhos voluntários ou involuntários, que revelam associações de idéias ocultas, reprimidas, proibidas, etc.


 

Freud escreveu sobre o chiste, mas não sobre a anedota, que é uma pequena historinha, como o exemplo acima, com leis próprias de dramaturgia.
 
Uma coisa básica da anedota é que ela é (freudianamente, também) toda baseada num mal-entendido, num duplo-sentido, numa ilusão; 90% da anedota são uma história que parece estar dizendo uma coisa, e nos 10% restantes, aquilo que chamamos de punchline ou desfecho, há uma revelação, uma surpresa, uma puxada-de-tapete absoluta, que provoca o riso.
 
Um aspecto interessante da anedota é que todo mundo que escuta uma anedota ri com o seu “conteúdo”, a historinha que foi contada. Está OK. Mas na verdade está rindo por causa de sua “forma”, essa maneira de estruturar e contar a historinha.
 
Vou dar agora uma versão mais recente da piada acima:
 
A professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, contasse como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é bombeiro, meu pai é comerciante, meu pai é motorista...
 
Na vez de Joãozinho, ele disse:
 
– Meu pai é miliciano e mata gente.
 
Todo mundo ficou assustado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Glorinha veio falar com o menino.
 
– Joãozinho, eu não sabia que seu pai era miliciano.
 
– Ele não é. Ele é pastor, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
Esta versão da piada não é minha: peguei na Internet. (“Peguei na Internet” é a fórmula atual que substitui “Aconteceu de verdade, com o marido da minha prima”, etc.)
 
Repeti literalmente a verbalização do primeiro exemplo, para ficar claro que os personagens mudam, e quem nos faz rir é a maneira econômica, direta, tensa, com que a historinha é contada, e que faz com que a “mecânica” funcione. Sem perda de tempo com detalhes desnecessários, sem referências colaterais a nada que não seja a piada em si.
 
Existe uma comparação jocosa entre duas profissões. Essa comparação, contudo, precisa ser feita de acordo com essa regra: preparação breve, desfecho instantâneo.
 
É a qualidade literária da “Rapidez”, que Ítalo Calvino elogiava tanto.


 
Essa rapidez narrativa distingue o bom e o mau contador de piadas. Quantas e quantas vezes, numa mesa de bar, alguém começa a contar uma piada que a gente já conhece! E sempre acontece uma destas duas coisas: 1) alguém conta uma piada engraçadíssima, mas a  estraga totalmente, porque não soube contar; 2) alguém conta uma piada banal que a gente já ouviu dez vezes, mas desta vez a piada bate, a gente gargalha até contra a vontade.
 
Muita gente atribui esse “jeito para contar piada” ao histrionismo, a facilidade de fazer caras-e-bocas, de imitar a voz dos personagens, e de fato muita gente se vale disso. A piada pode nem ser muito engraçada, mas “Fulano é engraçado o tempo todo”. Funciona também – mas é outra coisa. Não é isso a raiz do humor da anedota.
 
A raiz desse humor consiste em 90% de preparação e 10% de surpresa, e num modo de contar que otimiza este contraste.
 
Na primeira versão acima, a piada era engraçadíssima, sim, porque o Flamengo (eram os anos 1990) vivia numa pindaíba de vitórias que dava dó, levava goleadas a torto e a direito, vivia lutando contra o rebaixamento. A frase de Joãozinho (digo por experiência própria) era dolorosamente verossímil. Mas... a piada era engraçada porque comparava flamenguistas e travestis? Bem, esse era o objetivo da piada, mas só foi conseguido através do uso correto da mecânica: 90% de preparação e 10% de surpresa na frase final.
 
Na segunda versão (miliciano / pastor), a mecânica da piada é rigorosamente mantida, e pouco importa se os alvos do deboche são os milicianos e os pastores. O conteúdo desta piada vai mudar de dez em dez anos, ou mesmo de dez em dez dias, não importa. A mecânica dela será sempre esta: o garoto diz que seu pai tem uma profissão (circunstancialmente) vergonhosa para não dizer que tem outra, aparentemente respeitável, mas que o autor da piada quer tornar mais vergonhosa ainda.
 
Não duvido que a primeira formulação dessa anedota tenha sido algo como:
 
Na época da Terceira Dinastia, na escola de Hatseph, às margens do Rio Nilo, a professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, contasse como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é escriba do templo, meu pai é construtor de pirâmides, meu pai é fabricante de papiro...
 
Na vez do pequeno Eutychius, ele disse:
 
– Meu pai é comerciante de peles de crocodilo.
 
Todo mundo ficou horrorizado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Bashma veio falar com o menino.
 
– Eutychius, eu não sabia que seu pai era comerciante de peles de crocodilo.
 
– Ele não é. Ele é sacerdote do culto de Fahd-al-Raqq, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
As funções exercidas pelo personagem vão variando de país para país, de época para época, e têm a função social de ridicularizar a última profissão citada; é por causa disso que a gente ri. Mas quando a gente vê mais de uma piada obedecendo à mesma estrutura, a gente percebe que a gente não riria do “conteúdo” se a “forma” não estivesse bem aplicada. E para a forma ser bem aplicada, é preciso que o “conteúdo” tenha um significado social para quem escuta.
 
A piada desse tipo irá morrer e renascer mil vezes, sempre substituindo os “tipos sociais” de acordo com os preconceitos da época, a realidade social da época, os conceitos de “digno/indigno”, “sério/ridículo”, etc., da época.
 
É a mecânica da surpresa que caracteriza a anedota, que é diferente do “chiste” freudiano, embora muitas anedotas usem um “chiste freudiano” para deflagrar sua surpresa, o que também é totalmente válido.
 

 
A profissão de “redator de humor” é um grande paradoxo, por ser aquela onde mais se ri e onde mais se chora. Forçado a arrancar diariamente do cérebro uma coisa engraçada qualquer, o mísero redator vê-se muitas vezes forçado ao mais aviltante dos recursos: o furto de uma piada alheia, e isso acaba se tornando um hábito, depois uma obrigação, depois um direito natural da profissão. (Como acontece na maioria das outras.)
 
Esse furto, quando criativo, acontece assim: a gente vê uma piada engraçadíssima, e volta ao começo, relendo com cuidado, e separando o que é a roupagem circunstancial (jogador do Flamengo, vendedor de pele de crocodilo, etc.) e o que é a mecânica: De que modo é feita a preparação? De que modo acontece o desfecho? Identificada a mecânica, basta substituir os pesonagens, a época, o local, e projetar a anedota num universo facilmente reconhecível pelo público.
 
A professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é bonbeiro, meu pai é comerciante, meu pai é motorista...
 
Na vez de Joãozinho, ele disse:
 
– Meu pai é coach de auto-ajuda.
 
Todo mundo ficou assustado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Glorinha veio falar com o menino.
 
– Joãozinho, eu não sabia que seu pai era coach de auto-ajuda. 
 
– Ele não é. Ele é poeta de vanguarda, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
“Pano rápido.”
 


(Billy Wilder) 
 



quarta-feira, 12 de junho de 2024

5071) Uma volta em "Avalovara" (12.6.2024)




(Primeira edição, Ed. Melhoramentos, 1973)
 
 
Sou, nessa hora, a partir dessa hora, a foz terrível das coisas, o ponto ou o ser para onde converge, com suas múltiplas faces, o que o homem conhece, o que julga conhecer, o de que suspeita, o que imagina e o que nem sequer lhe ocorre que exista. 
(Avalovara, 1973, p. 135)
 
Neste ano está sendo comemorado o centenário de Osman Lins (1924-1978), autor de uma obra que não se encaixa com justeza em nenhum gênero ou corrente literária. Estou aqui terminando a leitura de Avalovara, o romance que o projetou para o grande público e que o levou a ser traduzido em várias línguas. 
 
É um romance complexo, com uma linguagem elevada, rebuscada, mas belíssima, e narra, basicamente, os três casos amorosos do narrador, Abel, com três mulheres: na Europa, durante uma viagem; no Recife, sua terra natal; e em São Paulo, a cidade onde escolhe viver.  Um trajeto semelhante ao da biografia de Osman. 
 
A imensa maioria das críticas sobre este livro se detêm em alguns detalhes cruciais: uma espiral, um quadrado, um palíndromo com 5 palavras de 5 letras, uma personagem cujo nome é um mero sinal gráfico... São alguns dos artifícios estruturais usados pelo autor. 
 
Já existe uma boa bibliografia sobre a obra de Osman. 
 
Um ótimo livro focado quase exclusivamente em Avalovara é o ensaio de Regina Dalcastagnè A Garganta das Coisas (Brasília/São Paulo: UnB/Imprensa Oficial do Estado, 2000). Uma leitura inteligente e útil, inclusive por trazer um glossário de nomes próprios e uma cronologia interna da narrativa (que é cheia de idas e vindas). 
 
Uma boa biografia é a de Regina Igel, Osman Lins – Uma Biografia Literária (T. A. Queiroz, 1988), que fornece uma boa base informativa sobre a vida do autor, fazendo, sem exagero, paralelos entre sua vida pessoal/profissional e os seus livros. 
 
São dois bons pontos de partida para se começar a estudar a obra de Osman, que é grande e variada: quatro romances, dois volumes de contos, peças de teatro, numerosos volumes de ensaios e artigos, roteiros para televisão. Sem falar nas várias coletâneas de artigos, acadêmicos ou não, dos muitos pesquisadores de sua literatura. 



Osman Lins usou como ponto de partida para Avalovara o palíndromo Sator Arepo Tenet Opera Rotas – uma frase clássica que serviu de base também para o filme Tenet (Christopher Nolan, 2020), uma aventura de viagem no tempo. As oito letras que compõem o palíndromo (S, A, T, O, R, E, P, N) sugeriram ao autor criar oito linhas narrativas diferentes, que se entrelaçam de acordo com o movimento de uma espiral no quadrado mágico. 
 
Eu não devia fazer os comentários que se seguem, porque eles acabam sendo uma espécie nova de spoiler. São aqueles comentários prévios que assustam o leitor, “espantam a caça”, fazem a pessoa pensar que o romance de Osman é uma espécie de problema de álgebra a ser resolvido. 
 
Não é nada disso! O leitor ganharia se pensasse apenas que são oito contos entrelaçados, contos que voltam, de forma recorrente, como se o autor quisesse contar oito histórias ao mesmo tempo, pulando de uma para outra ao acaso. (Não é ao acaso – é de acordo com uma regra – regra que o leitor não tem a menor necessidade de saber, para poder fruir o livro.) 
 
Lembrei do comentário modesto e sensato do tradutor norte-americano Gregory Rabassa, que verteu o livro para o inglês. Em sua memória If This Be Treason: Translation and Its Dyscontents [sic] (New York: New Directions, 2005), ele diz (trad. BT): 
 
Aqui está um livro que merece uma segunda leitura. Na segunda vez em que percorri o texto, percebi o que estava acontecendo, e vi com prazer que minha tradução tinha captado muitas coisas sem que eu soubesse ao certo, da primeira vez, o que significavam. Essa segunda leitura amplia o livro ao revelar suas verdadeiras dimensões. É o contrário de muita literatura chamada de pós-moderna, que ao invés de se alargar, ao ser relida, simplesmente murcha e é levada pelo vento. (p. 117) 
 
O comentário é bom porque reconhece que no livro de Osman existe um planejamento arquitetônico, mas também existe força, ímpeto, energia vital, entusiasmo fabulatório. Em algum momento do livro o autor emprega a imagem da jaula de metal tendo no seu interior uma onça ou pantera; é essa a dualidade do livro, de um máximo de disciplina geometrizante trazendo dentro de si uma energia vital ansiosa para escapar –  e escapando, frase por frase. 



 
Das oito linhas narrativas (todas detalhadamente indicadas no índice final do romance), “Roos e as Cidades” conta a paixão de Abel, quando viaja pela Europa, pela alemã Anneliese Roos, que ele conhece em Paris. Roos é distante, enigmática, meio desdenhosa às vezes. E é feita de cidades: olhando-a, Abel vê nela uma reprodução da Europa, seus tesouros, mistérios, indagações, viagens, um mundo a ser descoberto: 
 
Roos... Nunca vimos o quarto nem o país do outro. Conhecemo-nos como soltos no mundo. Não sei que perfume têm seus vestidos no armário; de que modo arruma suas loções, seus cremes, que cor tem seu roupão de banho e em que posição ficam as sandálias, quando as descalça na hora de dormir. Muito menos sei como é o seu pai e em que trabalha. Se o sol, em Eltville, entra na janela do seu quarto pela manhã ou à tarde; se há, na vizinhança, algum pássaro ou cão que você ouça; se detesta o cão, se ama o pássaro. (p. 228) 
 
Dessas incompletudes é feita a curiosidade erótica e afetiva, e quando Abel volta a Pernambuco encontra ali Cecília, que trabalha como assistente social num hospital do Recife. O caso entre os dois ocorre em 1962-63, época do “Recife pegando fogo” com o governo Miguel Arraes e as Ligas Camponesas. A princípio ela também se esquiva a Abel, mas os dois acabam ficando juntos, quando ele por fim descobre que ela é hermafrodita. 
 
Nesta cena, ela está na casa da família de Abel, depois de um episódio em que os dois são espancados na rua: 
 
Suspicaz, Cecília nos espreita, as mãos cerradas. Vendo as duas velas acesas em frente ao oratório, pede à minha irmã: “Apague a lâmpada.”  Obedeço. Procuro no guarda-roupa um vestido nosso, antigo, leve e limpo, que lhe sirva. Ouço o grito. Um soluço? Soluço ou grito: vejo sem querer, à luz discreta das velas, o sexo duplo e dúbio de Cecília. Verso e reverso. Bainha e faca. (p. 263-264)  
 
O segmento dedicado a ela tem o nome de “Cecília entre os Leões”, e mereceu este comentário de Julio Cortázar, que leu o livro em francês e disse em 1983, numa carta a seu amigo Eduardo Jonquières: 
 
Me alegra que tenhas gostado tanto de Avalovara, porque mesmo que não o recorde em detalhe, ficou-me como uma grande experiência de leitura. Coisas como a imagem de “Cecília, rodeada de leões” perduram em minha má memória destes tempos. Penso às vezes que as coisas mais fortes que li nos últimos dez anos é a obra de dois brasileiros, Clarice Lispector e Lins; quase dá vontade da gente mergulhar no português em busca de outras coisas que por acaso existam.
(Cartas A Los Jonquières, Alfaguara, 2010, p. 546, trad. BT) 
 
A história com Cecília termina de maneira trágica (como a do país naquele momento) e Abel se refugia em São Paulo, onde encontra sua terceira amada – que não tem nome, é representada apenas por um sinal gráfico, e que chamarei aqui de ‘O’.



 
Esta é a personagem mais complexa, e a ela são dedicadas quatro linhas narrativas: “História de ‘O’, Nascida e Nascida” / “ ‘O’ e Abel: Encontros, Percursos, Revelações” / “ ‘O’ e Abel: ante o Paraíso” e “ ‘O’ e Abel: o Paraíso”.
 
É uma mulher de São Paulo, e dela se diz “nascida e nascida” porque “morreu” duas vezes: ao cair no poço do elevador aos 9 anos de idade, e depois, adulta, numa tentativa de suicídio com revólver. São duas mortes simbólicas mas que a transformam também numa pessoa múltipla, porque dentro dela continuam a viver as duas já morridas.
 
As duas outras narrativas do livro são meio afastadas do enredo principal. “A Espiral e o Quadrado” transcorre na Antiguidade, em 200 antes de Cristo, quando um comerciante romano de Pompéia promete a um escravo a liberdade se ele compuser um palíndromo dentro de um “quadrado mágico” – um frase que possa ser lida igualmente da esquerda para a direita e vice-versa, de cima para baixo e vice-versa.




E a última narrativa é “O Relógio de Julius Heckethorn”, também uma história de origem européia, cujo desfecho explode no Brasil. Um músico e relojoeiro constrói um relógio de pêndulo cujo mecanismo, a cada hora, toca um trecho de uma peça para cravo de Scarlatti ( a Sonata em Fá Menor, K 462). O mecanismo é concebido de tal maneira que cada trecho da peça musical é tocado isoladamente, mas com o passar do tempo eles irão se conectando, se superpondo, até que num momento futuro, e só nesse momento, a peça será executada por inteiro – e isto coincide com o clímax do romance.
 
Não me preocupo com este tipo de spoiler porque, como observou Gregory Rabassa, ler este livro pela segunda vez duplica o prazer, porque somente agora enxergamos todos aqueles detalhes, sabemos para onde estão conduzindo, sabemos o peso e a função de cada elemento aparentemente secundário ou banal. E isso duplica o poder revelatório da escrita, fazendo o leitor sentir-se no papel de um leitor onisciente, capaz de voltar no tempo e fazer com que aquelas pessoas voltem a viver, a amar, a sofrer, a matar. A segunda leitura eleva aquele drama ao quadrado. E à espiral.



 

 





domingo, 9 de junho de 2024

5070) "Godzilla Minus One" (9.6.2024)




Vi alguns filmes de Godzilla quando era adolescente, e eles sempre me divertiram muito. Os efeitos especiais eram toscos? Nunca liguei para isso. Não estou ali para imaginar que algo é real, mas para ver como o não-real se comporta. Minha suspensão-da-descrença está sempre pronta, a um estalar dos dedos. 
 
Vi agora o Godzilla Minus One, de Takashi Yamasaki. Um bom filme dentro do seu gênero, com personagens interessantes, um monstro respeitável, bons efeitos especiais, música tonitruante e bombástica. 
 
Godzilla é sempre interpretado como um símbolo da destruição nuclear sofrida pelo Japão na II Guerra Mundial, e do perigo nuclear como um todo. Forças primitivas da natureza estavam quietinhas no seu canto... mas os cientistas foram cutucar ali, sem a menor necessidade. E de repente essa natureza revela-se uma força cega, que mata, sem sequer perceber que está matando. 


 
Uma imagem que me ocorre quando penso no Godzilla de Yamasaki é a fotografia do que ganhou o nome de “a Pata do Elefante” (“the Elephant’s Foot”). Quando o reator nuclear de Chernobyl explodiu, em 1986, o material nuclear misturou-se ao cimento derretido pela alta temperatura, e escorreu como lava. Depois que esfriou, solidificou-se numa massa escura e informe com a aparência da pata de um elefante. 
 
Os especialistas dizem que é um dos objetos mais mortíferos existentes no mundo, pelo alto grau de radioatividade (que felizmente vai decrescendo, com o passar dos anos). 
 
Esse monstruoso resíduo poderia ser chamado também “a Pata de Godzilla”. Seria uma metáfora adequada para esse monstro, um resultado da mistura entre sabedoria científica, presunção tecnológica, autoritarismo político, estupidez burocrática. Todos estes elementos estão presentes em Godzilla Minus One, com a ressalva de que no fim da aventura quem salva o mundo (ou pelo menos Tóquio) é um grupo de militares corajosos e de bom coração. 
 
Monstros servem para ser destruídos por armamentos poderosos e tropas eficientes – é algo que o cinema vem nos dizendo há décadas. 


 (
Godzilla Minus One, Takashi Yamasaki, 2023)



(20 million miles to Earth, Nathan Juran, 1957)
 
 
Para além de sua alegoria científica e militaresca, filmes como os da série Godzilla têm também uma dimensão místico-religiosa que fica aflorando aqui e ali. 
 
O monstro não é mau, ele é apenas selvagem, bruto. Uma força da Natureza que foi desencadeada pela imprudência humana, e que agora reage – reage como até um animal doméstico reagiria ao ser maltratado. É feroz e é incompreensível, por mais que a gente queira compará-lo a uma fera raivosa. 
 
Quando encontramos traços humanos no monstro, conseguimos nos compadecer dele, e talvez o melhor exemplo disto seja King Kong. Com diferentes nuances em cada versão; mas sempre um monstro em que podemos projetar emoções semelhantes às nossas. 
 
Godzilla nem tanto, mas me chamou a atenção um comentário feito pelo diretor Yamazaki, nas entrevistas. Ele diz que na cultura japonesa existe o conceito do tatarigami, “espíritos que trazem consigo as calamidades”. Godzilla, para o diretor, é metade-monstro e metade-deus. Uma divindade brutal e destrutiva, mas que traz em si algo de sagrado. 



 
O que me trouxe à mente um conto de Ted Chiang, “O Inferno é a Ausência de Deus”, em sua coletânea Stories of Your Life and Others, 2002 (no Brasil, História da sua vida e outros contos, Ed. Intrínseca, 2016, trad. Edmundo Barreiros). 
 
O conto de Chiang não é propriamente ficção científica, embora tenha ganho naquele ano os principais prêmios deste gênero (o Hugo, o Nebula e o Locus, além de outros). É uma ficção religiosa, imaginando um mundo em que existe Deus, existem o Paraíso e o Inferno, tudo parecido com o que dizem os livros sagrados. 
 
E nesse mundo acontecem o que eles chamam de “Visitações” dos Anjos. São breves momentos em que os Anjos surgem em nosso mundo material, emergindo do Além. Essas Visitações, contudo, ficam mergulhadas em mistério, porque os Anjos não se dirigem às pessoas: nada lhes dizem, nada lhes revelam. Surgem, e desaparecem. E cada Visitação é uma pequena catástrofe, como se fosse uma chuva de raios misturada a um terremoto. 
 
Cada visitação produz milagres – milagres paradoxais, imprevisíveis, inexplicáveis. Uma pessoa é curada do câncer. Um menino morre queimado no incêndio provocado pelos raios. Uma mulher que nasceu sem pernas adquire pernas, instantaneamente. Outra mulher é dilacerada por cacos de vidro na explosão de uma vidraça, e tem morte horrível. Outro homem perde os olhos, que desaparecem do seu rosto. 
 
Os efeitos dessas Visitações fugazes e assombrosas ficam sendo discutidos durante anos pelos fiéis, em grupos de estudo onde eles se dão apoio mutuamente e procuram entender o propósito do que lhes aconteceu. Nunca se sabe onde e quando as Visitações vão ocorrer, nem que consequências terão. 

O fenômeno assemelha-se aos mistérios encontrados pelos personagens de Piquenique na Estrada (“Roadside Picnic”, Arkádi e Bóris Strugátski; filmado por Andrei Tarkóvski como Stalker), onde um passo em falso pode provocar acidentes meio absurdos, mas fatais. 
 
Nessas narrativas, o contato com o Sobrenatural Divino e com o Extraterrestre Inacessível se assemelham. Sabemos que algum prodígio aconteceu, e produziu resultados espantosos, mas não entendemos a razão daquilo, não sabemos o como e o para quê desses eventos milagrosos, que para uns é redenção e para outros é tragédia. 


 
A noveleta de Ted Chiang é complexa, contraditória, e não deixa de trazer à lembrança o início da primeira das Elegias de Duino (1923) de Rainer Maria Rilke: 
 
Quem, se eu gritasse, me escutaria, entre as hierarquias
dos anjos? E mesmo que um deles de súbito
me apertasse contra seu peito, eu pereceria
ao contato de sua existência tão mais forte.
Pois a beleza não é senão o princípio do terror
que mal somos capazes de aguentar, e que nos espanta
porque calmamente desdenha de nos aniquilar.
Todo anjo é medonho. (...)
(trad. BT)
 
Falta a Godzilla essa dualidade angélico-medonha que o traga mais para perto do domínio humano. Uma dualidade que era visível no “King Kong” do cinema, com quem podemos estabelecer, em muitos momentos, um laço de empatia, de com+paixão. Somos capazes de entender (ou de imaginar que entendemos) o olhar de King Kong para a minúscula bonequinha loura que ele protege em seu punho cerrado. 
 
Não é o caso com Godzilla, principalmente este Godzilla furioso, de urros bestiais, esse tatarigami tão bem reconstruído pelos efeitos do filme de Yamasaki. Bem concebido e bem realizado, ainda assim é um filme comum de Homem vs. Monstro em que o Homem vence no final.  Como em todas as narrativas formulaicas, é uma conta que não deixa resto, e que não será lembrada. O "Bem" venceu o "Mal" mais uma vez; noves fora, nada. 
 
É diferente do final dos diferentíssimos filmes de King Kong (Merian Cooper & Ernest Schoedsack, 1933; John Guillermin, 1976; Peter Jackson, 2005), em que a derrota de Kong torna-se, por alguma química imponderável, uma derrota também nossa. O alívio que sentimos com a execução brutal do monstro fica temperado pelo remorso de sabermos que naquela execução cada um de nós também foi vítima e também foi carrasco. E até hoje ficamos pensando. 
 
 

 

Cartaz para o King Kong de 1976, não utilizado: Jacques Lewkowicz (criação), Julio Shimamoto (ilustração) e Paulo Hiroshi (produção).
 
 




quinta-feira, 6 de junho de 2024

5069) Dicionário Aldebarã XXVI (6.6.2024)



 

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso. 
 
Astorn – Um momento breve de prazer ou de alívio durante um período de estresse pessoal; geralmente simbolizado em coisas sem grande valor material, como uma lufada de brisa num dia de calor, um copo de água gelada para uma pessoa sedenta, alguns minutos de silêncio no meio de um trabalho ruidoso e estafante. A palavra tem a conotação de uma coisa minúscula mas que é boa em si mesma, sem excesso de louvor e sem espaço para ressalvas. 
 
Laning: Mangueirinha de borracha que se adapta às torneiras e produz um jato fino e concentrado, sob pressão, usado principalmente para lavar os dentes após as refeições, removendo resíduos e impedindo a formação de placa bacteriana; substitui com vantagem os palitos e os pedaços de linha-de-costura. 
 
Ragum-Ragum: Onomatopéia com intenção ameaçadora reproduzindo o ruído das grandes máquinas de metal (fornalhas, motores, etc.), que parecem a ponto de explodir ou de avançar mortalmente sobre as pessoas que estão próximas. E também se usa com conotação irônica, para designar uma situação qualquer que parece aterrorizante mas acaba se revelando inofensiva ou banal. 
 
Vi-Carvieris: a sensação pervasiva de irrealidade que nos acomete durante alguns minutos em situações de cansaço extremo, falta de sono, leve embriaguez, desorientação etc., fazendo-nos acreditar que nada daquilo à nossa volta é real, que nada daquilo está acontecendo de verdade. 
 
Dundos: pequenos tambores distribuídos com a platéia nos espetáculos ao ar livre, para que todos possam acompanhar os números executados pelos músicos no palco, em longas sessões de improvisos nas quais a platéia é “regida” pelos músicos. Os dundos ficam colocados embaixo dos assentos, e ninguém é obrigado a usá-los; por outro lado, tentativas de bagunçar a execução coletiva são reprimidas de forma delicada mas firme. 
 
Gellibar: Processo educativo usado nas escolas de crianças pequenas, em que forma-se uma roda e as crianças são estimuladas a lembrar fatos importantes que lhes aconteceram nas últimas semanas, os quais são discutidos coletivamente. Estes encontros periódicos ajudam a ir formando nelas um conjunto de lembranças autobiográficas que ajuda em seu desenvolvimento. 
 
Birij: Nome que se dá a qualquer objeto, ao ser usado para produzir uma dor não muito intensa, quando aplicado ao corpo: uma pinça, uma lâmina pouco afiada, uma extremidade pontuda, etc.  Os aldebaranes as empregam, por um misto de ciência e superstição, com o intuito de desviar a atenção de uma pessoa da dor mais forte que está sentindo. Se alguém está com uma forte dor de dentes, ou em algum órgão, o uso de um “birij” é aplicado no músculo do braço, ou nas costas da mão, ou na batata da perna, na crença otimista de que uma segunda dor ajudará a reduzir a dor principal que a pessoa sente. 
 
Iskrymio: Sistema de aprendizado que vigora nas oficinas, ateliês, etc., em que os candidatos a emprego inscrevem-se numa fila por ordem de habilidade e de conhecimento das várias tarefas a serem executadas. Cada aprendiz torna-se, durante algum tempo por dia, “mestre” do aprendiz que está logo abaixo dele na lista, checando seu conhecimento e ensinando-lhe a habilidade mais urgente no momento, e assim por diante. Desse modo, todos são aprendizes e mestres simultaneamente, e cada novato precisa galgar posições ao longo do “iskrymio”. 
 
Armivéris: miragens atmosféricas muito frequentes nos continentes do hemisfério norte, devido a bruscas mudanças de temperatura e à evaporação das águas; nesses episódios, que chegam a durar mais de meia hora, o horizonte visível parece erguer-se, revelando a parte oculta por trás da sua linha-limite, e dando a impressão de que o chão do planeta ergueu-se e está se dobrando sobre si mesmo, revelando florestas, desfiladeiros, montanhas, etc., que normalmente estão invisíveis ao observador. 
 
Coc-Nambure e Kic-Nambure: O sentido aproximado é de “Coincidências e Descoincidências”, ou “Rimas e Não-Rimas”. Os aldebaranes têm como passatempo colecionar coincidências ou rimas da vida real, por exemplo: ver passar na rua uma mulher de blusa azul e saia amarela, e logo na rua seguinte, em outro contexto, encontrar outra mulher com a mesma combinação de cores. A “não-rima” é quando algo parecido ocorre ao revés: p. ex., quando num dia conhecemos um pai e um filho, e no dia seguinte outro pai e outro filho com os nomes trocados em relação ao primeiro par. 
 
 



segunda-feira, 3 de junho de 2024

5068) Os espaços liminares (3.6.2024)




("The Yellow Room")
 

Há um gênero de narrativa que não é propriamente de terror, e se situa mais no campo do Insólito, mas é capaz de provocar um calafrio quando o leitor começa a mergulhar nela. É um terror sem monstros, digamos; um terror sem violência ou sadismo, um terror sem criaturas que ameaçam. Um terror baseado não no medo da morte ou do sofrimento – mas na Estranheza. 
 
É um conceito de espaço, não no sentido da Física e da Astronomia, mas no sentido do espaço social, um lugar físico que foi ocupado pela presença humana, contaminado pela presença humana através de construções, edificações, modificações no ambiente (uma cerca, uma ponte, um poço, etc.). Qualquer foto de uma cidade nos dá uma imagem confortável, até aconchegante, desse espaço social. Um lugar cheio de gente, ruas, prédios, vida humana. E sentimo-nos em casa. 
 
Existem espaços, contudo, que nos dão essa sensação de forma oblíqua, incompleta. Como se a presença ali fosse insuficientemente humana.  Como se aquele espaço não tivesse sido domesticado de todo. Como se no meio do matagal houvesse uma casa, mas entrando pela porta da frente víssemos que dentro da casa o matagal prosseguia intacto. 
 
Não precisamos entrar no domínio do Fantástico ou do Terror ou do Realismo Mágico para nos depararmos com esse tipo de ambiente, mas ele está presente em todo tipo de narrativa – da ficção científica à fantasia, etc. 
 
J. G. Ballard é um dos principais autores que exploram esses “espaços liminares” (“liminal spaces”), espaços que ficam no limiar entre o humano e o não-humano, entre a civilização e a selvageria, entre a indiferença e a ameaça. Diz ele, em suas memórias, falando sobre um cassino abandonado que via na infância: 
 
Mas havia um significado mais profundo para mim – a sensação de que a própria realidade era um cenário que podia ser desmontado a qualquer momento e que, por mais magnífico que algo parecesse, podia ser varrido a qualquer momento e atirado na lata de lixo do passado. 
(Milagres da Vida, trad. Isa Mara Lando, p. 58-59) 
 
Existe hoje em dia um verdadeiro culto aos “espaços abandonados”, edifícios que deixaram de ser úteis mas não foram demolidos e hoje estão tomados pelo mato e pela ferrugem. 
 
O primeiro fotógrafo nesse gênero que acompanhei pela Internet foi o piloto de avião comercial Henk van Rensbergen. Seu trabalho o leva a viajar pelo mundo inteiro, e suas horas de folga são dedicadas a fotografar lugares abandonados. Escrevi sobre ele aqui: 
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2008/03/0018-lugares-abandonados-1242003.html


Porém não são apenas os lugares abandonados que nos produzem estranheza, mas também os lugares novos, impecáveis, artificiais, impessoais, meio deslocados de função. A percepção dessa estranheza produziu a subcultura do que o pessoal chama de “backrooms”, que pode significar aposento dos fundos, bastidores, salas secretas. Espaços que parecem realistas, mas de uma realidade imaginada e construída não por seres humanos, e sim por uma Inteligência Artificial eficiente, mecânica, sem imaginação, sem compreensão do que está fazendo. 
 
Surgiu um trelelê recente na web a respeito de uma foto que para muita gente era uma foto “icônica” desses backrooms ou espaços liminares. A foto circulava há muitos anos nos grupos dedicados a esse assunto, e ao que parece somente agora no fim de maio foi descoberta a sua origem. A foto é esta: 


 

Por variadas razões ela se tornou um parâmetro dessa estranheza espacial. Os espaços liminares já vêm sendo explorados na pintura, principalmente a pintura surrealista: 



(Giorgio de Chirico, “Piazza”, 1913)



(Paul Delvaux, “Solitude”, 1956)


Espaços destinados à presença humana, mas esvaziados, quase totalmente, da presença humana. 
 
De acordo com o canal da Farrell McGuire no YouTube, foi preciso seguir muitas pistas e contar com várias descobertas isoladas para chegar até a provável origem da foto. 
 
Segundo ele, ela foi feita nas instalações atualmente ocupadas por uma loja da rede Hobby Town, na cidade de Oshkosh (Wisconsin). Aparentemente, era um espaço criado ali por uma loja ocupante anterior, a Rohner’s; antes de ser reformado, alguém resolveu tirar fotos daquele local, sem imaginar que estava criando um símbolo de toda uma subcultura internética. 




Quem quiser mais detalhes dê uma olhada aqui na sensacional descoberta de McGuire (ele fala em inglês, mas há a opção de acompanhar uma transcrição do lado direito da tela). 
 
https://www.youtube.com/watch?v=-1EKIIM3ShI
 
O websaite Metafilter, onde tomei conhecimento desta descoberta, tem uma discussão interessante, com muitos exemplos de “espaços liminares”: 
 
https://www.metafilter.com/203949/disquieting-images-that-just-feel-off
 
A mitologia urbana dos backrooms tem a ver com o espírito descartável da nossa civilização, como observou J. G. Ballard naquele trecho que citei no início. É uma civilização que não foi feita para a pessoa humana, que parece ter sido desenhada por uma Inteligência Artificial sem alma, sem espírito, sem entendimento, visando apenas o cumprimento de uma tarefa dentro de especificações dadas. 




Tais ambientes produzem em nós essa sensação de “não pertencimento”, de alienação, de que aquele espaço é menos humano do que deveria. É um efeito parecido com outro conceito um tanto recente, o do “Uncanny Valley”, ou “o Vale da Estranheza” – a sensação que temos diante de bonecos, manequins ou andróides quase perfeitamente humanos mas guardando alguma característica indefinível que nos provoca repulsa, medo, inquietação. 
 
Sigmund Freud estudou isso no seu ensaio O Estranho (1919), referindo-se à “dificuldade em distinguir entre criaturas artificiais (estátuas de cera, bonecas, autômatos, etc.) e pessoas de verdade.” Uma pessoa que parece demais um boneco ou um boneco que parece demais uma pessoa nos provocam a mesma rejeição instintiva. 
 
Algo parecido se dá com os “espaços liminares”, que nos inquietam sem que haja ali a presença de monstros, de criminosos, de criaturas repugnantes ou ameaçadoras. E os artistas contemporâneos têm sabido explorar esse efeito, que está presente no cinema de David Lynch, Andrei Tarkovsky e Stanley Kubrick, na literatura de Ballard ou de Philip K. Dick.    




Um conto de Thomas M. Disch, “Descending” (em Under Compulsion), 1968), é o símbolo perfeito dessa disjunção, ao mostrar um homem que depois de fazer compras numa loja de departamentos começa a descer escadas rolantes na direção da garagem, e nunca mais consegue sair desse labirinto. A partir de certa altura, há apenas escadas descendo, nenhuma pessoa em volta, e ele não tem resistência física para subir de volta no sentido contrário ao das escadas. Seu universo se transforma num corredor estreito, iluminado por lâmpadas fluorescentes, unindo duas escadas rolantes, a que vem de cima e a que o leva para baixo, sempre para baixo. 
 
O insólito dessas narrativas não sugere uma presença do sobrenatural, antes indica um ruído naquilo que nos acostumamos a considerar o Real, ou o Normal, que para algumas pessoas é a mesma coisa. Quem acredita na prevalência do Normal confia na existência de valores absolutos. Acredita que o mundo é, em última análise, um conjunto organizado e harmônico de elementos, numa ordem que faz sentido. 
 
Esse otimismo ontológico foi posto à prova e questionado ao longo do século 20 pelo Surrealismo, pelo Expressionismo, pelo Teatro do Absurdo, pela literatura de Horror Cósmico, por todos os movimentos artísticos que viram no mundo “um vácuo atormentado, um sistema de erros” (como dizia Carlos Drummond).