domingo, 30 de junho de 2024

5077) O primeiro "Escolha Sua Aventura" (30.6.2024)



 
Os livrinhos chamados “Escolha Sua Aventura” (“Choose Your Adventure”) eram, cerca de quarenta anos atrás, um pequeno e simpático nicho editorial voltado para o público infanto-juvenil, esse que hoje é chamado de “Jovem Adulto” (“Young Adult”). É uma marca que foi criada pelos autores Edward Packard e R. A. Montgomery. 
 
O modelo é muito simples: é uma história movimentada, com segmentos que variam de meia página a duas páginas, em média. Chegando a um momento crucial, o leitor (que assume o ponto de vista de um personagem) tem que dizer como o personagem deve agir. 
 
Digamos que é uma aventura de piratas. Você é o capitão do navio pirata. Seu navio vê no horizonte duas ilhas. Uma delas, maior, é coberta de florestas e montanhas. A outra é menor, mas vê-se ali um castelo aparentemente habitado (vê-se fumaça, etc.). Nesse ponto a narrativa se interrompe e aparece a instrução:
 
Se você quer atracar com o navio e desembarcar na ilha maior, vá para o capítulo 33.
Se você quer ir para a ilha menor e o castelo, vá para o capítulo 65.
 
Em cada um desses capítulos a narrativa prossegue de acordo com a escolha feita, e daí a pouco será necessário fazer novas escolhas.  




É um formato aparentemente simples, mas que pode, à medida que as escolhas e as bifurcações se amontoam, produzir uma variedade espantosa de situações.
 
Havia inclusive desfechos inesperados. Digamos que você é jogado, de olhos vendados, num porão escuro. Aparecem duas escolhas:
 
Se você quer acender o isqueiro e ver onde se encontra, vá para o capítulo 110.
Se você prefere esperar que venham buscá-lo para interrogatório, vá para o capítulo 144.
 
Você escolhe o capítulo 110, e ao chegar na página corresponde, lê:
 
Sinto muito: o porão estava cheio de barris de pólvora. Você foi pelos ares. Volte para o começo de tudo.
 
Esse tipo de jogo existia em livro muito antes de ser açambarcado pelos jogos de hipertexto (aqueles comercializados em forma de disquetes), pelos video games, e pelos jogos online da web, onde é facílimo criar essas “árvores de escolha”, com infinitas ramificações, e permitir que o público navegue ao longo delas.
 
Outra série dos EUA que fez sucesso no Brasil foi E Agora Você Decide (“Twist-a-Plot”), uma criação de R. L. Stine, o inesgotável autor da série de TV Goosebumps.



 
Os nostálgicos dessas séries (como dizia o lendário Big Boy, “jovem também tem saudade!”) podem checar aqui a lista de títulos:
 
https://www.gurpzine.com.br/enrola-e-desenrola/
 
No meu passeio semanal pelo excelente saite Metafilter, veterano fornecedor de temas para o Mundo Fantasmo, esbarrei com uma revelação inesperada. O primeiro livrinho nesse formato de “você escolhe o que acontece agora” não era de aventuras adolescentes, mas uma história romântica, adulta, escrita por duas mulheres, Mary Alden Hopkins e Doris Webster, e publicada em 1960.



Mary Alden Hopkins (1876-1960), que parece ter sido a autora com mais visibilidade na dupla, era uma jornalista e sufragista, com muitos anos de militância na imprensa novaiorquina. Defendeu o direito das mulheres ao voto, reformas trabalhistas, controle de natalidade e outros temas que, um século atrás, eram muito mais nitroglicerinados do que hoje. Bateu de frente com o governo dos EUA ao fazer críticas públicas ao seu envolvimento na I Guerra Mundial, o que ocasionou o fechamento do jornal onde trabalhava, Four Lights, em 1917.
 
Sua parceria com Doris Webster (1885-1967) rendeu uma série de obras de leitura leve com temas psicológicos, como I’ve Got Your Number (1927), que tem como subtítulo: “Como psicanalisar você mesmo e seus amigos”. Parecem ser livros com essa mistura de entretenimento ligeiro e exploração de temas de sucesso no momento.



 
Consider the Consequences! é uma história romântica, centrada em três personagens: uma moça, Helene, que tem dois pretendentes, Jed e Saunders. O livro tem 146 páginas e apresenta 43 finais diferentes.
 
Esquecido durante muitos anos, foi redescoberto pouco tempo atrás.
 
Deu origem a uma versão interativa na web, por geetheriot:
https://geetheriot.itch.io/consider-the-consequences/devlog/620173/decision-trees-and-you-well-me
 
Virou programa de rádio, com uma hora de duração, na voz de James Ryan & Nina, e escolhas de narrativa votadas pelo público:
https://www.youtube.com/watch?v=SWCu6PnK5ls
 
Teve seu texto completo reproduzido em fac-símile no Internet Archive, onde pode ser lido:
https://archive.org/details/consider-the-consequences-1930/page/n1/mode/2up



Todo este arrazoado serve para reforçar um dos meus argumentos preferidos, de que muita coisa que aparece no cinema, na televisão, nos games, etc., tem um antepassado na literatura. No presente caso, trata-se do que chamamos de uma narrativa ramificada, com pontos de escolha, criando universo paralelos, divergentes.
 
Hoje achamos que o habitat natural de narrativas assim é o ambiente eletrônico: o computador, o celular, o game. Mas a sua novidade estrutural não poderia ter passado despercebida a autores de ficção literária, conscientes, o tempo inteiro, de que dentro de um único livro podem conviver vários romances que não passam de versões alternativas do mesmo romance.
 
Foi o que fizeram Mary Alden Hopkins e Doris Webster. Na verdade, a grande sacada de uma obra assim é a sua conceoção estrutural, pioneira. O tema, os personagens, as situações desenvolvidas, podem variar bastante – histórias de amor, de piratas, de ficção científica, de lutas de boxe...
 
O que conta é a consciência ficcional de que cada situação de escolha de um personagem “quebra o universo em dois” e daí em diante existem dois universos alargando-se e afastando-se ao mesmo tempo.
 
A literatura experimental de alta qualidade tomou conta disso, de maneira brilhante, com obras tipo O Jogo da Amarelinha (1963) de Julio Cortázar, Avalovara (1973) de Osman Lins, A Vida Modo de Usar (1978) de Georges Perec, Se Um Viajante numa Noite de Inverno (1979) de Ítalo Calvino e muitos outros.
 
São alegorias literárias das sugestões encafifantes da Física Quântica, e sua teoria dos muitos universos, dos mundos paralelos onde todas as possibilidade de existência de um fato existem realmente, mas em “corredores” distintos do Tempo, que só se pode percorrer um de cada vez.
 
E assim, ao que parece (não li o livro – ainda) é Consider the Consequences!. A história de uma moça dividida entre dois rapazes, cada qual com suas qualidades e seus defeitos, com suas vantagens e seus inconvenientes. É preciso fazer escolhas a cada passo, e os universos se multiplicam como descendentes numa árvore genealógica.


 




quinta-feira, 27 de junho de 2024

5076) Por que esse começo de livro é bom (27.6.2024)



 
Fazendo-hora pelas redes sociais me deparei com uma lista de melhores começos-de-romance (ou de conto) da literatura. É um passatempo que pode ser útil, caso o leitor faça a si mesmo esta pergunta: “Por que eu achei isto bom? O que torna isto bom?”. 
 
A lista é em inglês, e traz os habituais suspeitos, os “começos famosos” sempre e eternamente citados. Isto nem sempre é bom para um livro. O que era impacto vai se reduzindo a clichê. Qualquer lista dessas, lá vêm os de sempre: “A Metamorfose”, “1984”, “Scaramouche”, “Cem Anos de Solidão”, “Anna Karenina”, “Moby Dick”, “O Estrangeiro”... Os que todo mundo cita, inclusive eu mesmo. 
 
Vou comentar alguns (a lista é longa). Há livros que eu nem li ainda, ou que desconhecia. Por que esses começos são bons? Há sempre um efeito pretendido pelo autor, um efeito que às vezes lhe ocorre de improviso, em outros casos é maduramente pensado. 
 
Esse efeito pretende, de certo modo, anunciar ao leitor o “tom” da narração, a voz narrativa, o modo a ser adotado no texto para contar os acontecimentos. Jacques Derrida dizia que “todo título é uma promessa”; digo eu que todo início é um diapasão. (Nem todo, é claro; etc. etc.) 
 
Comparando algumas dezenas de citações (em postagens assim, os leitores não se fazem de rogados para lembrar seus exemplos preferidos), a gente vê que certos formatos se repetem. 
 
Um começo que eu curto bastante é aquele que logo de saída vai fazendo uma mistura sutil (ou nem tanto) entre realidade e ficção, meio que tentando convencer o leitor de que “tudo aquilo é verdade”. (As traduções dos exemplos são minhas.) 
 
Vocês não me conhecem se não tiverem lido um livro chamado As Aventuras de Tom Sawyer; mas não importa. Esse livro foi feito pelo Sr. Mark Twain, e ele contou a verdade, na maioria das vezes.
(Huckleberry Finn, Mark Twain, 1884)
 
Hoje classificamos isto como metalinguagem, mas as fronteiras da literatura popular, da literatura que brotou nos jornais, sempre foram fronteiras porosas. Sempre admitiram esse tom de diálogo entre autor (cuja existência nunca é duvidada) e leitor. É uma conversa. Machado de Assis (mesmo sem nomear a si próprio) conversa o tempo todo, mesmo quando conta histórias na terceira pessoa.
 
E vejam na frase final o tom dubitativo do narrador quanto à veracidade dos fatos; não fica muito distante do tom usado por Kurt Vonnegut, Jr. (um desabusado total) no seu famoso Matadouro Cinco:
 
Tudo isto aconteceu; mais ou menos.
(Kurt Vonnegut, Jr., Slaughterhouse 5, 1969)
 
E o apogeu da metalinguagem vem com um tipo de estilista como Ítalo Calvino, malabarista-mestre na arte de refletir em voz alta sobre as artes de contar histórias e de refletir sobre elas:
 
Você está começando a leitura do novo romance de Ítalo Calvino, Se um Viajante Numa Noite de Inverno.
(Ítalo Calvino, Se Um Viajante Numa Noite de Inverno, 1979)
 
É sempre útil comunicar ao leitor, logo de cara, uma certa imprecisão, uma certa vagueza. Mostrar a ele que o texto que se segue não é um documento, é um relato. Jorge Luís Borges afirmava ter aprendido, com Rudyard Kipling e as sagas islandesas, a contar uma história como se não a entendesse por completo. (O problema com este recurso é que só funciona quando o autor entende a história por completo; é uma técnica que não beneficia os preguiçosos nem os confusos.)



(Somerset Maugham)


Nunca iniciei um romance com tanta apreensão. Se chamo a isto de romance é apenas porque não sei de outro nome para chamar.
(Somerset Maugham, The Razor’s Edge, 1944)
 
Maugham afirma, para fins ficcionais, que parte daquilo aconteceu de fato.  É o mais surrado dos recursos, mas sendo bem manipulado sempre produz algum efeito, porque corresponde a uma necessidade profunda do leitor: acreditar naquilo, pelo menos durante a narração.
 
Maugham é um autor de estilo clássico, eficientemente tradicional. Outra autora nessa mesma faixa é Edith Wharton.
 
Ouvi esta história, pouco a pouco, de várias pessoas, e, como geralmente aconntece em casos assim, a cada vez era uma história diferente.
(Edith Wharton, Ethan Frome, 1911)
 
Este é um formato que a gente também reconhece, intuitivamente; é um tipo confiável de imprecisão. Qualquer um de nós já passou pela experiência de ouvir versões diferentes (o que é inevitável) da mesma história.
 
Estes exemplos servem para relativizar o que se chama em geral de Narrador Onisciente: o narrador que sabe toda a história que aconteceu, sabe o que se passa na alma de cada personagem, sabe de cada personagem coisas que eles mesmos não sabem, e assim por diante. (Essa forma de contar poderia ser chamada também de Narrador Onipotente, mas seria um equívoco. “Narrador Onipotente” só existe na literatura absurdista, onde o cara inventa o que lhe der na veneta, os personagens que se danem, e o leitor que se conforme.)
 
Uma outra vertente desses “ganchos de abertura” vai noutra direção. Em vez de abrir com indecisão e rodeios, vai logo no osso, no cerne da ação. A entrada seca em uma cena, que pode ser estranha, violenta, inexplicavelmente cômica... Começos assim dão a nós, leitores, um pequeno impacto que nos avisa: “Se prepare”.



(Hunter S. Thompson)

 
Estávamos passando por algum lugar nas proximidades de Barstow, na fronteira do deserto, quando as drogas começaram a bater.
(Hunter S. Thompson, Fear and Loathing in Las Vegas, 1971)
 
Quando Augustus saiu para a varanda, os porcos estavam devorando uma cascavel, daquelas não muito grandes.
(Larry McMurtry, Lonesome Dove, 1985)
 
Havia dois mudos ali na cidade, e os dois andavam sempre juntos.
(Carson McCullers, The Heart is a Lonely Hunter, 1940)
 
Depois que matei o cara de cabelo ruivo, rumei para o Quinn’s para tomar um caldo de ostras.
(Michael Cox, The Meaning of Night, 2006)
 
Hale compreendeu, antes de ter passado três horas ali em Brighton, que eles tinham a intenção de assassiná-lo.
(Graham Greene, Brighton Rock, 1938)
 
É o tipo de começo que agarra o leitor, não por narrar algo espantoso, mas por saltar direto para a ação, sem explicar, sem fazer preparação. Como naqueles clichês de filme de aventuras, em que o protagonista está correndo perigo e “do nada” aparece a pessoa mais inesperada possível, dizendo: “Vem comigo, AGORA, depois eu explico”.  
 
 






 








segunda-feira, 24 de junho de 2024

5075) "Vidas Secas" na Netflix (24.6.2024)




O pessoal andou comemorando alguma data relativa ao cinema brasileiro, e isto induziu a Netflix a colocar na prateleira alguns títulos clássicos. Dei-me o presente de rever Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), que eu não assistia de novo há décadas. 
 
Por essas convergências naturais da História, os nomes de Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) e Glauber Rocha (1939-1981) foram sempre “pronunciados com o mesmo fôlego” naquela época. Ao se discutir cinema feito no Brasil, quem mencionava um tinha sempre que falar no outro, geralmente para compará-los, e mostrar o quanto eram diferentes (e eram). 
 
Ainda assim, foram grandes amigos e combateram juntos na mesma trincheira. É curioso que em muitos movimentos de criação artística surjam lado a lado dois artistas que servem de polos opostos, de pontos de referência para atrair discípulos e seguidores. Nelson era o clássico, Glauber era o vanguardista. Nelson era o herdeiro do cinema de rua Neo-Realista italiano. Glauber era o contemporâneo do cinema de rua da Nouvelle Vague francesa. Nelson era amigão de todo mundo. Glauber confrontava todo mundo. 
 
E Nelson tinha um vínculo programático com a literatura brasileira, uma espécie de missão auto-imposta de levar para a tela as nossas grandes narrativas literárias. Glauber devorava literatura, era um fã confesso de Guimarães Rosa e José de Alencar; mas não se dava o trabalho de adaptar ninguém. As referências na tela eram muitas, mas as histórias eram só dele. 


 
(Nelson Pereira dos Santos)

 
Nelson Pereira dos Santos, que teve uma carreira profissional muito mais extensa, adaptou, entre outros, Machado de Assis (Um Azyllo Muito Louco, 1970), Guimarães Rosa (A Terceira Margem do Rio, 1994), Jorge Amado (Jubiabá, 1987; Tenda dos Milagres, 1977), Graciliano Ramos (Vidas Secas, 1963; Memórias do Cárcere, 1984), além de dirigir trabalhos para TV sobre a obra de Gilberto Freyre e a de Sérgio Buarque de Hollanda. 
 
Muitos amigos meus tinham de Nelson a visão de um cineasta meio conservador, tradicionalista. Pudera. Seu cinema era sempre comparado aos delírios barrocos de Glauber, às anti-narrativas desconcertantes de Julio Bressane, ao escracho udigrudi de Rogério Sganzerla. 
 
Éramos jovens e impacientes por novidades, tínhamos fascinação pelas experiências narrativas, pelos modos de narrar que estavam nascendo ao mesmo tempo que a nossa consciência das formas narrativas. Queríamos fragmentação, descontinuidade, incessantes surpresas, transgressões inesperadas. Quanto mais doidice melhor. 
 
O cinema de Nelson não era careta, nem alérgico ao experimentalismo. Ele transformou O Alienista de Machado de Assis num longo happening, carnavalizando as ruas de Paraty em Um Azyllo Muito Louco, 1970. Filmou a aventura de Hans Staden entre os canibais brasileiros, em Como Era Gostoso Meu Francês (1971), pedindo que a equipe técnica trabalhasse sem roupa, para não constranger os atores. Criticado por muita gente, fez desde ficção científica absurdista (Quem é Beta, 1972) até cinebiografia de dupla sertaneja (Na Estrada da Vida, 1980). 
 
Considerado por todo mundo um clássico, Vidas Secas, estreado em agosto de 1963, é um filme que em seu momento deve ter sido tão surpreendente e inquietante quanto o foi Deus e o Diabo na Terra do Sol, quase um ano depois. 



 
O livro de Graciliano Ramos é todo fragmentado em episódios, tanto assim que ainda hoje se discute se é um romance ou uma coletânea de contos interligados. É um desses romances que acompanham um grupo de personagens não envolvidos em nenhuma “jornada do herói”, em nenhuma “demanda”.  Não estão cumprindo um arco narrativo que se encerrará de forma triunfante no desfecho. Nada disso. 
 
É o que eu chamo de “romance horizontal”, ou “romance ao rés-do-chão”. Muitas coisas acontecem, mas não vão num crescendo, rumo a um clímax. Apenas se sucedem. O filme de Nelson segue esse formato, com saltos às vezes surpreendentes de um episódio para outro. E são esses episódios que ficam em nossa memória, mesmo que um deles raramente conduza ao episódio seguinte. 
 
Fabiano e a mulher falando ao mesmo tempo, num diálogo de surdos. Fabiano a cavalo e encourado, quebrando mato na caatinga. A discussão com o Soldado Amarelo, a surra na cadeia. A morte da cachorra. A morte do papagaio. A morte da vaca. O encontro com os jagunços. O sofrimento para calçar sapatos e ir à vila. Não há um vetor dramatúrgico necessário entre esses episódios; são meio aleatórios, poderiam vir em qualquer ordem, pois não há um Fim em vista. 




 
Em mundos assim, habitado por gente a um fio de distância da morte, o tempo apenas se prolonga, sem conduzir a lugar nenhum. Uma fatalidade sublinhada pela simetria entre a primeira e a última imagem: a família se aproximando durante vários minutos, sob o sol cegante, sob o rangido angustiado do carro de boi; e no final afastando-se numa caminhada interminável, do mesmo jeito, no mesmo sofrimento, como se todas as cenas intermediárias não tivessem conduzido a coisa alguma. 
 
Sempre se elogiou muito, e com razão, a fotografia de luz estourada que Glauber Rocha e Valdemar Lima usaram em Deus e o Diabo... Ele já provém de Vidas Secas, com aquela brancura cegante. Um amigo comentou comigo, há muitos anos, que ver Vidas Secas era como dilatar a pupila no oculista e sair à rua no pingo do meio-dia. Luís Carlos Barreto (ótimo fotógrafo que depois foi fagocitado por um produtor de grandes projetos) ajudou a criar essa marca visual. O filme tem uma imagem encandeada, ofuscada por um sol imóvel e branco; e faz contraste com o alívio da penumbra nos interiores, que só entende quem já precisou se esconder daquele sol. Uma paleta xilográfica, talhada a gume de faca, de pretos-e-brancos agressivos, retomada recentemente em Sertânia (2019) de Geraldo Sarno. 





 
Um aspecto do filme que até hoje não me convence é a escalação de Átila Iório para o papel de Fabiano. O ator parece tolhido, bloqueado, preso numa camisa de força. Isso é ainda mais visível nas suas interações com Jofre Soares e Maria Ribeiro, ambos vigorosamente integrados aos seus personagens. Iório se esforça pra reproduzir a postura servil de Fabiano, sua passividade embrutecida, mas os diálogos soam falsos, e nem se trata de uma questão de sotaque nordestino. São falas decoradas e aplicadamente repetidas, mas são falas sem vida. O ator é mau? De jeito nenhum: logo depois deste filme ele faria o que talvez seja o grande papel de sua carreira no cinema, o Gaúcho de Os Fuzis (Ruy Guerra, 1964), onde ele faz uso de seu vigor físico, e de um jeito de falar escrachado, provocativo, cheio de veracidade. 



 
E assim é Vidas Secas, uma sequência de episódios que se sucedem sem parecer que avançam nem no tempo nem no espaço. Uma noite de folguedo de bumba-meu-boi diante de coronéis e autoridades. Sinhá Vitória contando despesas e ganhos com o auxílio de caroços arrumados no chão. O fazendeiro rude (Jofre Soares) à mesa, pegando no dinheiro e na comida com a mesma mão. Os animais tratados com brutalidade desnecessária. A criança fatigada pela caminhada deita-se no chão, e o pai exclama; “Anda, condenado do diabo!” (uma exclamação tipicamente de Graciliano). 
 
E o menino que pergunta à mãe o que é inferno, fica sabendo que é um lugar ruim, e fica olhando em volta e repetindo: “Inferno. Inferno. Inferno. Inferno. Inferno.”  Como no verso terrível de Cruz e Sousa ("Pandemonium"). 
 
 
 
 
 





sexta-feira, 21 de junho de 2024

5074) A foto do instante irrepetível (21.6.2024)



(foto: Stanley Forman, 1975, Prêmio Pulitzer)

 
Um dos subgêneros mais interessantes da Fotografia é a famosa foto do “Instante Irrepetível”. A foto de algo que estava acontecendo diante do fotógrafo, ele clicou, e aquele brevíssimo segundo ficou capturado para sempre. 
 
São aquelas fotos que a gente olha e pensa: “Caramba... um segundo antes, ou um segundo depois, e seria impossível ter feito esta foto.” 
 
Dizemos também: “Puxa vida, que sorte haver um fotógrafo por perto, para captar um momento fugaz como esse!...” 
 
É o que acontece com a foto no início deste texto, em que Stanley Forman captou a queda de uma adolescente (que morreu) e um garoto (que sobreviveu), quando uma escada de incêndio se partiu ou se desprendeu de seus suportes, a julgar pela imagem.  Um segundo a mais, e não haveria foto. 



(foto: Robert H. Jackson, 1962, Prêmio Pulitzer)
 
 
Outro bom exemplo é a foto acima, de Robert H. Jackson. Ela também ganhou o Prêmio Pulitzer de melhor foto do ano, e registra o instante em que Jack Ruby matou a tiros Lee Oswald, o presumido assassino de John Kennedy. Não é uma foto “artística”, mas é o equivalente fotográfico a um furo de reportagem. 
 
Fotos desse tipo são feitas por profissionais que estão o tempo todo com a câmera pronta e engatilhada. Sua tarefa é estar atento, perceber a situação que se arma à sua frente, erguer a câmera, apertar o botão no momento certo. 
 
Comigo não vai acontecer nunca. Mesmo que eu veja a dez metros de altura um disco-voador com a bandeira do Treze, vou ter que parar na calçada, enfiar a mão no bolso da calça, tirar o celular, ligar, premir a impressão digital, tocar no ícone da câmera, erguer o aparelho... e a esta altura o Ovni já sumiu, ou ergueu uma bandeira do Campinense. Perdi a foto. 






(fotos: Josef Koudelka) 

 
Estas duas fotos do mestre Josef Koudelka mostram instantes assim. O menino praticamente deitado em cima do burro e os homens soltando foguetões são provavelmente cenas com que ele se deparou, fez uma porção de cliques e escolheu divulgar o que lhe pareceu mais bacana. Acredito que sejam fotos espontâneas, sem interferência dele. Talvez as pessoas nem percebessem que estavam sendo fotografadas. 
 
É diferente de uma “foto provocada”, como esta abaixo, do mesmo Koudelka, em que percebemos com clareza a interação provocativa, até brincalhona, entre o fotógrafo e os fotografados: 



(foto: Josef Koudelka) 


A foto “do instante” nem precisa ser uma grande foto, do ponto de vista da luminosidade, enquadramento e outros recursos. Às vezes é meio borrada, ou meio inclinada, mas não importa – é o registro do momento!  Um instante que nunca vai se repetir, e que alguém registrou. 
 
Será que é? Porque depois que a gente se acostuma com os truques e as espertezas dos fotógrafos, a gente começa a desconfiar. OK, essa pessoa estava ali, fez esse gesto... Mas será que não foi tudo combinado? Será que o fotógrafo não concebeu essa cena na cabeça, e depois conseguiu pessoas dispostas a “posar” com essa aparência de casualidade? 
 
Não é preciso que o modelo da foto seja alguém contratado pelo artista. Pode ser gente da rua, pessoas que não o conhecem, ou que nem sabem estar sendo fotografadas. É o caso das fotos abaixo, de Henri Cartier-Bresson, um craque nessa captação dos momentos bonitos do cotidiano. O fotógrafo vê uma poça dágua lisa como um espelho. O que faz ele? Fica discretamente de emboscada, esperando o pulo inevitável dos transeuntes. 






(fotos: Henri Cartier-Bresson) 


O fotógrafo fica à espera de que a foto aconteça, porque há um elemento (a poça dágua) que vai deflagrar a foto. Nas fotos abaixo, de Robert Doisneau (o autor da famosa foto do rapaz beijando a moça, em Paris, nas comemorações do fim da guerra), ele deixou a pintura da mulher nua, exposta na vitrine, como isca. E registrou as reações. 
 
Numa foto temos uma mulher indignada com “aquela pouca vergonha”; na outra temos uma mulher muito séria, mostrando outra pintura, enquanto o homem olha à socapa o quadro da mulher pelada. 





(fotos: Robert Doisneau) 


Essas lembranças me vieram à mente por conta de uma moda recente nas redes sociais. Fotógrafos registram quadros nas paredes do museus ou de galerias de arte, e na frente do quadro a presença de uma pessoa vestida nas mesmas cores, ou no mesmo estilo, ou reproduzindo, de alguma maneira, as formas do quadro que contempla. 
 
Tem vários exemplos; peguei alguns de autoria de Stefan Draschan: 








(fotos: Stefan Draschan) 


Isto é casual? É combinado? Pode ser qualquer uma das duas coisas. 
 
Para ser casual, seria preciso que o fotógrafo se postasse à frente de um quadro cujos elementos (cores, grafismo, etc.) pudessem aparecer nas roupas de alguém; ou ver a roupa de uma pessoa e segui-la museu afora, esperando por um quadro que “desse match”. 
 
Acho mais possível que sejam fotos construídas. Se fosse comigo, eu fotografaria algumas dezenas de quadros, expostos em lugares de fácil acesso, e mostraria aos meus amigos e amigas, sugerindo que arranjassem alguma roupa “rimando” com o quadro. 



(foto: Henri Cartier-Bresson) 

 
Isso é fake news, é charlatanismo, é má fé?  De jeito nenhum. É uma foto construída. Ela é feita para dar a impressão de foto casual, mas é um acaso fingido. O que conta ali não é a pretensão de ter flagrado um momento raríssimo, mas a revelação de uma simetria inesperada. 
 
Gostamos disso porque gostamos de tudo que rima, tudo que repete um efeito, tudo que cria uma semelhança entre duas coisas não-relacionadas. Não importa se foi aleatório ou se foi planejado, desde que o efeito pareça ser espontâneo. 
 
A pintura já fingia descobrir acasos. Veja-se este quadro de Norman Rockwell, “The Voyeur”. É uma cena imaginada e pintada com tinta a óleo, provavelmente durante dias inteiros, ou semanas. E no entanto seu charme principal é a aparência de espontaneidade, de descontração, de ser aquilo um momento fugaz da vida real que um artista registrou, não importa como. 



(Norman Rockwell, "The Voyeur") 

 
Algumas fotos parecem tão bem sincronizadas que fazem a gente erguer a sobrancelha, com desconfiança. Esta foto de Tomás de Micheli, em que Lionel Messi aparece com uma auréola angelical formada pela marca do pênalti, é certinha demais, conveniente demais. Já vi gente discutindo que foi posada pelo jogador, outros dizendo que a “auréola” foi feita digitalmente. 



(foto: Tomás de Micheli)

 
E daí? Não sei o que De Micheli argumenta em favor de sua foto, mas para mim o que vale aí não é o lado instantâneo, e sim o lado alegórico. Uma foto imaginada, planejada, executada para criar uma idéia; ela “parece” usar uma coincidência de posição, mas não é isto o seu valor principal. 
 
Um caso completamente diferente é o da foto abaixo, em que a camisa do rapaz e o forro do banco do ônibus são idênticos. Foto “armada”? Pode ser. Foto casual? Pode ser. Mas no caso de ser armada a foto não tem nenhum sentido simbólico ou alegórico como tinha a foto de Messi. É uma foto mais banal do que as fotos dos museus de Stefan Draschan. Uma foto cujo único foco de interesse é a igualdade entre os dois tecidos, e isso só teria graça verdadeira se fosse produto do Acaso. 



 
 






terça-feira, 18 de junho de 2024

5073) Drummond: "Poema da Purificação" (18.6.2024)




(Carlos Drummond de Andrade) 
 
 
O Brasil anda fervilhando de gente religiosa, a julgar pelos jogadores de futebol que atribuem a Deus os seus gols e suas copas, pelos empresários que mandam os empregados começarem o dia rezando pelos lucros da firma, pelos incontáveis shows de canção gospel, samba gospel, blues gospel, carnaval gospel e assim por diante. 
 
Não custava nada alguém organizar uma antologia poética de Carlos Drummond de Andrade reunindo todos os seus poemas que falam de Deus, meditam sobre Deus, usam Deus como personagem, examinam o conceito de Deus, agradecem a Deus, questionam Deus... Todos não, porque talvez se tornasse um volume proibitivamente grande. Mas fizesse uma seleção, porque são muitos poemas, e chega a nos parecer que são muitos poetas. 
 
É curiosa a relação de nossos literatos com a religião. Penso no caso de Machado de Assis, tido por muitos como nosso maior prosador, tanto quanto Drummond é tido como nosso maior poeta. Machado não podia evitar falar em Deus; qual de nós pode, mesmo o mais cético e descrente? Mas o tom com que ele fala! 



(João Cabral de Melo Neto)
 

Já outro cético famoso, João Cabral de Melo Neto, era uma figura trágica porque confessava: “Meu problema é que eu não acredito em Deus, mas tenho medo de ir para o inferno.” Um cínico aconselharia Cabral a fazer o contrário: não acreditar, mas ter certeza de que iria para o Céu. 
 
Entre céus e infernos arde o coração desses poetas, e ardia também o de Carlos Drummond em plena filosofia de seus 28 anos, quando estreou em livro com Alguma Poesia, onde se lê esse belo e enigmático “Poema da Purificação”. 
 
Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio. 
 
Este verso sempre me inquietou e me pacificou. Tudo bem, fala-se de combates, de guerras olímpicas entre as divindades, e mesmo um leitor que não acredita na existência de anjos não tem dificuldade em acreditar que eles lutam entre si. As guerras existem. 



(G. K. Chesterton)
 

Não estou sendo blasé – estou apenas glosando o católico Chesterton: 
 
Os contos-de-fadas não fornecem à criança a sua primeira noção do que é um monstro (“bogey”). O que eles fornecem à criança é a sua primeira idéia real de que é possível derrotar o monstro. As crianças sabem o que é um dragão, bem no seu íntimo, desde que começam a ter imaginação. O que os contos-de-fadas lhes dão é um São Jorge capaz de matar o dragão. 
(Tremendous Trifles, 1909, trad. BT) 
 
No meu raciocínio, a criança pode até mesmo não acreditar em gigantes, mas se o conto-de-fadas for bom, ela irá acreditar que eles podem ser derrotados. 
 
Carlos Drummond de Andrade, independentemente de sua fé (ou não) na existência de anjos, escreve em seu poema que o anjo bom matou o anjo mau. Isto seria o final de um conto-de-fadas – o triunfo inevitável (segundo os contos-de-fadas, os folhetos de cordel, o cinema de Hollywood) de todas as lutas do Bem contra o Mal. 
 
A diferença entre um adulto cético e uma criança que crê (não tento ser irônico) é que nenhum final feliz é bastante para o adulto. Se o Anjo Bom mata o Anjo Mau, pensa ele, isto significa que o ato de matar pode ser, em si, um ato bom? Um não-pecado? Cabe ao Bem matar os maus? Bastaria isto para justificar a morte violenta de alguém? Se eu acredito que pertenço ao lado Bom, posso sair matando quem eu acho que pertence ao lado Mau? 
 
Podem parecer questões ociosas, mas comentei dias atrás aqui no Mundo Fantasmo o sofrido poema “Outubro 1930” em que Carlos Drummond narra episódios e sentimentos da Revolução que levou Getúlio Vargas ao poder (onde ficou por quinze anos). Brasileiros matando brasileiros. Eram os brasileiros bons matando os brasileiros maus? – perguntaria a criança de Chesterton. E responderia: “Se for assim, então tudo bem”. 
 
Essa questão não se esgotou em 1930. Nos Estados Unidos de hoje, onde a proliferação de armas de fogo e de crimes gratuitos com armas de fogo tem um índice jamais visto na História, esse é um dos argumentos mais frequentes para justificar o uso de armas. Porque (dizem) se um “Bad Guy” armado tentar invadir a sua casa, é preciso haver um “Good Guy” armado para defendê-la. Precisamos do Anjo Bom. 
 
As águas ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram. 
 
Os rios são um escoadouro tradicional para as grandes matanças. No Massacre da Noite de São Bartolomeu, em Paris, em 1572, mais de mil cadáveres de huguenotes (protestantes) foram arremessados nas águas do Sena. O rio leva, o rio lava, o rio limpa; mas às vezes há um sangue que não descora. 
 
Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador. 
 
O poeta termina sua pequena fábula com a promessa de uma luz não identificada que vem colocar as coisas às claras, e de que um outro Anjo virá cuidar dos ferimentos do Anjo Bom. Esta seria a interpretação mais óbvia do poema. (Alguém perguntará: “Mas você não diz sempre que poemas não são charadas u enigmas para serem interpretados?”. A resposta é que este poema se desenrola como uma pequena fábula, uma pequena alegoria, uma pequena narrativa com personagens e uma possível “moral da história”.) 
 
O termo usado no derradeiro verso, “anjo batalhador” refere-se ao anjo bom que venceu, ou ao anjo mau que foi morto? Se é de anjos que estamos tratando, não é impossível que o anjo morto e atirado ao rio (que era também um anjo “batalhador”, é claro) possa ter sido resgatado, ressuscitado e curado por algum colega. Ou será que os dois anjos, o bom e o mau, não seriam apenas versões parciais de um mesmo anjo, ou cópias reversas um do outro? 
 
Afinal, Drummond já usou (ou melhor – viria a usar, anos depois de Alguma Poesia) um tema análogo em “Os Dois Vigários”, em Lição de Coisas, onde conta a história de dois padres: o casto e piedoso Padre Olímpio e o dissoluto e debochado Padre Júlio, cada um deles sendo o oposto-simétrico do outro, e no final acabam “enterrados lado a lado / irmanados confundidos / dos dois padres consumidos / juliolímpio em terra neutra / uma flor nasce monótona.” 
 
Esse dúbio final feliz guarda uma última sutileza para o leitor cuidadoso. Diz o poeta que “outro anjo pensou a ferida / do anjo batalhador”. É um uso raro, mas normal e correto, do verbo “pensar” com o sentido de “cuidar, tratar convenientemente, fazer curativo”. Existe inclusive o substantivo “penso” no sentido de “curativo protetor que se coloca sobre um ferimento” (é um termo corrente em Portugal).  




(Augusto dos Anjos)


Existe uma longa história  etimológica por trás dessas formações, mas basta considerarmos que a palavra “cuidar” vibra nessa mesma região intermediária: significa “tratar com medicamentos”, significa “preocupar-se com a situação de algo ou alguém”, significa “pensar, ajuizar, formar um conceito mental”, como quando Augusto dos Anjos nos diz: 
 
Porque o amor, tal como eu o estou amando,
é espírito, é éter, é substância fluida,
é assim como o ar que a gente pega e cuida,
cuida, entretanto, não o estar pegando!
(“Versos de Amor”, em Eu e Outras Poesias
 
Pensar a ferida do anjo é cuidar dela, tratá-la com um unguento qualquer; e pode ser também ficar pensando na ferida, ficar ajuizando aquilo, ficar fazendo-se perguntas tipo: Existem anjos bons e anjos maus? Um anjo que mata outro pode ser bom? Se um anjo mau obriga um anjo bom a matá-lo, isto não acaba sendo uma vitória do anjo mau, que tornou o outro igual a si? 
 
 




sábado, 15 de junho de 2024

5072) A mecânica do humor (15.6.2024)




Vou transcrever aqui a primeira versão que ouvi desta piada, com seu inevitável sabor datado, visceralmente ligado a um momento histórico e social.
 
A professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, contasse como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é bombeiro, meu pai é comerciante, meu pai é motorista...
 
Na vez de Joãozinho, ele disse:
 
– Meu pai é travesti e faz strip-tease numa boite gay.
 
Todo mundo ficou assustado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Glorinha veio falar com o menino.
 
– Joãozinho, eu não sabia que seu pai era travesti.
 
– Ele não é. Ele é jogador do Flamengo, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
A anedota é um gênero literário ainda pouco analisado. O próprio Sigmund Freud, citado amiúde, não escreveu propriamente sobre ela, e sim sobre o “chiste”, o “gracejo” geralmente baseado num trocadilho.
 
A obra de Freud (Os Chistes e a Sua Relação com o Inconsciente, “Der Witz und seine Beziehung zum Unbewußten”, 1905) é voltada para os desvios verbais, os trocadilhos voluntários ou involuntários, que revelam associações de idéias ocultas, reprimidas, proibidas, etc.


 

Freud escreveu sobre o chiste, mas não sobre a anedota, que é uma pequena historinha, como o exemplo acima, com leis próprias de dramaturgia.
 
Uma coisa básica da anedota é que ela é (freudianamente, também) toda baseada num mal-entendido, num duplo-sentido, numa ilusão; 90% da anedota são uma história que parece estar dizendo uma coisa, e nos 10% restantes, aquilo que chamamos de punchline ou desfecho, há uma revelação, uma surpresa, uma puxada-de-tapete absoluta, que provoca o riso.
 
Um aspecto interessante da anedota é que todo mundo que escuta uma anedota ri com o seu “conteúdo”, a historinha que foi contada. Está OK. Mas na verdade está rindo por causa de sua “forma”, essa maneira de estruturar e contar a historinha.
 
Vou dar agora uma versão mais recente da piada acima:
 
A professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, contasse como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é bombeiro, meu pai é comerciante, meu pai é motorista...
 
Na vez de Joãozinho, ele disse:
 
– Meu pai é miliciano e mata gente.
 
Todo mundo ficou assustado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Glorinha veio falar com o menino.
 
– Joãozinho, eu não sabia que seu pai era miliciano.
 
– Ele não é. Ele é pastor, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
Esta versão da piada não é minha: peguei na Internet. (“Peguei na Internet” é a fórmula atual que substitui “Aconteceu de verdade, com o marido da minha prima”, etc.)
 
Repeti literalmente a verbalização do primeiro exemplo, para ficar claro que os personagens mudam, e quem nos faz rir é a maneira econômica, direta, tensa, com que a historinha é contada, e que faz com que a “mecânica” funcione. Sem perda de tempo com detalhes desnecessários, sem referências colaterais a nada que não seja a piada em si.
 
Existe uma comparação jocosa entre duas profissões. Essa comparação, contudo, precisa ser feita de acordo com essa regra: preparação breve, desfecho instantâneo.
 
É a qualidade literária da “Rapidez”, que Ítalo Calvino elogiava tanto.


 
Essa rapidez narrativa distingue o bom e o mau contador de piadas. Quantas e quantas vezes, numa mesa de bar, alguém começa a contar uma piada que a gente já conhece! E sempre acontece uma destas duas coisas: 1) alguém conta uma piada engraçadíssima, mas a  estraga totalmente, porque não soube contar; 2) alguém conta uma piada banal que a gente já ouviu dez vezes, mas desta vez a piada bate, a gente gargalha até contra a vontade.
 
Muita gente atribui esse “jeito para contar piada” ao histrionismo, a facilidade de fazer caras-e-bocas, de imitar a voz dos personagens, e de fato muita gente se vale disso. A piada pode nem ser muito engraçada, mas “Fulano é engraçado o tempo todo”. Funciona também – mas é outra coisa. Não é isso a raiz do humor da anedota.
 
A raiz desse humor consiste em 90% de preparação e 10% de surpresa, e num modo de contar que otimiza este contraste.
 
Na primeira versão acima, a piada era engraçadíssima, sim, porque o Flamengo (eram os anos 1990) vivia numa pindaíba de vitórias que dava dó, levava goleadas a torto e a direito, vivia lutando contra o rebaixamento. A frase de Joãozinho (digo por experiência própria) era dolorosamente verossímil. Mas... a piada era engraçada porque comparava flamenguistas e travestis? Bem, esse era o objetivo da piada, mas só foi conseguido através do uso correto da mecânica: 90% de preparação e 10% de surpresa na frase final.
 
Na segunda versão (miliciano / pastor), a mecânica da piada é rigorosamente mantida, e pouco importa se os alvos do deboche são os milicianos e os pastores. O conteúdo desta piada vai mudar de dez em dez anos, ou mesmo de dez em dez dias, não importa. A mecânica dela será sempre esta: o garoto diz que seu pai tem uma profissão (circunstancialmente) vergonhosa para não dizer que tem outra, aparentemente respeitável, mas que o autor da piada quer tornar mais vergonhosa ainda.
 
Não duvido que a primeira formulação dessa anedota tenha sido algo como:
 
Na época da Terceira Dinastia, na escola de Hatseph, às margens do Rio Nilo, a professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, contasse como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é escriba do templo, meu pai é construtor de pirâmides, meu pai é fabricante de papiro...
 
Na vez do pequeno Eutychius, ele disse:
 
– Meu pai é comerciante de peles de crocodilo.
 
Todo mundo ficou horrorizado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Bashma veio falar com o menino.
 
– Eutychius, eu não sabia que seu pai era comerciante de peles de crocodilo.
 
– Ele não é. Ele é sacerdote do culto de Fahd-al-Raqq, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
As funções exercidas pelo personagem vão variando de país para país, de época para época, e têm a função social de ridicularizar a última profissão citada; é por causa disso que a gente ri. Mas quando a gente vê mais de uma piada obedecendo à mesma estrutura, a gente percebe que a gente não riria do “conteúdo” se a “forma” não estivesse bem aplicada. E para a forma ser bem aplicada, é preciso que o “conteúdo” tenha um significado social para quem escuta.
 
A piada desse tipo irá morrer e renascer mil vezes, sempre substituindo os “tipos sociais” de acordo com os preconceitos da época, a realidade social da época, os conceitos de “digno/indigno”, “sério/ridículo”, etc., da época.
 
É a mecânica da surpresa que caracteriza a anedota, que é diferente do “chiste” freudiano, embora muitas anedotas usem um “chiste freudiano” para deflagrar sua surpresa, o que também é totalmente válido.
 

 
A profissão de “redator de humor” é um grande paradoxo, por ser aquela onde mais se ri e onde mais se chora. Forçado a arrancar diariamente do cérebro uma coisa engraçada qualquer, o mísero redator vê-se muitas vezes forçado ao mais aviltante dos recursos: o furto de uma piada alheia, e isso acaba se tornando um hábito, depois uma obrigação, depois um direito natural da profissão. (Como acontece na maioria das outras.)
 
Esse furto, quando criativo, acontece assim: a gente vê uma piada engraçadíssima, e volta ao começo, relendo com cuidado, e separando o que é a roupagem circunstancial (jogador do Flamengo, vendedor de pele de crocodilo, etc.) e o que é a mecânica: De que modo é feita a preparação? De que modo acontece o desfecho? Identificada a mecânica, basta substituir os pesonagens, a época, o local, e projetar a anedota num universo facilmente reconhecível pelo público.
 
A professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é bonbeiro, meu pai é comerciante, meu pai é motorista...
 
Na vez de Joãozinho, ele disse:
 
– Meu pai é coach de auto-ajuda.
 
Todo mundo ficou assustado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Glorinha veio falar com o menino.
 
– Joãozinho, eu não sabia que seu pai era coach de auto-ajuda. 
 
– Ele não é. Ele é poeta de vanguarda, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
“Pano rápido.”
 


(Billy Wilder)