No próximo sábado (estou escrevendo na 4ª. feira, dia 3) o Rei Charles da Inglaterra vai ser coroado, e o Reino Unido fervilha de piadas, memes, debates, fofocas. Para isso servem as monarquias, afinal – para tirar dinheiro dos turistas, e para aquecer as fantasias-de-poder das multidões.
“Pode dizer, Excelência! Eu absolutamente não me incomodo mais de ser filho-da-puta! Ou melhor, de ser neto-da-puta, porque minha Mãe, coitada, é que era filha-da-puta, filha bastarda do Barão do Cariri e portanto irmã por vias travessas de Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto. Antes, eu ficava danado da vida quando alguém falava nessa filho-da-putice nossa. Mas lá um dia, numa discussão, Samuel declarou que isso de bastardia não tem a menor importância nessas coisas de fidalguia e linhagens reais, tanto assim que os Braganças, descendentes de Dom João I e Nuno Álvares Pereira, são várias vezes bastardos e netos de padre! Depois daí, fiquei descansado e perdi a vergonha!” (Folheto 53)
Satirizar a espetacularização do poder e a glamurização da banalidade é um dos esportes favoritos de escritores, intelectuais, artistas em geral. E quando o roqueiro Nick Cave, um dos expoentes do dark rock de língua inglesa, foi anunciado dias atrás como um dos convidados para a coroação de Charles, houve no meio roqueiro um certo movimento sísmico de incredulidade e deboche.
-- Que diabos, você vai pra coroação do Rei? (Jon)-- Fiquei sabendo que você vai para a coroação, fazendo parte da delegação da Austrália. Você é monarquista? Por que está indo? (Adrian)-- A co-ro-a-ção? Fala sério. (Roger)-- Nick Cave vai à coroação? O que será que o jovem Nick Cave ia pensar disto?! (Matt)
Caros John, Adrian, Roger e Matt:Vou dar uma resposta breve, porque ainda estou escolhendo uma roupa para usar na Coroação.Não sou monarquista, nem sou roialista [Nota do tradutor: neologismo português recente], como também, por falar nisto, não sou o mais ardente dos republicanos. O que também não sou é espetacularmente desinteressado pelo mundo e pela maneira como ele funciona; não sou tão ideologicamente sequestrado nem tão ranzinza a ponto de recusar um convite para (talvez) o evento histórico mais importante no Reino Unido em nossa geração. Não apenas o mais importante, mas o mais estranho, o mais bizarro.Encontrei a falecida Rainha uma vez, no Palácio de Buckingham, num evento dedicado aos “Australianos Mais Promissores Morando no Reino Unido” (ou coisa parecida). Foi uma ocasião meio canhestra, mas a Rainha em pessoa, vestida num conjunto cor de salmão, parecia quase extraterrestre, e era a mulher mais carismática que conheci. Talvez fosse a iluminação, mas ela de fato emitia uma espécie de brilho. Quando contei a minha mãe – a qual tinha a mesma idade da Rainha e, como ela, morreu com mais de 90 anos – a respeito dessa ocasião, seus velhos olhos se encheram de lágrimas.Quando acompanhei o funeral da Rainha pela TV no ano passado percebi, para meu próprio pasmo, que também eu estava chorando quando retiraram do ataúde a coroa, o orbe e o cetro, e o abaixaram para a abertura sob o piso da catedral de São Jorge. Estou tentando dizer a vocês que, para além do interminável mas necessário debate sobre a abolição da monarquia, tenho um inexplicável vínculo emotivo com a família real – sua estranheza, e a natureza profundamente excêntrica de todo esse fenômeno, o qual reflete com perfeição a bizarrice inigualável da próprio Grã-Bretanha. Eu simplesmente sinto uma atração por esse tipo de coisa – tudo que é bizarro, estranho, extraordinariamente espetacular, tudo que nos deixa pasmos.Quanto ao que o jovem Nick Cave iria pensar... bem, o jovem Nick Cave era, com todo o respeito ao jovem Nick Cave, jovem, e como muitos outros jovens, era ligeiramente insano, e eu procuro ter uma certa moderação ao usá-lo como parâmetro para o que eu devo ou não devo fazer. Mas era um cara legal, eu tenho que admitir. Era insano, mas era um cara legal.Com tudo isto em mente, estou me preparando para ir à Coroação. Acho que vou de terno.Com amor, Nick
Sou um admirador de Nick Cave, um dos grandes poetas do rock em sua geração. Ele é uma espécie de Edgar Allan Poe com auto-controle. Tem a fagulha demoníaca, a vulnerabilidade angelical, o cinismo neo-urbano, o romantismo temperado pelo senso da fatalidade, a influência má dos signos do Zodíaco. E é australiano, ou seja, vem de uma espécie de Brasil-do-império-britânico, um país posto de pé com o muque de degredados, bandidos, fanáticos, aventureiros, religiosos de maus costumes, fidalgos de má reputação.
“Acho que vou de terno” (Nick Cave)