quarta-feira, 15 de julho de 2009

1153) O Rock e a Bossa Nova (23.11.2006)



A revista Beijo foi uma daquelas inúmeras revistas alternativas que, nos tempos da ditadura, brotavam por todos os lados, mais rapidamente do que a Censura conseguia matá-las por asfixia. A cada uma que morria surgiam duas. Curiosamente, depois que a ditadura militar foi substituída pela Democracia Eletrônica de Marketing e pela Ditadura do Consumo Conspícuo, essas revistas deixaram de existir. Não são mais contra, sonhavam para o futuro isto que está aí? Como saber?

Na revista Beijo li nos anos 1970 um artigo cujo autor não recordo, mas a quem tiro o chapéu. Todas as vezes que estou com amigos conversando sobre rock, surge de novo um velho argumento: nós, velhinhos transviados, não temos o direito de criticar as bobagens ditas e feitas pelo rock brasileiro. Porque no nosso tempo era a Jovem Guarda, e existe coisa mais banal do que letra, harmonia, melodia, ritmo, arranjo e interpretação vocal da Jovem Guarda? Para estes argumentantes, o rock brasileiro teve seus primeiros vagidos quase inaudíveis com o iê-iê-iê de Celly Campello, o “Broto Legal”, e seus contemporâneos Sérgio Murilo, Tony Campello, Sônia Delfino, Ronnie Cord... Eram musiquinhas inconseqüentes, das quais a mais “juventude transviada” eram as que diziam coisas como “Entrei na Rua Augusta a 120 por hora / botei a turma toda do passeio pra fora...” Esses eram os bad-boys da época.

Depois, claro, veio a Jovem Guarda de Roberto & Erasmo, Wanderléa, Renato e Seus Blue Caps, Jerry Adriani, Golden Boys... Nos anos 1970 houve um hiato em que os nomes roqueiros eram escassos. Contavam-se nos dedos, mas eram todos de peso: O Terço, A Bolha, Raul Seixas, Rita Lee. E por fim, nos anos 1980, começou o que chamamos na imprensa de BRock, com Blitz, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Titãs, Barão Vermelho e todo o resto.

Pois bem. A teoria do articulista da Beijo, pelo que lembro, já desmontava por antecipação (a revista era de 1972, por aí) toda esta árvore genealógica. Para ele, o equivalente brasileiro ao rock americano era a bossa-nova, e não a Jovem Guarda. Por que? Ora, o rock era um processo de apropriação de um tipo de música negra (o blues e seus derivados) por músicos brancos que o eletrificaram, o pasteurizaram (retirando a maior parte de seus subentendidos sexuais), deram-lhe uma fisionomia mais “família” e conseguiram projetá-lo para o sucesso. Claro que depois, com o bloco na rua, a brava gente bronzeada pegou de volta o que era seu e o rock voltou a ser politizado, sexualizado, agressivo.

A Bossa Nova fez o mesmo com o samba. Pegou uma música negra, da favela, e a transportou para um cenário de jovens de classe média urbana, destilando ao máximo e resumindo ao mínimo sua essência percussiva (a batida de João Gilberto), branqueando-a socialmente, poeticamente, mercadologicamente. A mesma dinâmica de apropriação que houve com o rock nos EUA.

1152) Internetês triunfante (22.11.2006)



Se o mundo fosse lógico não tinha a menor graça. Vejam adolescentes “chateando” pela Internet, por exemplo. Diferentemente do papel, que custa dinheiro e induz à economia material, a Internet oferece espaço quase ilimitado em seus blogs, forums, salas de chat, o que quiser. E existe alguém com mais tempo disponível do que adolescente? No entanto, eles inventaram esta curiosa linguagem cifrada que teoricamente vem para poupar tempo e espaço. Escrevem assim: “Por vc eu faço qq coisa, kkkkkk” E quem lê entende intuitivamente esse tipo de abreviação.

Falei abreviação, mas, mais uma vez, a lógica não predomina. Eles escrevem “kasa”, “koisa”, o que não abrevia coisa alguma. Infiro eu que o uso do K, nesses casos, vem de ser ele um substituto sintético para o “qu”, em “kero”, “kem”, etc. E por contaminação acaba virando hábito e se espalhando para onde não é preciso. Quem usa email ou frequenta blogs se acostuma a entender que “tb”, quer dizer “também”, “pq” quer dizer “porque”, etc. (assim como nós, senhores sóbrios e circunspectos, sabemos que “etc” quer dizer “et coetera”).

O canal Telecine da Net inventou agora um recurso que acho irritante: filmes legendados nesse estilo. Imagino que seja para “atrair o público jovem”. É uma dessas idéias pseudo-brilhantes que executivos de empresa têm, quando estão por trás da escrivaninha, olhando a praia do alto de seu trigésimo andar. E na Nova Zelândia a NZQA (New Zealand Qualification Authority) concordou em considerar correto o uso dessa grafia em trabalhos escolares, “desde que conduza ao entendimento claro do que está sendo expresso”. Está dando a maior celeuma, porque tem educador que não se conforma. Afinal, o que é certo: Aceitar uma forma de expressão que apenas substitui uma grafia por uma forma sintética dela, ou exigir que os jovens escrevam igual a todo mundo?

Os próprios blogueiros ficam desconfiados diante de tamanho liberalismo. Um tal de Phil Stevens escreveu em seu blog: “NZQA, u must b jokin, or r u smoking sumthug?” (em bom português, “6 tão brincando, ou 6 tão fumando qq koisa?”). E de fato, parece o gesto de desespero do pai ou da mãe que desiste e exclama: “Tá bom, tá bom, coloca esse diabo desse piercing, mas pára de me encher!” Sabe que perdeu, aí recua e entrega os pontos.

Eu acho que qualquer novo processo vale, se vier para enriquecer a língua, não para empobrecê-la. Para nos dar um meio de expressão a mais, e não para cancelar os anteriores. Para estimular nossa inteligência, e não nossa preguiça. Gosto de gíria, gosto de jargões profissionais, gosto de neologismos e palavras inventadas, gosto de escrever “vc”, “tb”, e tudo o mais. Mas “sou da tribo e conheço os cabôcos”. Se liberar, essa galera preguiçosa e mimada de hoje vai regredir ao Uga-Uga, linguagem primordial em que estas quatro sílabas servem para exprimir todo o vocabulário dos Lusíadas.

1151) O anel de Moebius (21.11.2006)




O anel de Moebius é uma faixa de material maleável (papel, pano, plástico flexível, etc.) que ganha curiosas propriedades quando é cortada e colada de um modo específico. 

Prepare uma faixa assim que tenha mais ou menos o formato de uma régua, ou seja, uns 30 centímetros de comprimento por 2 ou 3 de altura. Segure a extremidade A, e torça a faixa no sentido do comprimento, fazendo com que ela dê uma meia-volta sobre si mesma; e em seguida cola as duas extremidades. 

Observe que, como a fita foi torcida, no momento de ser colada à outra ponta o que era a quina superior vai ficar colada à quina inferior, e vice-versa. Isto é um Anel (ou Faixa) de Moebius. 

O nome é uma homenagem ao matemático que soube entender as implicações dessa idéia, porque para mim é óbvio que milhares de pessoas já tinham feito isso por mera distração, sem perceber o que tinham criado. Moebius percebeu que tinha criado uma superfície ao mesmo tempo uni- e bi-dimensional. 

Quando damos aquela “torcidazinha” na faixa e colamos as duas pontas fazemos que que os dois lados, ou duas faces da superfície se tornem uma só. Se começarmos a colorir um dos lados, daí a pouco entraremos colorindo pelo outro. Se um besouro começar a caminhar numa das faces, daí a pouco estará caminhando pela face oposta. 

Há uma gravura de M. C. Escher, “Formigas”, que é uma variação desta idéia. Veja no Google Imagens: “escher ants”. 

Para além das suas propriedades matemáticas, o Anel de Moebius fornece uma interessante metáfora visual para um certo tipo de literatura fantástica. Chamemos à área em que a faixa é torcida sobre si mesma A Torção; e chamemos ao ponto onde as extremidades são coladas A Juntura. 

Numerosas histórias fantásticas apresentam equivalentes a estas duas propriedades topológicas. (Topologia é a parte da Geometria que estuda as relações e propriedades dos espaços e das superfícies) Em muitas narrativas fantásticas a história começa de uma maneira aparentemente banal e cotidiana, e vai progredindo na direção do fantástico de um modo tão sutil que o leitor não percebe; ou então o leitor percebe (porque não é bobo, e sabe que está lendo uma história fantástica) mas os personagens não. Eles pensam que tudo continua normal, só tem algumas coisas que não estão bem explicadas, e aí de repente... Bang! 

Há um choque, uma crise, uma revelação, um clímax qualquer em que os personagens percebem que algo impossível aconteceu. Este clímax equivale à Juntura num Anel de Moebius, e só quando ele é atingido o personagem (ou o leitor) percebe ter havido uma Torção. 

Um clichê do fantástico é quando o sujeito tem um sonho e ao acordar percebe que está segurando um objeto com que sonhara, ou percebe que seu corpo traz uma marca física produzida durante o sonho. Nesse momento, dá-se a Juntura, o contato entre o possível e o impossível, entre duas superfícies que não podiam coexistir num mesmo plano, que é uma das marcas do Fantástico.



(M. C. Escher, "Formigas")




1150) São muitas emoções (19.11.2006)



Dizem os estrategistas da cultura de massas que na TV não se deve falar de idéias, e sim de emoções. Não pergunte o que a pessoa pensou quando fez o gol, ganhou o prêmio, ou teve o bebê. O entrevistado vai achar que se espera dele uma grande frase, uma síntese do significado daquele momento, e vai embatucar. E se dissser uma grande frase o público não vai entender, porque é burro. (A burrice do público é o Primeiro Postulado da Geometria Televisiva.) Melhor perguntar: “Qual foi a sua emoção, etc., etc.” Isto, qualquer idiota responde, e qualquer público entende a resposta, até porque na maioria dos casos ele vai na linha do “Ah, foi uma emoção muito forte, eu nem tenho palavras para descrever...”

Talvez seja porque a maioria das pessoas vive uma vida contida, previsível, sufocada. A maioria das emoções fortes que experimenta é diante da TV ou na sala de cinema. E tais emoções são uma versão “diet” do estado alterado de consciência produzido pelas drogas. É uma expansão ou intensificação momentânea da mente, um novo olhar sobre a realidade, uma sensação mais forte de estar vivo, de existir. Tudo isto é efeito de substâncias jogadas na corrente sanguínea por algumas glândulas de secreção interna. Desculpem a descrição meio rude, mas o que diabo é emoção, se não for isto?

Pode ser também porque algumas emoções são domesticáveis, e estabelecemos com elas uma convivência sob controle. Basta ver homens e mulheres numa locadora, escolhendo DVDs. Homens pegam filme de ação e violência, filme de terror, filme de aventura. Mulheres pegam filmes de amor ou filmes de relações familiares. Cada um cultiva o terreno emocional onde sabe que será convocado diariamente a atuar, onde seu desempenho precisa estar à altura. Precisam conhecer extensos cardápios de situações, dissecá-las, evitar surpresas. Ao agir assim, o que o indivíduo busca não é a emoção rara ou exótica, não é a ampliação de repertório. Ele(ela) está buscando a reiteração de estímulos já codificados, a confirmação de expectativas, a busca de nuances e sutilezas num universo de sensações já cartografadas. Tanto o brucutu que vê filme de Chuck Norris quanto a balzaqueana solteira que assiste Sex and the City estão em pleno Curso de Doutorado em suas respectivas áreas.

Repórteres são instruídos a perguntar sempre sobre as emoções. Comerciais de TV apelam mais a elas do que às retinas. Qualquer chamada de programa anuncia: “E não percam amanhã à noite as emoções do programa tal e tal”. A TV sabe que usar palavras como “mente”, “idéia”, “pensamento”, é o mesmo que mostrar cruz a vampiro ou falar de corda em casa de enforcado. As pessoas não vêem TV para pensar. Vêem pelo inegável prazer de acoplar sua mente a um discurso vívido e envolvente, que nunca se detém, e que as faz girar num carrossel mental durante algumas horas, em que não precisam fazer esforço algum além do de experimentar as emoções que lhes são impostas.