sábado, 31 de março de 2012
2832) Proibido dinossauro (31.3.2012)
Como se sabe, hoje existe uma batalha cerrada sobre a criação do mundo e da humanidade.
De um lado, estão os Evolucionistas, os que, com Darwin e a ciência, acham que o Homem é uma espécie animal como as outras, que evoluiu através de milhões de anos. (A fórmula popular “o homem veio do macaco” é uma simplificação inexata e grosseira do que Darwin afirmou.)
Do outro lado, estão os Criacionistas, para os quais Deus criou o mundo e a humanidade já prontos, há poucos milhares de anos. Para estes, as provas geológicas, astronômicas e físicas de que a Terra é muito mais antiga são falsificações ou equívocos.
Acontece que nos EUA, que já foi o país da liberdade de expressão, está cada vez mais difícil ir de encontro aos Criacionistas. A CBS de Nova York informou (http://cbsloc.al/GTdyzT) que nas provas do Departamento de Educação da cidade estão sendo proibidas palavras que possam incomodar a sensibilidade de estudantes de determinadas crenças.
“Halloween” não pode ser mencionado porque sugere paganismo; “dinossauro” também está proibido porque lembra a Teoria da Evolução, e os partidários do Criacionismo podem se sentir ofendidos; “aniversário” (“birthday”) também está proibido, porque as Testemunhas de Jeová não comemoram aniversários e também poderiam se sentir desconfortáveis vendo essa palavra escrita numa prova.
Tem mais. Outras palavras cujo banimento nos exames públicos está sendo estudado: álcool, armas nucleares, câncer, desemprego, divórcio, parapsicologia, pobreza, pornografia, religião, sexo, terrorismo...
A lei não escrita que rege essas proibições é: coisas desagradáveis não devem ser ditas em voz alta, e principalmente não devem ser lembradas num exame público. Os argumentos contra essas palavras são cheios de atitudes defensivas, “não-me-toques”. Elas podem desagradar os estudantes, fazer com que se sintam incomodados, desconfortáveis, ofendidos. Parece haver da parte dessas autoridades um medo de ofender pessoas que são muito delicadas, têm sentimentos muito frágeis, precisam ser protegidas...
Quer saber de uma coisa? Não é bem assim não.
O que as autoridades não querem é pisar no rabo do leão, catucar a onça com vara curta. Sabem que a cada ano avoluma-se uma Presença Ameaçadora no país, uma vasta comunidade de criaturas sorridentes e implacáveis capazes de destruir quem quer que seja em nome de fazer-lhes o Bem.
Destruirão opiniões, pontos de vista, idéias; destruirão tudo que não reze pelos seus mandamentos. Os norte-americanos laicos vivem numa casa tomada. Convém pisar de leve, falar sussurrando, omitir as palavras tabus que fazem a Naja erguer a cabeça e abrir os olhos.
sexta-feira, 30 de março de 2012
2831) Hedy Lamarr (30.3.2012)
Me lembro do nome dessa atriz austríaca porque era uma das preferidas de minha mãe. Ouvi-a muitas vezes falar em “édi-lamár” antes mesmo de ver esse nome escrito.
O filme que a levou para Hollywood foi Êxtase (1933), um filme tcheco em que aparecia nua e simulava um orgasmo. Nos EUA, por pouco não estrelou Casablanca. Seu grande sucesso foi Sansão e Dalila (1949), ao lado de Victor Mature. Largou o cinema cedo, porque não suportava Hollywood; era uma “atriz difícil”. Morreu em 2000, aos 86 anos.
A julgar pelas fotos da época, era linda. Tinha um rosto que era uma mistura de Vivien Leigh e Ava Gardner. (Que coisa injusta, e inútil, é comparar os rostos de mulheres bonitas.)
Ela aparece hoje nesta coluna por outros motivos. Ainda na Áustria, nos anos 1930, foi casada com um poderoso industrial simpatizante do nazismo, em cuja mansão costumavam se reunir altos oficiais militares, discutindo tecnologia e armamentos. Falavam livremente na frente dela, que aos seus olhos era apenas uma esposinha atriz, do tipo bonita e burra. Não era. Era inteligente e tinha uma cabeça engenheira.
Quando largou o marido e foi para Hollywood, ficou amiga do compositor e roteirista George Antheil, que morou em Paris e era amigo de Man Ray, Stravinsky e Ezra Pound.
Em 1940 os dois começaram a conversar sobre a guerra de submarinos que afundava os navios aliados, e começaram a trabalhar juntos num projeto de controle de torpedos pelo rádio. Hedy procurava criar um comando de rádio que mudasse de frequências, e Antheil sugeriu usar uma fita perfurada com as das pianolas mecânicas.
Nesta página (http://bit.ly/sotDzn), vê-se uma cópia da patente requerida pelos dois, com data de 1942. (Um sistema semelhante é usado hoje nos celulares, para evitar interferência.)
Em 1997, a Electronic Frontier Foundation concedeu-lhe (e, postumamente, a Antheil) um prêmio pelo desenvolvimento pioneiro dessa tecnologia, chamada de Salto de Frequência ou FHSS (Frequency Hopping Spread Spectrum).
Antheil escreveu sobre ela: “Hedy é uma ótima garota, mas meio maluca, que além de ser muito bonita passa a maior parte do tempo livre inventando coisas. Ela acabou de inventar um novo tipo de ‘soda pop’, que está patenteando, imagine só”.
O engenheiro Nino Amarena, que a entrevistou em 1997, disse: “Nunca achei que estava conversando com uma estrela de cinema, mas com uma inventora, uma colega. Quando duas mentes afins falam sobre tecnologia, desaparece a idade, o sexo, a experiência de cada um”. Todos dizem que a beleza de Hedy foi uma espécie de maldição que a jogou num ambiente que ela detestava, o “star system” dos estúdios de cinema.
quinta-feira, 29 de março de 2012
2830) “Fellini: The Game” (29.3.2012)
A porta se abre. Você começa a ser assediado por produtores cobrando prazos, assistentes de direção em busca de tarefas, atores e atrizes à espera da hora do teste, jornalistas fazendo perguntas equivocadas, e todos insistindo que devem começar a rodar o filme o mais depressa possível, mas que ainda não têm o roteiro.
Suas tentativas de fazer um filme serão, daí em diante, “O Jogo”. Você tem vários roteiros prontos para filmar: conquistas românticas e duelos de espadas em Casanova, prodígios, combates e superpoderes em Satyricon, nostalgia provinciana em Os Boas Vidas, delírios do cotidiano em Julieta dos Espíritos...
Fellini: The Game foi ironizado por parte da crítica, ao ser lançado em 2025, como um “Windows Movie Maker para velhinhos”. Errado. Cada título da obra inteira de Fellini está aqui em estado potencial, esperando para ser refeito à maneira do jogador, e sabendo que ninguém conseguirá, mesmo que tente, refilmar o que Fellini filmou. (Assim como o Pierre Menard, de Jorge Luís Borges, dificilmente conseguiria reescrever o Dom Quixote, como pretendia.)
Tomando como ponto de partida a indecisão criativa do diretor Guido em Oito e Meio, o jogo se transforma na possibilidade de montar 17 quebra-cabeças diferentes, 17 filmes que, de acordo com a inclinação do jogador podem ser minuciosamente reconstituídos ou completamente alterados do começo ao fim.
É um jogo para quem sente prazer em dirigir uma equipe de cinema, e de fato é emocionante quando, depois de horas explicando tudo e ensaiando, o diretor consegue reconstituir na tela uma versão autêntica da cena do navio em Amarcord ou a melodia das taças de cristal em E la nave va, ou a festa de carnaval em Os Boas Vidas.
E é ao mesmo tempo um jogo de personagens femininas de rara complexidade em busca do amor (Cabiria), da paz de espírito (Giulieta dos Espíritos), da sobrevivência num mundo bruto e mouco (Gelsomina de A Estrada) ou da dominação mundial pura e simples (Cidade das Mulheres). Poucos jogos atuais têm feito tanto sucesso no segmento de mulheres de 20 a 45 anos.
Os videogames surgiram amparados no binômio ação-aventura, modelo que entrou em crise com o esvaziamento do militarismo. Nesta metade do século, a tendência à introspecção é irreversível. Os jogos estão se transformando cada vez mais em aventuras narrativas cujo inexorável realismo gráfico tem em contrapartida uma profundidade psicológica que o cinema do século 20 (hoje tão homenageado) pôde apenas aflorar. Cotação: 5 estrelas.
quarta-feira, 28 de março de 2012
2829) O neurônio numérico (28.3.2012)
Alguns saites consistem em intermináveis listas de coisas consideradas interessantes para algum tipo de platéia. Os assuntos variam, mas há um padrão sempre seguido nos títulos e na organização das matérias: “9 coisas que não se deve dizer a uma criança”; “10 truques fáceis para uma pele perfeita”; “12 atores de Hollywood que sofrem de acne”; “21 sinais de que você está numa relação emocionalmente abusiva”; “8 passos para escrever um romance”.
É o mesmo fenômeno que a gente observa na maioria das revistas que encontra nas bancas (principalmente, mas não com exclusividade, as revistas femininas): “140 modelos de blusas para este verão”; “99 truques de maquilagem”; “18 maneiras de prender seu namorado”; “85 tipos de sandália alta”; “253 arranjos de flores para sua sala”... E por aí vai.
Tenho uma teoria. Esses números não-redondos, aparentemente aleatórios, têm uma credibilidade (uma possibilidade de que sejam verdadeiros) maior do que se tudo se resumisse a uma série interminável de listas de dez ou de vinte. “Vinte modelos de toalhas de mesa” dá uma impressão mais vaga, menos específica, do que “Dezesseis modelos de toalhas de mesa”. O número quebrado parece verdadeiro, como se dissesse: “Olha, são só dezesseis mesmo, poderíamos ter inventado quatro só para fechar um número redondo, mas preferimos ser honestos e dizer somente o que é verdadeiro”.
Acho que temos um neurônio, ou uma família inteira deles, cuja função é registrar as referências numéricas. Ele nos ajuda a pensar, porque o número é um conceito claro, nítido. Dezesseis é diferente de quinze ou de dezessete. Ou é isto, ou é aquilo. O número nos dá segurança, certeza, a gente sente firmeza na informação, muito mais do que se lesse na capa de uma revista: “Vários arranjos para buquês de noivas. Numerosos conjuntos de mobília para a beira de sua piscina. Muitos truques de maquilagem para disfarçar olheiras. Uma porção de estampas bem coloridas para o verão que se aproxima”.
Algo na minha mente de redator considera essas frases chochas, vagas, imprecisas, e acha que não vão despertar confiança nas leitoras. Mas os neurônios numéricos dela darão logo um pulinho satisfeito quando lerem uma chamada tipo “31 receitas de doces sem açúcar” ou “14 filmes para assistir de mãos dadas”. O número é uma reiterada certeza neste mundo. Certos enunciados imprecisos, subjetivos, nos provocam insegurança, e por isto desconfiança. Ouvir falar em “muitos” ou “vários” é um pouco como olhar uma fotografia fora de foco. A isca do número passa uma idéia de informação concreta, de honestidade técnica, de segurança absoluta do que se está dizendo.
terça-feira, 27 de março de 2012
2828) Eu já matei um cara (27.3.2012)
Faz tantos anos e foi num lugar tão remoto que dá para contar agora e fazer de conta que não aconteceu. Eu estava viajando pelo Brasil, fazendo um trabalho. Em cada cidade me hospedava em casas de funcionários da empresa. Desconhecidos que recebiam em suas casas, por 2 ou 3 dias, um colega que vinha da matriz e tinha pouco tempo para transmitir uma porção de informações, reestruturar funções, coisas assim. À noite a gente encerrava pelas 9 horas e ia em algum lugar tomar cerveja, relaxar, jantar alguma coisa.
Numa cidade de cujo nome não quero lembrar, fiquei na casa de um cara que durante a noite trabalhava noutra coisa. Me deu a chave da casa e a do outro carro dele. Almoçávamos juntos, mas à noite ele ia no outro “bico” que fazia e eu saía sozinho. Na minha última noite lá, saí para dar um rolé, fui comer numa palhoça. Lá pelo fim da noite, houve uma confusão e uns caras brigaram, caíram por cima da minha mesa. Troquei uns sopapos e uns insultos com eles. Coisa de bêbo. Depois tudo serenou e os amigos os levaram embora. Finalizei meu uísque, paguei e saí. Tudo deserto. O carro estava distante, era um bairro cheio de matagais, poucas casas, o restaurante já apagando as luzes. Quando dei por mim, um dos caras da briga me atacou. Tinha voltado e estava me tocaiando. Rolamos agarrados, felizmente ele não estava armado, porque era maior do que eu. Dei-lhe uma gravata, e estava meio apavorado, puxei com muita força, senti um estalo no pescoço e o cara afrouxou.
Fiquei uma eternidade ali, num terreno baldio cheio de moitas, caído no chão e o corpo do cara esfriando, até que o larguei. O que fazer agora? Ninguém tinha visto nada. Vou chamar a polícia? Estragar minha carreira? E o que ia dizer a minha mulher? Que tinha matado um cara sem nem saber quem era? Esse terreno onde eu estava parecia os fundos de uma vacaria, havia uns estábulos, umas cocheiras. Tudo fechado. E havia um poço tampado. Arrastei o cara e o despejei lá embaixo, ouvi os trambolhões da queda e o baque, pelo menos uns dez metros. Pus de novo a tampa de madeira, pesada. Peguei o carro, voltei, entrei sem ninguém me ver, tomei um banho, escondi as roupas sujas no fundo da mala. No dia seguinte viajei. Passei dois anos num verdadeiro inferno, esperando a toda hora uma investigação vagarosa chegar até mim. Nunca mais botei os pés naquele Estado. Quando ouço às vezes o nome da cidade, na TV, sinto uma pontada no coração, até hoje. É fogo. Mais de trinta anos depois e de certa forma eu continuo acordado no fundo daquele poço. Faz tanto tempo e foi num lugar tão longe que dá para contar agora e fazer de conta que é um conto.
domingo, 25 de março de 2012
2827) O Princípio Peter (25.3.2012)
A Lei de Murphy diz que “o pão com manteiga sempre cai com a manteiga pra baixo”, ou, mais genericamente, que “se uma coisa tem alguma possibilidade de dar errado, dará; e se puder dar mais errado ainda, pode contar com isto”. Há muitas “leis” assim, informalmente criadas, e que guardam o nome dos seus criadores. E no meio delas fala-se muito num tal de “Princípio Peter”, que não é tão conhecido e precisa sempre ser explicado.
De tanto ouvir falar nele sem entendê-lo por completo fui consultar a mãe-dos-burros. (Se o pai-dos-burros é o dicionário, a mãe é a Wikipedia.) O “Peter Principle” foi formulado por um canadense chamado Laurence J. Peter e diz apenas: “Numa hierarquia, cada empregado tende a subir até alcançar o nível de sua incompetência”. O livro com o nome desse princípio foi lançado em 1969 e tornou-se um best-seller.
O que Peter afirma é simples. Quando um sujeito se destaca em seu trabalho ele é promovido, porque seus chefes veem suas qualidades e querem aproveitá-las num nível mais alto. Se ele se destaca de novo, torna a ser promovido e vai subindo. (“Promoção”, num trabalho sério, é um pouco como subir de nível num videogame: seu prêmio é ir recebendo incumbências cada vez mais difíceis.) Chega então um momento em que o sujeito começa a não corresponder, a não se desempenhar tão bem quanto fazia nas funções inferiores. Ele atingiu (nas palavras de Peter) seu nível de incompetência. E ali ele fica.
A sutileza é que na vida profissional há outros fatores envolvidos além da mera apreciação e avaliação da competência. Quando um sujeito passa por promoções sucessivas, ele vai acumulando tempo de serviço, respeito, admiração dos colegas, temos dos subalternos, força política. Se só contasse a qualidade do desempenho, ao atingir seu nível de incompetência ele seria rebaixado para o posto anterior, onde chegou a se destacar. Mas não é isso que acontece. O sujeito, que lutava para ser promovido, percebe que está meio perdidão e faz o possível agora para não ser rebaixado. E geralmente consegue. Há uma quantidade imensa, em qualquer empresa, de funcionários que estariam se saindo muito melhor num cargo inferior ao que efetivamente ocupam; mas para descobrir seu nível de incompetência foi preciso promovê-los para uma função de onde agora é difícil tirá-los.
Claro que todo mundo acha uma saída. Exércitos, bancos, multinacionais dão um jeito de “premiar” o cara com um cargo bem remunerado em Singapura ou Cabrobó. Num artigo na revista “Edge”, Nicholas G. Carr diz: “A viga mestra do sonho americano, o desejo de subir a escadaria do sucesso, tornou-se uma receita para a mediocridade em massa”.
sábado, 24 de março de 2012
2826) Primeira pessoa (24.3.2012)
(René Magritte, La Reproduction Interdite)
Alan Garner conta que passou por uma tremenda crise pessoal quando supervisionava a filmagem do seu romance The Owl Service. Todo dia de filmagem ele sofria tremores, suores frios, acessos de vômito. Foi a um terapeuta e narrou seu drama.
O terapeuta perguntou-lhe se o livro original estava escrito na terceira pessoa e no tempo passado, ou se era na primeira pessoa e no tempo presente. Garner disse que era na terceira, e no passado. O analista lembrou-lhe que o filme – qualquer filme – se passa no presente (a ação, mesmo quando em “flash back”, tem a imediaticidade de qualquer ação vivida). E que sendo um livro autobiográfico era insuportável para ele reviver, no presente, aquelas situações.
Não posso botar minha mão no fogo pelo diagnóstico, mas o relato de Garner, em Science Fiction at Large (1976), afirma: “Ele foi direto ao centro da minha dor, e me absolveu dela”.
Isto dá uma medida do quanto (para alguns autores, não para todos – é bom que fique bem claro) o ato de escrever envolve catarse, libertação, descarrego. Muita gente diz que escreve para poder lidar com seus “demônios” e “fantasmas”. Por que recorrem a essas imagens para exprimir o que acontece dentro de suas cabeças?
No caso desses autores (não de todos, insisto) existe algo incomodando, e escrever é uma maneira de ficar sabendo o que é e de dar-lhe um fim. Todo mundo conhece a metáfora do grão de areia na ostra; aquilo incomoda tanto que a ostra cobre o grão intruso de madrepérola, e de repente, voilà! O grão de areia virou uma obra de arte.
Voltando ao uso da primeira pessoa: quando o autor é jovem, inexperiente, ou descuidado, ou está escrevendo sob forte tensão, ou está mexendo com coisas que lhe são dolorosas, acontece muito que o “eu” que representa o personagem comece a ser contaminado pelo “eu” da pessoa que escreve.
Isto ocorre menos quando se está escrevendo na terceira pessoa, porque para transferir para outra pessoa um sentimento muito íntimo (“Fulano estava se sentindo assim porque...”) é necessário um mínimo de distanciamento, e isso funciona como um estalar de dedos que acorda o escritor, dizendo-lhe: “Êpa! É do personagem que você tem que estar falando, não de você!”.
Quando estamos usando o “eu”, contudo, deslizamos com muito mais facilidade para esse tipo de equívoco, escrevemos sem refletir, projetamos os pensamentos na página sem ficar checando, de instante em instante, se o personagem estaria mesmo dizendo/pensando/sentindo aquilo.
A pressão interna das coisas querendo ser ditas é tão fortes que elas se apossam do canal mais à mão, o trabalho literário, e escorrem para dentro da página.
sexta-feira, 23 de março de 2012
2825) Treze 1x1 Botafogo (23.3.2012)
Na disputa pela Copa do Brasil, o Treze jogou bem em Campina contra o Botafogo-RJ e conseguiu no último minuto o gol que tornou mais justo o placar. No Rio, 4ª.-feira passada, entrou para jogar no contra-ataque, fez um gol de pura sorte logo no início, e contou com a tradicional neurose botafoguense (“se não tiver sofrimento não é o Botafogo”, dizem meus amigos alvinegros) para segurar um jogo difícil. Só recuou pra valer quando ficou com 10.
O pênalti perdido por Léo Rocha no final, tentando imitar a “cavadinha” de Loco Abreu e se dando mal, desmoronou todo mundo. O goleiro Beto, que havia feito uns 5 milagres ao longo do jogo, defendeu dois pênaltis, e Léo Rocha teve a chance de empatar a disputa. Brincou. Quis fazer chinfra e entrar para a História; não bastava o gol, tinha que ser um gol para achincalhar o adversário. Perdeu. O mundo caiu em cima de sua cabeça.
Devemos puxar as orelhas do jogador, que cometeu uma imprudência desnecessária, mas não devemos crucificá-lo. Ele fez aquilo em nome da torcida. Se tivesse feito o gol e o Galo vencesse, todos (eu disse: todos) os torcedores e dirigentes trezeanos comemorariam aos berros em todas as mesas de bar, do Catolé ao Alto Branco: “Ganhamos do Fogão!!!! Lá deeeentro!!! E com cavadinha, pra desmoralizar Loco Abreu!!!”. Torcedor é assim, não é mesmo? Sou torcedor também, e conheço meu gado.
Ao torcedor não basta a vitória, é preciso desmoralizar o adversário, tripudiar sobre ele. Ainda mais se for um time do Rio, desses que ganham de nós há cinco gerações. O sofrimento acumulado é grande, e o desabafo precisa ser maior. Não basta fazer o gol, tem que escrachar. Quantos criticariam Léo Rocha, se a cavadinha dele virasse gol? Ele não está sendo condenado porque tentou, e sim porque tentou e não conseguiu.
Gostei das palavras serenas do goleiro Beto, o melhor em campo, após o jogo. O futebol ( o esporte em geral) é uma escola de vida, porque em nenhuma outra atividade as grandes vitórias e as grandes derrotas se sucedem com tanta rapidez. O atleta não deve se deixar contaminar pela visão do torcedor, que é paixão pura, puro desejo, desespero e euforia. Admiro a ousadia de Léo Rocha, como admirei a ousadia da cavadinha de Loco Abreu na Copa do Mundo. Mas na guerra julgamos um soldado pelas decisões que toma, e julgamos essas decisões pelos seus resultados. Na hora do pênalti, o atleta não pode correr para a bola pensando na torcida, na imprensa, na manchete, na comemoração. Perdemos os pênaltis quando na hora em que corremos para a bola pensamos em qualquer outra coisa que não seja FAZER O GOL.
quinta-feira, 22 de março de 2012
2824) Sou contra a Copa (22.3.2012)
(foto: Muhammed Muheisen)
Não sei se já falei a respeito aqui nesta coluna, mas sou contra a realização da Copa do Mundo no Brasil, nos termos atuais. Sou doido por futebol (pra gostar de futebol precisa ser meio doido). A primeira Copa que acompanhei foi a de 1962, pelo rádio, e desde então sou daqueles que em época de Copa param tudo. Eu adianto o trabalho o máximo que posso nos meses anteriores à Copa, para no dia poder assistir, sei lá, Polônia x Costa Rica às 8 da manhã, Croácia x Costa do Marfim ao meio-dia e Canadá x Irã às 4 da tarde. É bonito ver estilos de futebol tão diferentes testando-se uns aos outros. É bonito acompanhar craques anônimos que, vendo-se pela primeira vez diante de uma platéia de milhões, superam-se e fazem uma Copa inesquecível, viram heróis mesmo que seu time não seja campeão. A rapidez de uma Copa do Mundo, com jogos diários, comprime no espaço de poucas semanas as emoções de um campeonato inteiro. Um time apontado como virtual campeão da 2ª.feira desmorona e é eliminado na 5ª.
Tudo isto é para dizer que sempre sonhei ver uma Copa no Brasil, não para ir ao estádio, mas para que essa festa toda acontecesse fisicamente ao meu redor, como um Carnaval ou um São João. O que acontece é que a Copa mudou muito, tornou-se (nas mãos da FIFA, que em termos de passar-por-cima e faturar grana faz inveja a Eike Batista) um dos eventos mais lucrativos do mundo. Sou um crítico da Fifa (coloco-a numa prateleira próxima à da Vale e da Halliburton) no que diz respeito a transformar o futebol, um esporte para multidões, num esporte para ricos. Já falei aqui nesta coluna sobre o curioso espetáculo de muitas torcidas numa Copa. Não são torcedores, são turistas endinheirados. Gente que não sabe o que é um impedimento ou um chute de três dedos, mas que tem dinheiro para comprar os pacotes caríssimos da Copa – ou tem a sorte de trabalhar numa multinacional que distribui esses pacotes como prêmio para funcionários que se destacaram.
Por onde passa, a Fifa exige que os países atendam suas exigências, que às vezes resultam em efeitos positivos (hotelaria, transportes, segurança, comunicações), mas que deixam prejuízos onde a porta do cofre vive aberta.. O futebol da Alemanha tem como absorver os novos estádios que o país construiu para a Copa, mas os da África do Sul estão fechados, cobrando ingressos aos turistas que vão fotografá-los. O Brasil ironicamente, vai sofrer o mesmo. O futebol de vários Estados incluídos na Copa não tem como encher um estádio desses, a não ser numa decisão regional ou na vinda de um time de fora. O Brasil vai ter mais prejuízo do que benefícios, e é uma pena que seja assim.
quarta-feira, 21 de março de 2012
2823) Jonathan Carroll (21.3.2011)
Jonathan Carroll é um romancista nascido nos EUA e que mora em Viena há mais de 30 anos. Faz mais sucesso na Europa do que em seu país, e é um autor de romances fantásticos pouco convencionais, que não seguem um modelo previsível, e nos quais tudo (quase tudo) pode acontecer. Mesmo autores delirantes como Philip K. Dick ou Lucius Shepard têm uma certa lógica em seus processos, que depois de assimilada se torna previsível. Carroll não, ou talvez tenha, mas nos quatro romances que li ainda não deu para me prevenir por completo. É um dos poucos escritores de quem eu aceito fazer um animal falar.
Diz ele que não sabe até agora quem é o seu público: “Por exemplo: na Polônia, onde vendo uma porção de livros, todos os meus leitores são mulheres entre 20 e 30 anos; na França, são aqueles acadêmicos esnobes; na Alemanha, são punks”. Estou lendo um conjunto de seus romances chamado “O Sexteto das Preces Atendidas”, seis livros que contam histórias meio surrealistas ocorridas com um grupo de pessoas que se conhecem entre si. Cada livro aborda a vida de uma delas e as demais aparecem como figurantes, ou são citadas de passagem. Bones of the Moon (1987) conta a história de um dona de casa, Cullen James, que tem sonhos que transcorrem noutro universo; Sleeping in Flame (1988) é a história de Walker Easterling, um ator que sonha com vidas passadas e tem um mistério na infância; A Child Across the Sky (1989) fala de dois cineastas amigos, Weber Gregston (intelectual e cult) e Philip Strayhorn (diretor de uma série de filmes B de terror); Outside the Dog Museum (1991) conta como o arquiteto Harry Radcliffe recebe a incumbência de construir um museu de cachorros no Oriente Médio. Ainda não li After Silence (1992) e From the Teeth of Angels (1993).
Esses livros têm como protagonistas artistas de classe média, alta, ou simplesmente ricos, no eixo EUA/Europa (Viena aparece em quase todos), cujas vidas são tomadas de assalto por fatos inexplicáveis e grotescos, que os forçam a difíceis decisões éticas. São freqüentes as alucinações, abortos, morte violenta de personagens simpáticos, crianças em perigo, crianças bizarras, coincidências estranhas, animais que falam, reconstituição moderna de mitos do passado... Carroll tem sido comparado aos autores do realismo mágico latino-americano ou ao pintor Magritte, o que é correto, mas não esgota suas surpresas. É um desses casos raros de um autor fantástico que cria suas próprias regras e suas próprias exceções – o que acaba incomodando de início o leitor, acostumado a ver livros que são façanhas acrobáticas diferentes com os mesmos malabares de sempre.
terça-feira, 20 de março de 2012
2822) O paredão sonoro (20.3.2012)
O poeta Jessier Quirino desencadeou um movimento, na cidade de Itabaiana, em defesa do carnaval pacífico da população, ameaçado por uma prática tenebrosa do mundo de hoje: a invasão das ruas, das praças e das praias por carros munidos de gigantescas e ensurdecedoras aparelhagens de som. Segundo Jessier, os responsáveis por essa calamidade estacionam os carros, colocam seus “paredões” um ao lado do outro e fazem uma disputa pra ver quem consegue tocar música num volume mais alto. Não é preciso dizer que qualquer bloco ou troça carnavalesca não consegue ser ouvida (ou ouvir a si própria) se estiver no raio de algumas centenas de metros desse apocalipse sonoro. Resultado: ninguém na cidade brinca mais carnaval, somente uma dúzia de donos de “paredões”, que se instalam no centro da cidade, e produzem um tsunami de decibéis de tal ordem que algumas casas de Itabaiana tiveram suas paredes rachadas.
Isso não passa do crescimento de uma tendência que há muitos anos vem incomodando a Paraíba. (Incomoda o Brasil inteiro, mas fiquemos por enquanto no nosso raio de escuta.) Qualquer sujeito que tem dinheiro para comprar um carro e enchê-lo dos altofalantes mais potentes do mercado considera tão importante essa façanha que a cidade inteira precisa tomar conhecimento dela. Em João Pessoa estou cansado de ver, no calçadão da praia, o carro estacionado no meio-fio, todas as portas abertas, a tampa da mala levantada, o som bradando num volume insuportável, e o cara sentado na mureta, tomando cerveja sozinho e olhando pro carro. Não existe imagem mais patética da solidão urbana.
Claro que não são somente os solitários. Tem os folgados que andam de turma. Encostam o carro num bar cheio de pessoas conversando, escancaram as portas do carro, ligam o som em todo volume. Sentam os 4 ou 5 numa mesa, pedem duas águas e um prato de tiragosto. Trazem do carro um isopor cheio de latas de cerveja bem geladas e ficam ali, bebendo e ouvindo Chico Buarque ou Mozart em todo volume. E ai de quem for pedir para que eles abaixem o volume. Na melhor das hipóteses, ouve um “Você sabe de quem eu sou filho?”. Na pior, leva uma camada de pau.
Aliás, não é Chico Buarque nem Mozart que esse pessoal escuta, mas, mesmo que fosse, a grosseria e a estupidez seriam as mesmas. A poluição sonora produzida por esse pessoal (e juntem a eles os insuportáveis carros-de-som de propaganda, que fazem o que querem) é o indício de uma época em que manda quem tem dinheiro e truculência. No século 20 temia-se que as hordas selvagens (os pobres da periferia) destruíssem a sociedade. No século 21, as hordas são de ricos; o mundo será destruído de cima para baixo.
domingo, 18 de março de 2012
2821) O inferno do plágio (18.3.2012)
Acusado de ter cortado e colado centenas de trechos de dezenas de autores para compor seu romance policial de estréia, Assassin of Secrets (sob o pseudônimo de Q. R. Markham), Quentin Rowan está sendo o plagiador mais em evidência na imprensa mundial. O plágio é uma coisa engraçada. De um modo geral é considerado (pelo menos nos ambientes que eu frequento) um crime vergonhoso, comparável moralmente à delação. E no entanto a maioria das pessoas já plagiou ou já foi plagiada em alguma medida, mesmo nas atividades mais discretas e nos contextos mais obscuros.
Rowan fez uma colcha-de-retalhos com parágrafos alheios, na ingênua esperança de que ninguém achasse familiar alguma dessas frases e fosse checar no livro original. (O que aconteceu, claro.) Faltou-lhe senso prático; fez o que fez numa espécie de delírio manso. Faltou-lhe inclusive um pouco de sofisticação intelectual, porque eu no lugar dele diria que estava fazendo “metaficção”, “mash-up narrativo”, “colagem pós-moderna”, qualquer coisa que me possibilitasse pelo menos bloquear a acusação de plágio e manter o livro nos balcões das lojas. Não seria o primeiro.
Jonathan Lethem, que publicou um artigo sobre plágio consistindo quase inteiramente de frases alheias (com créditos revelados no final), disse sobre Rowan: “Parece que ele fez algo muito mais trabalhoso do que simplesmente sentar e escrever um livro. Compor um texto a partir de outros não é um passatempo de preguiçoso. Falo como quem já fez isto: é uma imensa quantidade de trabalho”. Um dos autores copiados por Rowan, Charles McCarry, escreveu ao seu agente literário: “Hi, Jack. Pobre sujeito: tanto cortar-e-colar, e nenhum prazer de verdade. (...) Pode declarar também: Ele não me causou nenhum mal, e não tenho ressentimento contra ele”.
Pressionado pela obrigação de ser “geniozinho”, Rowan, ao invés de escrever um livro, preferiu o caminho mais tortuoso, mais cansativo, menos lógico, e mais arriscado. Ele diz: “Quando eu era garoto, tinha a sensação de uma expectativa a meu respeito. Era uma dessas coisas estranhas – eu pensava que meus pais ficariam decepcionados se eu me tornasse, por exemplo, um mero cirurgião ou um mero advogado”. A obrigação do sucesso intelectual pesa tanto quanto (ou mais do que) a obrigação do sucesso financeiro.
Rowan é símbolo e sintoma de uma época de bolhas financeiras, quebra do sistema de crédito bancário, etc., uma época em que o mundo ocidental falsificou um cheque e começou a gastar por conta, alucinadamente, porque sabia que a inexistência de fundos não tardaria a ser descoberta. No futuro será reconhecido como o autor emblemático do começo do século 21.
sábado, 17 de março de 2012
2820) Dickens Digital (17.3.2012)
(Charles Dickens no começo da carreira)
Livros de papel ou livros digitais? Até parece o debate na Idade Média sobre a quantidade de anjos que era capaz de dançar na ponta de uma agulha (agora são pixels e bytes). Há partidários eloquentes e extremados de ambos os lados da discussão. Num artigo no Guardian (http://bit.ly/yJfVK9), Henry Porter comenta algumas declarações recentes do romancista Jonathan Franzen, para quem o papel impresso dá uma sensação de continuidade e permanência, enquanto que a tela digital parece conter apenas um texto provisório, que pode vir a ser modificado a qualquer instante. E Porter faz uma comparação com Charles Dickens, cujos 200 anos de nascimento comemoram-se este ano.
Dickens foi, como muito escritores de sua época, um palestrante incansável. Viajava pelo mundo fazendo palestras, para auditórios repletos, porque seus livros eram best-sellers. Foi um desses escritores cujo sucesso popular deixa a crítica de pé atrás, como ocorreu com Balzac, Jorge Amado e tantos outros. Porter comenta: “Nos últimos anos de sua vida, Charles Dickens caiu na estrada para cumprir uma extenuante agenda de leituras públicas, que certamente apressaram sua morte. Na magnífica biografia que fez sobre o escritor, Claire Tomalin descreve como ele se arrastou de auditório em auditório, sozinho exceto pelos personagens que carregava na mente: alquebrado, mal alimentado e mortalmente exausto, mas com uma urgente necessidade de se comunicar com seus leitores. Essas leituras, precursoras das modernas festas literárias, nos lembram que o objetivo primordial de um romancista é entrar em contato com pessoas. (...) Se Dickens fosse vivo hoje, adivinhe quem estaria blogando, tuitando de vez em quando, montando websaites literários, exumando algumas obras antigas e recolocando-as em circulação sob a forma de e-books. Dickens detestava muitos dos seus editores, que ele considerava parasitas preguiçosos e desonestos; e ele ficaria entusiasmado com todas as oportunidades que temos hoje de fazer uma conexão direta entre autor e leitor”.
Escritores são indivíduos, cada um tem seu jeito, sua índole. Não é por terem a mesma profissão que têm a mesma personalidade. Alguns adoram falar em público e dar entrevistas; outros detestam. Alguns querem ter controle total e estrito sobre cada linha que escrevem, e querem controlar cada centavo que entra e que sai; outros querem semear livros à mancheia para atingir o maior número possível de pessoas, e se no meio do processo conseguirem o suficiente para viver com um pouco de conforto, ficarão felizes. Ao que tudo indica, estes últimos sobreviverão melhor, e serão mais felizes, nos tempos que estão chegando.
sexta-feira, 16 de março de 2012
2819) “Drive” (16.3.2012)
Este filme de Nicolas Winding Refn é à primeira vista apenas mais um thriller policial em que indivíduos truculentos praticam roubos e abatem a tiros quem se atravessar na sua frente. Muda somente o ponto de vista, porque agora a história não se concentra nos assaltantes, e sim no motorista. É um piloto de automóvel cheio de recursos e com muito sangue frio, que trabalha numa oficina e de vez em quando faz bico como dublê, em cenas de acidentes com carros. Ele não assalta: apenas se aluga aos assaltantes, com o compromisso de ficar à espera durante o golpe, e depois fugir com os bandidos, deixando-os em lugar seguro. Não pega em armas, não atira, não fica com a grana, a não ser o pagamento combinado pelos seus serviços.
Parece um thriller tradicional, misturando a espetacularidade das perseguições de carros e a trama intrincada, surpreendente, de todas as histórias que envolvem gangsters, uma rapaziada especialista em mentir, enganar, trair, dissimular. História com gangster está sempre sujeita a reviravoltas, porque eles nunca são o que fingem ser, e eles mesmos não sabem quando estão fingindo ou sendo.
Este filme, no entanto, tem menos a ver com o Passado (o thriller tradicional) do que com o Futuro, que são os videogames. Ele absorve de maneira muito eficaz a estética dos videogames, e, para além da estética, aquilo que podemos definir precariamente como o clima, o espírito dos games. Aquela sensação de quem está numa espécie de vácuo iluminado, onde coisas existem mas parecem apenas aparências coloridas e translúcidas, carentes de substância, o que não impede de nesse mundo haver também vida, amor e morte.
Ryan Gosling, que faz o “driver”, tem a inexpressividade de uma estátua da Ilha da Páscoa, e isso é proposital. Ele se comporta do início ao fim (num gestual certamente preparado com infinitos cuidados e ensaios) como um “carinha”, um “avatar” que é manipulado pelo jogador num game. A caminhada rítmica, um tanto mecânica. A violência que irrompe de repente, num frenesi de energia de que aquele corpo apático parecia incapaz. Os gestos entrecortados ou abruptos, o rosto parado enquanto os olhos giram nas órbitas até enquadrar o interlocutor; e então um sorriso deliberado que acontece apenas na boca, a resposta numa voz que parece gravação, e depois o sorriso se desfazendo em retrocesso até o rosto voltar à impassibilidade anterior. É assim que (pelas limitações da computação gráfica atual) os personagens de videogames agem; e é assim que o ator mimetiza esse tipo de ação. Para atrair, seduzir e convencer os espectadores para quem o videogame é o Presente, e o cinema o Passado.
quinta-feira, 15 de março de 2012
2818) O 39 e o 24 (15.3.2012)
Um dos cacoetes do pensamento mágico é fazer associações de idéias entre duas coisas não-relacionadas, e, a partir daí, agir como se elas fossem uma só. Vêm daí os dois grandes princípios da magia. Na magia por semelhança, coisas com formato igual ou aparência igual são a mesma coisa, por isso fazer um bonequinho de alguém e espetar-lhe agulhas vai provocar dores naquela pessoa, Na magia por contato, qualquer coisa que esteve em contato íntimo com alguém mantém esse contato mesmo depois de afastada. Simpatias amorosas, p. ex., exigem, para fazerem efeito, uma cueca, uma raspa de unha, um cacho de cabelo da pessoa.
Um princípio menor, mas interessante, é o que faz associações desse tipo com números, o que é um problema sério, porque número é um negócio danado pra reaparecer no caminho da gente. Em chinês, por exemplo, o som do número “quatro” parece com o da palavra “morte”, daí que os chineses fazem verdadeiras ginásticas para evitá-lo. Muitos prédios na China, por conta disto, não têm quarto andar – como muitos nos pragmáticos Estados Unidos não têm o 13o.
Fiquei sabendo de uma ótima que ocorre com o número 39 no Afeganistão. Numa cidade qualquer havia um cafetão cujos serviços prostitucionais eram contratados através de telefones onde sempre aparecia o número 39. O 39 ficou com péssima reputação; há movimentos para não comprar carros em cuja placa ele apareça, casas com essa numeração, etc. O número é desagradável; dá azar. Nos colégios, alunos a quem cabe esse número são vítima de ridicularização e bullying. Recentemente, um encontro político oficial teve que pular o 39 ao enumerar os comitês de discussão técnica. O líder religioso Ataula Fawzi protestou energicamente: “Se as autoridades que representam o povo afegão atuam desta maneira diante da comunidade internacional, o que se pode esperar de um taxista ou comerciante iletrado?"
Ridículo? Nem tanto, amigos. É a mesma sina do número 24 em nossa cultura, que devido ao jogo do bicho ficou associado ao veado, e este (por motivos que nunca entendi) ao homossexualismo. O tempo todo vejo gente evitando o assento 24, o quarto 24, a senha 24... Ter esse número como símbolo do homossexualismo é uma coisa arraigada em nossa mentalidade de rua. (Diga-se de passagem, só homem dá atenção a isso, nunca vi uma mulher prestar atenção nesse número.) Na minha infância, um dos momentos culminantes do rito-de-passagem do primeiro dia de aula era a primeira chamada, quando aguardávamos, com excitação crescente, a quem caberia o número maldito, e consequentemente a vaia, os impropérios, as casquinadas escarninhas, o opróbrio, o vitupério, a desmoralização.
quarta-feira, 14 de março de 2012
2817) A máquina e as peças (14.3.2012)
Vi recentemente A Invenção de Hugo Cabret, filme que me trouxe de volta à obra de Martin Scorsese, diretor que admiro mas cujos últimos filmes não me dei o trabalho de ver. Hugo Cabret é uma homenagem ao cinema antigo e ao artesanato mecânico. Pensando no modo como ele mostra o lado humano das máquinas, lembrei destas dicas deixadas por ele numa entrevista, para os jovens cineastas.
“1) Escolha uma profissão pela qual você tenha um amor eterno, e mergulhe totalmente na sua arte. 2) Dentro da sua área de interesse, torne-se um historiador das conquistas passadas dos indivíduos que ajudaram a fazer a indústria evoluir. 3) Use os estilos e os padrões dos que praticaram esse ofício no passado e no presente, para formar uma base sólida”.
Estes três princípios parecem uma descrição do filme Hugo Cabret: a luta dos personagens para consertar uma máquina que se quebrou, para encontrar uma informação que se perdeu, preservar coisas preciosas ameaçadas de extinção, descobrir a função de uma pequena peça aparentemente sem importância. Vemos também um filme que em plena sofisticação tecnológica do 3-D digital não deixa de nos lembrar que um recurso assim é tão ingênuo (e talvez seja tão duradouro) quanto o susto dos primeiros espectadores do cinema ao verem o trem se aproximando na tela. Scorsese faz paralelos explícitos das aventuras de Hugo com as acrobacias e “lições de abismo” de Harold Lloyd, com as aventuras ferroviárias de Buster Keaton.
Scorsese usou seu dinheiro e seu poder no cinema norte-americano para trabalhar pelo cinema antigo e pelo Cinema de Arte, independentemente de sua nacionalidade. Já vi várias entrevistas suas, por exemplo, colocando nas alturas um cineasta como Glauber Rocha – ou seja, alguém cujo cinema era praticamente uma destruição, uma vandalização do cinema de Scorsese. Sua empresa The Film Foundation (http://bit.ly/c8kc8h) tem restaurado dezenas de filmes que sofreram diferentes tipos de cortes, remontagem, deterioração, etc. Scorsese aconselha, em suas dicas: “Embora você deseje apaixonadamente criar uma obra que seja autenticamente sua, reconheça que você é apenas uma peça num grande quebra-cabeças. Sua obra é criada a partir dos que vieram antes de você. E as futuras gerações de criadores vão construir a obra deles em cima do legado que você lhes deixar. É como diz no filme o menino Hugo Cabret: “Eu percebi um dia que o universo é completo, não vem com peças sobressalentes. No universo não há nenhuma peça sobrando, tudo tem uma função. Isso me deu a certeza de que eu também tenho uma função no mundo, estou aqui para ser importante em algum aspecto”.
terça-feira, 13 de março de 2012
2816) Moebius (13.3.2012)
Faleceu dias atrás o grande Jean Giraud, conhecido como Moebius, um dos maiores quadrinhistas da minha memória afetiva. Conheci os desenhos de Moebius nas páginas da antiga revista Heavy Metal (que na França se chamava Métal Hurlant), e depois ele começou a pipocar no cinema, ou assinando séries próprias de histórias em quadrinhos. Meus preferidos são O Incal, com argumento de Alejandro Jodorowski, e A Garagem Hermética de Lewis Carnelian: space-operas que correspondem a um conceito proposto por Brian Aldiss, “barroco cinemascope” (“widescreen baroque”): tramas calidoscópicas em imagens gigantescas, fervilhantes de detalhes que vão do mais cientificamente plausível ao mais surrealistamente improvável. Paisagens urbanas captadas em alucinantes planos gerais repletos de personagens, gadgets, objetos, formas não-identificáveis, uma proliferação de detalhes cuja exuberância foi aprendida e expandida por outros desenhistas depois dele. Situações que mesclam folhetim e desenho animado, com personagens de romance-de-Legião-Estrangeira envolvidos em aventuras intergalácticas.
Moebius foi um desenhista capaz de começar uma história mostrando um astronauta numa paisagem bizarra... Está perdido... Aproxima-se um veículo... Descem três criaturas bizarras (cada uma diferente das outras)... Há um diálogo banal de motorista com caroneiro... Vão parar num bordel submarino ou num tiro-ao-alvo subterrâneo... E a história vai avançando meio sem propósito, meio sem enredo. Percebemos então (vi depoimentos confirmando isso) que Moebius desenhava a história quadro a quadro, sem saber o que iria acontecer no quadro seguinte. Isso dava a essas histórias um clima meio philip-k-dickiano, aquela sucessão de pequenos espantos diante do insólito, porque o próprio autor está se espantando com o que lhe vem à cabeça e à caneta.
Outra obra inesquecível é Les Maitres du Temps (1982), desenhado por ele e dirigido por René Laloux, adaptando um romance de FC de Stefan Wul chamado, na edição portuguesa da Coleção Argonauta, O Vagabundo das Estrelas, uma bela história de aventuras e de paradoxo temporal. Moebius tem aquele charme indefinível de grande parte da FC francesa, que sabe misturar, à imaginação delirante da pulp fiction, questões políticas, metafísicas ou filosóficas, coisas que assustam os norte-americanos mas os franceses tratam com a naturalidade de quem saboreia um croissant. Os franceses (Moebius é simbólico disto) nunca levaram muito a sério a colonização da galáxia (que os EUA até hoje creem ser possível). Para Moebius, de maneira exemplar, a FC estava mais próxima de André Breton do que de Wernher von Braun.
domingo, 11 de março de 2012
2815) Os Vendilhões do Tempo (11.3.2012)
Será sempre assim em todos os lugares, em todas as eras? As mais nobres aspirações da Filosofia e da Ciência deverão sempre acabar se curvando diante da cupidez humana, da cobiça burra? Será que a única utilidade de nossas funções mentais mais elevadas é a satisfação de instintos rudimentares, sem a qual não sobrevivemos, ou, pior, sem a qual não somos felizes?
Cruzo a Praça da Bandeira sem nada para fazer neste interminável domingo de sol. Desempregado, divorciado, sozinho, esnobado pelos falsos amigos, vivendo de dinheiro emprestado pela dona da pensão.
Na praça as cabines se enfileiram, e junto de cada uma um malandro de boné. Vou me aproximando e ouço o pregão.
-- Um dia no Dilúvio, segurança total, local com abrigo!
Vou passando.
-- Assassinato de Kennedy, chefia! Gramado, armazém ou coreto! Binóculo grátis!.
Penso nos quatro Prêmios Nobel sucessivos para as equipes de Weinsberg, Nakamura, De Sotto; na revolução que poderíamos ter realizado nas interpretações da História, num entendimento mais profundo das dinâmicas sociais, no contato tete-a-tete com homens e mulheres de um estofo moral e intelectual superior ao nosso.
Ao invés disso, o que criamos? Esse varejo insuportável de vans temporais, de táxis-bandalhas que não fazem outra coisa senão costurar o “continuum” com o ir e vir de analfabetos funcionais que pensam estar se tornando mais alguém pelo simples fato de poderem passar algumas horas na corte de Luís XIV (sem entender uma palavra do que se conversa lá, diga-se de passagem, e sem suportar a fedentina) ou de ver Carlos Gardel cantando ao vivo numa biboca de esquina, só para voltarem a Campina Grande e dizerem que ele “está cantando cada vez melhor”.
Foi para isto que demos um nó-moebius nas leis da natureza? Que sacrificamos a evolução natural do mundo civilizado, ficando assim como estamos hoje, congelados num eterno presente, marcando passo, deixando de ganhar centímetros de futuro simplesmente porque temos disponíveis milhões de léguas de um passado ininteligível para visitar?
Chego na ala do comércio estatal. O gordinho de camiseta anuncia:
-- Batalha dos Guararapes! Programa educacional! Traga a família inteira, inclusive a sogra, nunca se sabe o que pode acontecer!
Pra que serve meu PhD em Fractalismo Quântico? O mundo virou um camelódromo de turnês instantâneas, turismo dos sem-noção. Suspiro, paro na última cabine, uma mulher magra berra no megafone:
-- Duas horas no Baile da Ilha Fiscal! -- Pergunto quanto, ela diz: -- Dois trilhões e meio de brasilreais, tá na promoção!
Conto minhas moedas, estendo para ela:
-- Se eu não quiser voltar, não insista.
sábado, 10 de março de 2012
2814) Policiais e detetives (10.3.2012)
(Agatha Christie)
O romance policial evoluiu em dois troncos paralelos, que têm pouco a ver um com o outro. De um lado, a linha intelectual, onde o assassinato é um enigma que precisa ser resolvido pela inteligência de um detetive que, em geral, não faz mais do que olhar a cena do crime, conversar com os suspeitos, pensar bem muito e depois dizer quem foi (autor típico: Agatha Christie). Do outro lado, a linha ativista, em que o detetive interroga suspeitos de modo anticonvencional, vai pra cama com as suspeitas, dá porrada a torto e a direito, e no fim esbarra por acaso com o criminoso e o executa a tiros (autor típico: Dashiell Hammett).
Por isto há tantos mal entendidos quando alguém diz: “Você me sugere algum livro policial?”. É preciso saber do que o outro gosta, porque em ambos os subgêneros há coisa muito boa e muita coisa ruim. Por exemplo: hoje em dia a crítica não suporta nem as elucubrações intelectuais de S. S. Van Dine nem a truculência de Mickey Spillane.
Alguns autores corajosos tentem de vez em quando misturar os dois tipos de narrativa. Philip Marlowe, o detetive de Raymond Chandler, faz o tipo inteligente e durão. O que impede de classificá-lo totalmente na linha dos intelectuais é o fato de que as histórias de Chandler são mais realistas do que as de Agatha Christie, ou seja, são histórias desorganizadas, em que as pessoas praticam atos meio gratuitos, esquecem-se de algo, interferem sem querer nas ações dos outros, de modo que deduzir os crimes cometidos por elas envolve sempre uma margem enorme de pressuposições, de raciocínios incompletos e argumentos tipo “não sei por quê, mas só pode ter acontecido assim”.
Quanto mais intelectualizada uma história policial, ou seja, quanto mais amarradinha for a narrativa em termos de pistas, oportunidades, deduções e explicação do crime, menos realista ela é, porque as coisas raramente acontecem assim na vida real. Ler livros sobre crimes reais é sempre muito educativo para comparar com esse tipo de literatura, porque na vida real os crimes são mal-feitos, mal planejados, mal executados, feitos de improviso, no calor do momento e dos acessos de fúria. Por outro lado, os crimes planejados e executados com precisão requerem para isto uma mente patologicamente fria, intelectual. O romance policial intelectualista tem expandido nestas últimas décadas um subgênero importante: romances onde os detetives precisam reconstituir e entender a personalidade de um serial killer. O serial killer tornou-se o vilão preferencial dos nossos tempos. Uma figura composta, em partes iguais, de inteligência excepcional, egoísmo, sadismo, desprezo patológico pela vida humana.
sexta-feira, 9 de março de 2012
2813) A mão de tinta (9.3.2012)
(Ezra Pound, por Wyndham Lewis)
Existe hoje um frenesi de novidade, de originalidade, de ter que estar todo dia fazendo alguma coisa pela primeira vez. Não nego a importância da primeira vez. Tudo tem que nascer em algum ponto, tem que começar em algum ponto. Mas a segunda vez é tão importante quanto a primeira.
Lembram daquele lugar comum da crítica, “o segundo disco (filme, romance) é mais difícil de fazer do que o primeiro”? Se é mais difícil (e muitas vezes é mesmo) é porque essa segunda vez pede alguma coisa que a primeira não pôde dar, e não poderia.
Muitas coisas na cultura são como a pintura de uma casa, onde geralmente não basta dar uma mão de tinta, tem que dar depois a segunda, a terceira. À tinta não basta estar ali, precisa estar ali com mais peso, mais espessura, não só para não largar, como também para que sua luminosidade e sua cor sejam vistas com mais firmeza.
(Não sabemos, mas quando vemos uma parede bem pintada vemos essas várias camadas sobrepostas de cor, umas através das outras, porque a luz as atravessa e se reflete várias vezes simultâneas por entre elas.)
A segunda mão de tinta vem para salvar a primeira, a terceira vem para salvar a segunda. Como o tempo deixamos de perceber que são muitas, parecem uma só, e a intenção é esta.
De modo parecido, nas artes e nas culturas as coisas têm que ser ditas muitas vezes e por muitas vozes. Quanto mais pessoas aderem a uma nova forma de dizer, mais espessa e mais visível ela vai ficando, muito mais do que se tivesse se limitado à contribuição daquele criador solitário.
O que seria a Bossa Nova se tivesse tido apenas João Gilberto, o Cinema Novo se tivesse tido apenas Glauber Rocha, o baião se tivesse tido apenas Luiz Gonzaga? Cada artista que se deixou contaminar pela obra destes e criou sua própria obra seguindo seus passos deu uma mão de tinta a mais no que estava sendo feito.
É por isto que os chamados movimentos estéticos (Cubismo, Nouvelle Vague, Surrealismo, Folk-Rock, Expressionismo, etc.) se impõem com mais solidez na História. São compostos de um gesto inicial de um Inventor (no sentido que Ezra Pound usava: o que cria formas novas de fazer) e de gestos consecutivos de Mestres (o que não inventa, mas consegue fazer aquilo talvez até melhor do que o Inventor).
Quando a crítica se queixa de que “todo mundo agora está indo na onda de Fulano” pode até exprimir um descontentamento legítimo diante de obras medianas e pouco inventivas, mas não deve fechar a porta a essas novas contribuições. Quem vai ajudar a fixar na memória do tempo a obra de Fulano são aqueles que tentaram suplantar Fulano num momento em que todos estavam mergulhados num impulso único pelo novo.
quinta-feira, 8 de março de 2012
2812) Dickens e os piratas (8.3.2012)
Este ano, comemoram-se os 200 anos de nascimento de Charles Dickens, que talvez tenha sido, no auge da carreira, o escritor mais popular do mundo. Dickens escreveu folhetins que emocionavam milhões de leitores, descrevendo a vida das classes pobres inglesas. Seu estilo era vívido, coloquial, comunicativo, e ao mesmo tempo cheio de riquezas barrocas e de trechos meio delirantes. Sua imensa popularidade tem sido lembrada com relação a assuntos da literatura atual. Uma matéria de Simon Watts no saite da BBC (http://bbc.in/xIsGIL) lembra a primeira turnê de Dickens pelos EUA, em 1842, quando ele passou cerca de seis meses viajando pela América do Norte, fazendo conferências e leituras públicas de suas obras, sendo recebido em banquetes, etc.
Foi uma passagem turbulenta. Apesar dos bailes e das homenagens, Dickens decepcionou-se várias vezes com a grosseria dos norte-americanos, seus hábitos à mesa, seu comportamento em geral, como o hábito de mascar tabaco e cuspir em qualquer lugar. Um dos aspectos mais polêmicos da visita foi a tentativa do escritor de resolver os problemas de pirataria das suas obras. Naquele tempo, não existiam acordos editoriais internacionais, e os livros de Dickens vendiam milhares de exemplares nos EUA em edições piratas. Dickens tentava abordar o assunto em suas palestras, enfatizando a necessidade de uma lei de direitos autorais.
Dickens tentava proceder com tato. Afirmou que uma lei anti-pirataria ajudaria aos autores norte-americanos tanto quanto a ele próprio, e disse que “eu preferiria receber a admiração afetuosa dos meus semelhantes do que amealhar montanhas de ouro”. Dickens percebeu, pelas multidões que acorriam às suas conferências, e pela enorme cobertura dos jornais à sua visita, que se naquele país houvesse pagamento de direitos autorais pelos seus livros ele poderia facilmente duplicar o seu faturamento. Mas a reação era irritada. O “New York Courier and Enquirer”, o jornal mais popular da época, disse: “Estamos mortificados e entristecidos pelo fato dele ter praticado tamanha indelicadeza e impropriedade. Toda a imprensa do país estava pronta para fazer sua louvação, mas ele insistiu junto aos presentes para que não apenas fizessem honra ao seu gênio, mas também para que se preocupassem com sua bolsa”. O clima não foi desanuviado quando se tornaram bem claras, para os entrevistadores, as posições pró-abolicionistas de Dickens, para quem a escravidão negra era desumana e absurda, opinião que ele desenvolveu nos últimos capítulos de “American Notes for General Circulation” (1842), seu livro de comentários sobre a viagem.
quarta-feira, 7 de março de 2012
2811) O Poço do Dinheiro (7.3.2012)
Existem dois tipos de mistério, o mistério sobrenatural (que envolve espíritos, almas, etc.) e o mistério natural (que se reduz ao mundo da matéria). Este segundo tipo se divide em mistérios fantásticos e mistérios realistas. Os fantásticos incluem coisas que, se confirmada sua existência, mudariam nossa visão do mundo (sem envolver nada espiritual): o monstro do Lago Ness, a Atlântida, por exemplo. Os mistérios realistas envolvem apenas segredos, enigmas, etc., nada que mude nossa visão das ciências; são os mistérios históricos. Quem foi Kaspar Hauser? Quem era o Prisioneiro da Máscara de Ferro? Quem foi o Embuçado que avisou os inconfidentes mineiros que seu plano fôra descoberto? São fatos isolados, específicos, cuja solução em nada alteraria os paradigmas da Ciência humana.
Um dos mais interessantes é o que Rupert Furneaux chamou, em seu livro Grandes Mistérios da Humanidade, o Poço do Dinheiro. Em 1795, alguns rapazes descobriram em Oak Island (uma ilhota em Nova Escócia, na costa do Canadá) o que parecia ser uma escavação circular, como um poço soterrado. Iniciaram então uma “busca ao tesouro” que durou o resto das suas vidas, atravessou os séculos 19 e 20, e continua até hoje (veja o saite: http://www.oakislandtreasure.co.uk/). Toda a engenharia contemporânea não foi capaz de chegar ao fundo desse poço onde já foram encontrados vários tipos de artefatos (o que é de se esperar) e numerosas camadas protetoras de madeira ou de pedra indicando que quem enterrou algo ali cercou-se de enormes precauções para que aquilo não fosse descoberto. Talvez já se tenham gasto milhões de dólares na escavação desse poço, mas cada vez que se vai mais fundo ele é inundado pela água do mar (que fica próximo) por um “sofisticado sistema de túneis protetores”.
O que diabo pode haver ali? Talvez dinheiro dos piratas ou dos revolucionários do século 18. As teorias mais delirantes falam no Santo Graal, na Arca Perdida da Aliança, nos segredos dos Templários, e até (não estou brincando) na prova de que as peças de Shakespeare foram escritas por Sir Francis Bacon. A teoria mais cética diz que aquilo é apenas um sumidouro, uma terra alagadiça que desmorona sobre si mesma sempre que é escavada, e que engoliu artefatos dos antigos pioneiros ou de marujos que fizeram ali algum ponto de apoio provisório. O Poço do Dinheiro é um mistério natural (ninguém sugeriu explicações espirituais) e realista, porque o que quer venha a ser encontrado dificilmente mudará nossa visão do mundo. A menos que seja uma antecâmara para a cripta submarina em R’lyeh, onde Cthulhu prepara, sonhando, o seu retorno à Terra.
terça-feira, 6 de março de 2012
2810) A canção brechtiana (6.3.2012)
(Bertolt Brecht)
Em seu livro Crônicas, Vol. I, Bob Dylan conta o impacto que as canções de Bertolt Brecht tiveram sobre ele. Dylan chegou à obra de Brecht através de sua namorada Suze Rotolo (que aparece abraçada a ele na capa do álbum The freewheelin’ Bob Dylan), a qual era filha de pais esquerdistas e participava intensamente das agitações políticas da época.
Suze era desenhista e fazia parte da equipe de um espetáculo com as canções de Brecht e Kurt Weill. Dylan (na época com 21 ou 22 anos) começou a ver os ensaios, viu a montagem após a estréia, e ficou literalmente bouleversado com o tipo de letra de canção feito por Brecht – e que ele adotou para si. (Diz ele: “Woody Guthrie nunca tinha escrito canções como aquelas”.)
A grande iluminação (diz ele na parte final das Crônicas) foi ao ouvir “Pirate Jenny” (que, entre outras consequências, inspirou “Geni e o Zepelim” de Chico Buarque, em sua “Ópera do Malandro”). (Há mil versões da canção de Brecht no YouTube.)
A impressão que ele teve ao ouvir a música:
“Era uma canção surpreendente. Uma letra em doses concentradas. Ação do começo ao fim. Cada frase caía sobre você de uma altura de três metros, saía pela rua afora e em seguida vinha outra, como um soco no queixo. E retornava sempre aquele refrão fantasmagórico sobre o navio negro, refrão que vinha, cercava tudo e deixava a letra inteira retesada como uma pele de tambor. É uma canção má, cantada por uma pessoa cruel, e quando ela termina de cantar, não há mais uma palavra a dizer. Ficamos sem respiração”.
Dylan, um mero praticante, faz uma perfeita análise teórica do método de Brecht.
“Comecei a desmontar a canção, tentando entender o que a fazia funcionar, o que a tornava tão eficaz. Tudo nela era aparente e visível, mas a gente não percebia muito. Tudo estava pregado na parede, mas você não podia ver a soma total das partes, a não ser que esperasse até o fim. Era como Picasso pintando Guernica. (...) Era a forma, a associação livre dos versos, a estrutura, o desprezo pela previsível certeza dos padrões melódicos que lhe davam um sentido mais sério, uma aresta cortante. Tinha também um refrão perfeito para os versos. Comecei a perceber como poderia manipular e controlar essa estrutura e forma específicas, que eu percebi ser a chave para dar a ‘Pirate Jenny’ sua solidez e seu poder extraordinário”. (...) Comecei a brincar com esse formato, tentando dominá-lo – tentando escrever canções que transcendessem as informações dentro de si, os personagens e o enredo”.
Brecht ensinou a Dylan que uma canção é apenas o resumo de um filme inteiro (=de uma cena inteira de uma peça) que aconteceu na cabeça do compositor.
domingo, 4 de março de 2012
2809) ETs e presidentes (4.3.2012)
(Dwight Eisenhower e um alien grey)
Entre as mil teorias da conspiração que fervem de mundo afora uma das minhas preferidas é a de que a Humanidade já comprovou há muito tempo a existência de extraterrestres e a sua presença na Terra, mas os governos não divulgam essa informação por motivos variados. Ou por um motivo só: existem coisas que a plebe rude não precisa saber. Essa hipótese vai a reboque de casos como o de Roswell, do Triângulo das Bermudas, da Área 51 e outros. Nessas áreas teriam ocorrido os contatos iniciais entre os humanos e os ETs; dali em diante, tudo rolou sob sigilo absoluto. O governo dos EUA, os militares e as grandes empresas (possíveis beneficiárias da importação de know-how interplanetário) seriam os únicos a saber de tudo. Há muitos outros casos, é claro, mas esses são os mais famosos, inclusive porque a mídia dos EUA os considera um chamariz infalível para vender livros, tablóides e DVDs.
Foi divulgado agora um depoimento de Timothy Good, ex-assessor de Dwight Eisenhower, presidente dos EUA de 1953 a 1961. Segundo ele, “o ex-presidente teria se encontrado com seres de outro planeta, na base aérea do Novo México, em 1954, na presença de agentes do FBI”. O encontro teria sido marcado por meio do envio de mensagens telepáticas, como informa o jornal britânico Daily Mail. Eisenhower, um militar durão que teve um papel importante na II Guerra Mundial, o que o levou à presidência, era também um sujeito com um lado místico. Acreditava na vida em outros planetas, e isto contribuiu para que desse apoio ao programa aeroespacial do país. Segundo Good, o ex-presidente se encontrou com aliens de aparência nórdica e depois com outros que diziam pertencer ao grupo chamado "Alien Greys" (seres de corpo acinzentado e aparência ameaçadora). Para encobrir os encontros na época, o governo informou que o ex-presidente estava em uma viagem de férias em Palm Springs, na Califórnia. Segundo o ex-assessor, autoridades do mundo inteiro vêm há décadas mantendo contatos com extraterrestres.
O que alimenta essas crenças todas? Para mim é uma questão de lógica. Se eu próprio fosse presidente e meu país fizesse contato com extraterrestres, a última coisa que eu faria seria comunicar isto à população. Uma revelação desse porte não provocaria apenas um caos social, mas uma total desorientação de propósitos, uma perplexidade, uma celeuma, e isso iria desviar a população dos seus afazeres. É cruel dizer isto, mas a gente sempre acha que certas verdades só podem ser acessadas por uma elite de escolhidos, e a grande massa tem que se consolar com uma versão pacificatória e chapa-branca. Se eu penso assim, que dirá o presidente dos EUA.
sábado, 3 de março de 2012
2808) Dylan e Brecht (3.3.2012)
É um lugar comum da crítica comparar Bob Dylan a Dylan Thomas (por causa do nome) e a Rimbaud (por causa da “persona” rebelde e de alusões diretas feitas por BD).
Menos usual é compará-lo a Bertolt Brecht, mas para quem conhece a obra dos dois é uma comparação inevitável, porque Brecht tornou famosas as canções de suas peças cantando-as ao violão com voz rascante (dizia que tocava violão “pra pegar mulheres”), e há vários pontos de contato entre a poética de ambos.
As canções políticas de Brecht influenciaram o Dylan em sua fase de protesto 1962-64; e em todo o restante da obra dylaniana ecoa a lógica impiedosa, a imageria vívida, os paradoxos cruéis e o lirismo plebeu de BB: machista-charmoso, inflexível, rude, atento ao valor sonoro e visual das palavras, chegando ao abstrato e universal através de imagens concretas e inesquecíveis.
Nas canções políticas, para dar um só exemplo basta comparar as 9 implacáveis estrofes de “A Infanticida Marie Farrar” de Brecht:
“Marie Farrar, nascida em abril, menor
de idade, raquítica, sem sinais, órfã
até agora sem antecedentes, afirma
ter matado uma criança, da seguinte maneira:
diz que, com dois meses de gravidez
visitou uma mulher num subsolo
e recebeu, para abortar, uma injeção
que em nada adiantou, embora doesse.
Os senhores, por favor, não fiquem indignados.
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados. (...)”
(tradução de Paulo César de Souza)
...com as quatro de “The Lonesome Death of Hattie Carroll" (tradução minha):
“William Zanzinger matou a pobre Hattie Carroll
com uma bengala que floreava em seus dedos com anéis de diamante
numa reunião social num hotel de Boston
e a polícia veio, e tomou-lhe a arma
enquanto o levava sob custódia para a delegacia
e indiciou William Zanzinger por homicídio em primeiro grau;
mas vocês, que filosofam sobre a desgraça, e criticam todos os medos
afastem o lenço do rosto
porque ainda não é hora de chorar”.
A frieza jornalística do enunciado (transcrevi apenas a estrofe inicial de cada canção); o refrão repetitivo martelado sempre nas linhas finais, e a injustiça social clamorosa dos desfechos correm em paralelo, mostrando com clareza onde Dylan estava bebendo poesia aos 21 anos.
(O texto de Brecht: http://bit.ly/yTcrOO. O de Dylan: http://bit.ly/hYWVDV).
Esta tradição de canções crítico-jornalísticas foi mantida por Dylan, com ou sem conotações políticas ou de protesto, em toda sua carreira.
Talvez a mais famosa delas seja “Hurricane”, sobre o boxeador acusado injustamente de homicídio.
E caberia toda uma tese sobre o efeito de “distanciamento brechtiano” que ele consegue imprimir inclusive em suas canções de amor.
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