sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

5212) "Nouvelle Vague" (19.12.2025)


 
 
Este simpático e devotado filme de Richard Linklater procura reconstituir, ou mitologizar, a criação do filme Acossado (“A Bout de Souffle”, 1959), de Jean-Luc Godard, um dos desencadeadores da “nova onda” do cinema francês, não por acaso um dos meus movimentos cinematográficos preferidos.
 
Preferidos por quê? Primeiro, porque a Nouvelle Vague era novinha mesmo quando comecei a me interessar por ela, sete ou oito anos depois de Godard lançar este filme fundador e demolidor. 

Em Campina Grande, era difícil ter acesso a esses filmes. Eram distribuídos no Nordeste pela Franco-Brasileira, que tinha algum problema de contrato com as duas principais redes exibidoras da Paraíba (Luciano Wanderley, dos cinemas Capitólio/CG e Municipal/JP; e Cinemas Reunidos, dos cinemas Babilônia/CG e Plaza/JP). Às vezes, os filmes vinham. Outras vezes, tínhamos que pegar o ônibus, viajar 4 horas e ver os filmes no Recife. Era mais caro, mas era mais divertido.
 
Meus primeiros godards foram Masculino Feminino (1966) e Alphaville (1965), e talvez sejam (por isso mesmo) meus preferidos.
 
O próprio Acossado eu só vim assistir anos depois, quando morei na Bahia. Mas... e daí? Um dos traços revolucionários da Nouvelle Vague é ter sido um movimento onde os cineastas eram ex-críticos. Foi A Revolução dos Críticos (no caso, os que escreviam na parisiense Cahiers du Cinéma), que se transformaram em diretores e tomaram as rédeas do Poder.
 
Numa revolução assim, livros e artigos na imprensa são tão importantes quanto os filmes em si; e isto não nos faltava. Godard, Truffaut, Chabrol, Rivette, Resnais, eram os cineastas jovens em cujos textos, citados, comentados, transcritos, traduzidos, revelava-se também um cinema francês passado que para nós era tão inédito quanto o deles: o cinema de Jean Vigo, Jean Renoir, Robert Bresson...



 
Um livro que para mim foi crucial foi a coletânea Jean-Luc Godard, ed. Haroldo Barbosa (Rio: Gráfica Record Editora, 1968). São longas discussões sobre a obra já considerável do diretor – entre 1959 e 1968 ele dirigiu cerca de 15 longas-metragens e outros tantos filmes curtos ou episódios. 
 
Pouco importava se o leitor desconhecia os filmes. Os exemplos eram descritos com clareza e argumentados com veemência e lógica. A grande pergunta de Godard, a que sempre me seduziu, era: “Por que filmar este plano, e não outro?”. Por que filmar como todo mundo filmava?  A resposta padrão era: “Porque é assim que todo mundo faz.” E ele: “Então vou fazer diferente”. 
 
Curiosamente, é a mesma profissão-de-fé de Guimarães Rosa, numa carta famosa a sua tradutora nos EUA, tentando sossegá-la. 
 
No original, não há, praticamente, lugares-comuns. Tudo é atrevimento, estranhez, liberdade, colorido revolucionário. Todo automatismo de inércia, da escrita convencional, é rigorosamente evitado. Tudo pela poesia e por caminhos novos! Acabarão aceitando. 
(carta a Harriet de Onís, 3-4-1964)
 
Godard assinaria embaixo, e esta é uma das questões que ressurgem em cada cena de Nouvelle Vague. Todo mundo espera uma coisa, e Godard aparece com outra. O produtor se desespera, a estrela sente-se insegura, a maquiadora sente-se desvalorizada... 

O dia de filmagem acaba cedo, a equipe é dispensada depois do almoço, enquanto o diretor faz anotações em seus caderninhos. Quando vão usar o quarto de uma pessoa como locação, alguém começa a arrumar o quarto. Godard pergunta: “Se a gente fosse gravar os sons de uma floresta, começaria derrubando as árvores, espantando os pássaros, para conseguir um som sem interferência? E então? Deixa o quarto como está.” 



Isso vale para todos os filmes? Claro que não, mas essa revolução nouvellevagueana era justamente contra um sistema industrial de produção em que o que valia para um filme tinha que valer para todos. (Parecido com o que o cinema norte-americano tenta impor hoje em dia, principalmente em termos de receitas/fórmulas de argumento e roteiro, “jornada do herói”, etc.). 
 
Numa cena do filme, Godard vê a estrela Jean Seberg chegando de táxi para a filmagem. Ele diz: “Amanhã saia de casa mais cedo, e venha a pé até aqui.” “Para quê?” diz ela. 
 
É um diálogo que, na verdade, Godard travou com Marina Vlady nas filmagens de Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela (1967). O diretor explica que é para que ela ande nas calçadas cheias, espere o sinal abrir, examine as vitrines, veja as manchetes nas bancas de jornais, deixe-se embeber do momento presente, do dia de hoje, dos fatos reais... 
 
Quando chegar na locação e tiver que atuar, o seu personagem estará com a cabeça cheia dessas coisas. Estará com a “área de transferência” cheia de memórias recentes que a ajudarão a ser espontânea do jeito certo. 
 
Isto resolve todos os problemas? Não, mas resolve um problema específico de um diretor e de uma atriz em algum filme específico. 




Ocorre com o cinema, como em qualquer arte industrial, um processo de aprimoramento técnico, formação de equipes que dominam esse aprimoramento. Depois que é estabelecido um padrão alto de qualidade técnica, começa a exigência de conformidade com esse padrão para se poder trabalhar.  Estúdios fonográficos, de cinema, de TV, funcionam assim. 
 
Daí a pouco, qualquer vírgula que se afaste um milímetro desse padrão é condenada com veemência pelo defensores do padrão: técnicos de estúdio (defendendo seus empregos), o segundo escalão da equipe (devotos da Lei do Menor Esforço e Quanto Menos Decisões Melhor), os eternamente estressados produtores-executivos, etc. A arte torna-se engessada pela obrigação de usar todos os recursos que desenvolveu, e usá-los sempre da maneira prescrita no Manual. 
 
Daí que as grandes revoluções ocorram quando o padrão é rompido criativamente por uma feliz associação entre artistas jovens dispostos a recriar tudo, e técnicos maduros mas com sensibilidade suficiente para entender aquilo e dizer: “Dane-se o padrão, parece que tá rolando uma coisa nova aqui.” Foi mais ou menos o que o produtor George Martin e seus técnicos, juntamente com os Beatles, estavam fazendo na Inglaterra na época em que Godard filmava na França. 
 
Os defensores de um “know how” técnico, seja na música, no cinema, no teatro, não são fascistas nem mercenários, mas são muitas vezes mais conservadores do que quaisquer talibãs. Eles dedicaram a vida inteira à defesa de um território heroicamente conquistado, um estilo de cinema produzido em alto nível técnico. Não verão com bons olhos um grupo de rapazes ou moças de vinte e poucos anos anunciando: “Sai da frente, tio, vai mudar tudo!”. 
 
Nouvelle Vague mostra um desses momentos históricos especiais, e mostra com simpatia, uma simpatia misturada com gratidão que só me lembro de ter visto no filme Os Sonhadores (“The Dreamers”, 2003), de Bernardo Bertolucci. O carinho nostálgico por uma época que foi especial, sim, e que não se repetirá, porque os jovens daquela época conseguiram o que queriam: mudar o mundo. O mundo mudou, os problemas agora são outros, as revoluções de que precisamos são certamente outras, e nada nos assegura de que acontecerão. Nosso alívio é pensar que, pelo menos naquele momento da História, aconteceu. 



(o ator Guillaume Marbeck e o diretor Richard Linklater)