O Netflix está exibindo a série, em três episódios, 3 Toneladas, dirigida por Rodrigo Astiz,
roteirizada por Daniel Billio e produzida pela Mixer Films.
É uma série-documentário sobre o famoso assalto ao Banco
Central, de Fortaleza, em agosto de 2005. Considerado até hoje o maior furto de
banco do Brasil: foram cerca de 160 milhões de reais subtraídos ao longo de um
fim de semana (“três toneladas de dinheiro”, segundo a polícia).
Os ladrões alugaram uma casa a certa distância do Banco e
passaram meses cavando um túnel, que no final ficou com 75m de extensão. No
início da noite de uma sexta-feira, encerrado o expediente do Banco, eles quebraram
de baixo para cima o piso da caixa forte. e saíram pelo buraco. Passaram o
resto da noite de sexta e parte do sábado tirando dinheiro, colocando-o em
sacos, e transferindo-o de mão em mão ao longo do túnel, até a casa onde o
quartel-general da quadrilha estava instalado.
O documentário é muito bem escrito e editado, costurando
os depoimentos de policiais federais, policiais civis, jornalistas, bandidos
presos e outras pessoas que vão aos poucos fornecendo as peças do
quebra-cabeças, narrado com rapidez e clareza.
O resultado da investigação foi uma espécie de empate
técnico. A polícia identificou praticamente todos os participantes do furto e
prendeu quase todos eles; mais de 100 milhões de reais não puderam ser
recuperados. Foram rapidamente gastos, “lavados” pelos assaltantes. Talvez uma
parte esteja enterrada por aí, à espera do dono.
O doc da Netflix me lembrou uma série de filmes de
“assalto engenhoso”, que acho mais interessantes do que os assaltos a mão
armada e com tiroteio, estilo Bonnie & Clyde. O assalto engenhoso seduz
pela inteligência dos planejadores, pelo suspense da execução e, em muitos
casos, pela esperteza dos investigadores que acabam botando a mão nos gatunos.
É também quase um clichê desse gênero de filme que o
assalto seja realizado com perfeição, mas a fruição final do dinheiro vá por
água abaixo, por obra do Acaso. É o que acontece em clássicos como Gangsters de Casaca (“Mélodie en
sous-sol”, 1963) de Henri Verneuil, Rififi
(1955) e Topkapi (1964) de Jules
Dassin, Sete Homens de Ouro (“Sette
uomini d’oro”, 1965) de Marco Vicario, e inúmeros outros.
Num artigo recente no saite Crime Reads a escritora Marion Deeds se pergunta por que razão ela
gosta tanto de livros/filmes de assaltos engenhosos. E responde: “É a pornografia da
competência (competency porn)”.
De fato, esses assaltos podem chegar a níveis barrocos de
complexidade, tanto na literatura quanto no cinema, onde afinal tudo acontece pela vontade
divina dos autores. Numa história escrita, pode-se planejar milimetricamente
cada ação e cada resultado, e mesmo uma interferência casual (uma batida de
carro, um passarinho intruso) só aconteceu por decisão autoral.
Um bom exemplo é a bem sucedida série de ficção espanhola
La Casa de Papel.
Diz
Marion Deeds (trad. BT):
“[Uma história de assalto]
envolve pessoas no máximo de suas capacidades e de seus talentos, ou pelo menos
pessoas que no passado demonstraram possuí-los, em circunstâncias que os
submetem a provas severas. Assaltos também satisfazem o nosso desejo por
demandas, por aventuras com um objetivo, visto que elas reproduzem com precisão
o mecanismo narrativo dessas demandas. Alguma coisa valiosa deve ser
conquistada, ou destruída. Um grupo de pessoas de diferentes origens soma suas
forças, enfrenta obstáculos, provavelmente têm que lidar com pelo menos uma
traição, e precisa empregar a fundo seus talentos para atingir o objetivo”.
É típico desses filmes que a narrativa assuma o ponto de
vista dos ladrões, com os quais acabamos simpatizando, torcendo por eles. Por
que?
Em primeiro lugar, pela “pornografia da competência” que
eles demonstram. Numa sociedade onde os especialistas, os recordistas, os
“melhores do ranking” são tão valorizados, temos prazer em ver as soluções
engenhosas adotadas pela quadrilha. Diante de cada obstáculo, cada imprevisto,
um deles vem lá de trás, arregaça as mangas e diz: “Deixa comigo”.
Em segundo lugar, suspense é suspense. E boa parte do
suspense dessas histórias se dá pelo fato de que na primeira parte do filme a
quadrilha planeja detalhadamente como será o golpe (e com isso informa o
espectador sobre o que esperar daí pra frente), e depois nos deparamos com
todas as surpresas e reviravoltas que a prática costuma aplicar em qualquer
teoria.
O filme Como possuir Lissú ("Gambit", 1966), de Ronald Neame, com Shirley MacLaine, faz uma divertida sátira desse processo. Nos primeiros 15 minutos vemos um roubo difícil sendo executado com espantosa competência. Há um corte... e percebemos que aquilo tudo era apenas o chefe do bando explicando como as coisas deveriam acontecer. O roubo de verdade vem em seguida... e é claro que sai tudo ao contrário do que foi planejado.
Em terceiro lugar, torcemos pelos bandidos porque o
dinheiro (jóias, etc.) geralmente pertence a bancos, empresas multinacionais,
governos... O público não se identifica com estas entidades invisíveis, e sim
com aquela meia dúzia de caras meio pobretões mas inteligentes. Torcemos muitas
vezes pelo underdog, o azarão, a
arraia miúda, aqueles assaltantes artesanais que se atrevem a desafiar
fortunas, exércitos, guardas, sistemas de alarme. Queremos que o time pequeno-e-esforçado ganhe do time grande-e -arrogante.
No 3 Toneladas - Assalto ao Banco
Central, os próprios policiais e jornalistas destacam a inteligência e a
habilidade de alguns membros da quadrilha, observando que se dariam bem em
qualquer profissão honesta. A série tem o inevitável tom de “o crime não
compensa”, certamente para tranquilizar pais preocupados com seus filhos de 10
anos: “E se meu filho assistir isso e quiser roubar um Banco?!”.
No primeiro episódio da série, uma especialista em
assalto dá seu depoimento numa biblioteca, e a certa altura segura um livrinho
amarelo, Brecht – Vida e Obra.
Bertolt Brecht foi quem disse um dia: “O que é um assalto a um Banco, comparado
com um Banco?” Todos os filmes de
assalto se baseiam em premissas semelhantes. São “mistos quentes” que reúnem o
charme da transgressão e a pornografia da competência.