(...) Publico hoje este velho relato porque me agrada irremediavelmente sua linguagem livre, sua fábula sem moral-da-história, sua melancolia portenha, e também porque o pesadelo de onde nasceu continua desperto e anda pelas ruas.
Porque eu tinha, nas gavetas, em cima das mesas e em outros cantos de Paris, montanhas de papeizinhos e cadernetas onde, principalmente nos cafés, tinha ido anotando coisas, impressões. (...) Em Paris avancei, juntando todos aqueles papeizinhos e movido pelo que havia neles, que jamais tinham sido escritos com a intenção de serem um romance. Repito que escrevi esses papeizinhos em diferentes cafés, em épocas diferentes. Entre um papelzinho e outro podem ter-se passado cinco ou seis anos.
(O Fascínio das Palavras, Julio Cortázar e Omar Prego, trad. Eric Nepomuceno, José Olympio, 1991)
É idêntico o modo de composição do diário de Andrés Fava,
que em termos de enredo é o antecessor mais imediato de Rayuela. Pode-se simplificar a questão dizendo que enquanto o autor
dividiu em dois livros autônomos a primeira narrativa (El Examen e o Diário), em
Rayuela ele incrustou o “diário de
reflexões” no corpo do próprio romance.
O diário de Fava traz reflexões sobre literatura:
Balzac – Martínes Estrada me faz lembrar em seu curso – trabalhava de catorze a dezoito horas por dia. Feliz dele, em que a suposta infelicidade do escritor-mártir (blablablá) aguentava semelhantes estirões. Tenho certeza absoluta de que ele se sentia felicíssimo escrevendo assim; que essa era a finalidade de sua vida, e que as saídas de casa representavam para ele algo assim como trocar a água do aquário, preparar os olhos e o coração para ir até onde Rastignac o esperava com impaciência. (p. 84)
Ter cuidado com o realismo ao escrever. Evitar a fauna do zoológico, convocar unicórnios e tritões, dando-lhes realidade. (p. 63)
A poesia quer ser metafísica, e às vezes consegue sê-lo com Lamartine e Valéry. A poesia inglesa é metafísica sem querer ser, surge no plano metafísico, que é seu céu e sua graça. Onde Mallarmé chega com seu último e extenuante bater de asas, Shelley já está naturalmente plantado como uma copa de árvore. (p. 37)
Vagus quidam, como Petrarca dizia de um discípulo. Leio Suetônio, Tácito, Ellery Queen... (p. 63)
Já a partir dos 16 ou 17 anos eu era um onívoro capaz de devorar os Ensaios de Montaigne, alternados com As aventuras de Buffalo Bill, Sexton Blake, Edgar Wallace, os romances policiais da época (fui um grande leitor de romances policiais) e os Diálogos de Platão. (O Fascínio das Palavras, p. 37)
Andrés Fava também não deixa de comentar obras de ficção científica:
Lido, já meio fora de hora, The Time Machine. Oh, pequena Weena, animalzinho humano, única coisa viva nessa história insuportável. Escrever musiquinhas, brincadeiras e cantigas de roda para Weena. Sentir que a levamos nos braços quando, sozinhos, atravessamos titubeando um aposento às escuras. (p. 22)
O autobiografismo criativo faz com que Cortázar atribua a Andrés Fava uma idéia que ele próprio iria desenvolver mais tarde no famoso conto “Continuidade dos Parques” (em Final do Jogo, 1964). Diz Andrés:
Não pude nunca escrever bem a história que mostraria essa imbricação da literatura e do objetivo, e ao mesmo tempo o voluntário afastamento daquela, que no fundo odeia o realismo. A idéia é a de um homem sentado em um sofá verde junto de um janelão dando para um parque, lendo um romance em que uma mulher encontra furtivamente o amante, que concorda quanto à necessidade de assassinar o marido para ficarem livres, e sobe a escada que a conduzirá ao quarto onde o marido, sentado em um sofá verde, ao lado de um janelão, lê um romance... (p. 107-108)