(capa: Lee Rosenblatt)
Estive em São Paulo num bate-e-volta para uma palestra no
Congresso SINTRA 2024, o encontro do sindicato de tradutores e intérpretes do
Brasil. Graças ao convite de Isabel Vidigal e Valéria Gauz, tive a chance de
falar para uma platéia atenta e generosa mas, mais do que isto, acompanhei
palestras e debates sobre as armadilhas e as loterias da tradução literária
(com Marcelo Backes), o trabalho dos intérpretes simultâneos, a atuação dos
intérpretes de línguas indígenas na Amazônia (num valioso depoimento de Jaime
Mayuruna)... Para não falar nos encontros e reencontros com amigos e colegas de
várias partes do Brasil.
Um tema percorreu de ponta a ponta as palestras no palco
e as confabulações durante os coffee
breaks: a tradução digital, através das variadas máquinas de Inteligência
Artificial disponíveis. Foi uma questão vividamente presente nas palestras de
Danilo Nogueira, Dirce Waltrick do Amarante e Sandra Garcia.
(Saul Steinberg)
A questão mais recorrente é: a tradução por I. A. vai
substituir a tradução humana? Vai nos desempregar?
Lembro muito bem o arrepio de horror que na década de
1980 percorreu a espinha de todos os bateristas brasileiros quando começaram a aparecer
em nossos palcos as primeiras baterias eletrônicas.
Lembro das primeiras câmeras fotográficas digitais
transformando qualquer dona-de-casa ou qualquer adolescente num virtuose da
Agência Vogue, e causando um reboliço de protesto nos fotógrafos do
celulóide-e-papel.
E o mesmo furacão de ameaças percorreu de ponta a ponta o
acampamento dos ilustradores de pena, guache e nanquim diante do desembarque
das naves-mães alienígenas do Corel Draw com seus “18 milhões de cores” e do
Photoshop.
E aí recorro à advertência do decano Danilo Nogueira:
“Você não vai perder seu trabalho para a tecnologia, e sim para uma pessoa
capaz de usar a tecnologia melhor do que você”. Porque a tecnologia já veio, já
chegou e já está aí. O zum-zum-zum em torno dela não é mais do que o pipôco do
foguetão visto à distância: é o barulho de algo que já aconteceu e é fato
consumado, mesmo que muita gente só perceba agora.
Sempre cabe a ressalva de que tecnologias desempregam,
sim, porque geralmente fazem um trabalho de modo mais rápido, mais previsível,
mais econômico. No entanto, os que dominarem a tecnologia têm mais chance de se
manterem à tona.
Quem está fazendo essas traduções são máquinas, e com
isto dizemos: softwares, algoritmos, processos capazes de reconhecer,
interpretar e comparar textos, e estabelecer equivalências entre eles, baseadas
em avaliações estatísticas. Essas “máquinas”, contudo, não entendem as palavras
como nós as entendemos, relacionando-as com as experiências corporais e
sensoriais que temos na assim-chamada “vida real”.
Se eu preciso receber um dinheiro mas por algum motivo meu
nome não pode constar nos documentos, eu chamo um amigo e digo: “Vem cá, quero
que você seja meu laranja”. Noutro contexto, a palavra me evocaria uma fruta
amarelada, acidoce e suculenta; no contexto presente, me evoca um vulto sem
rosto e fora-de-foco, interpondo-se numa transação para facilitá-la.
O software tradutório não precisa evocar essas
referências. Ele apenas constata que geralmente quando a palavra aparece no
feminino corresponde a um tipo de contexto, e quando aparece no masculino
cumpre outras funções. Confirma numericamnte a coerência estatística entre
esses dois usos, anota as exceções para não esquecer, mas atribui um valor
provável ao termo e o oferece ao usuário. Tudo isto em alguns segundos.
Os cientistas, ansiosos para nos tranquilizar, asseguram:
“A Inteligência Artificial é burra, é cega, não tem a menor idéia do que está
fazendo. Apenas foi ensinada a fazer, e faz”.
Dirce Waltrick do Amarante, em sua palestra no congresso
do SINTRA, fez uma boa analogia
com o conto de Philip K. Dick “Autofac” (1955, em Galaxy). Nele, “autofábricas” continuam a produzir e distribuir produtos,
às cegas, para uma humanidade que não necessita mais deles, depois de um
conflito mundial. Quantidades imensas de matéria-prima são desperdiçadas em
produtos inúteis enquanto gêneros de primeira necessidade são escassos. Para
tentar quebrar o círculo vicioso de produção às cegas, os sobreviventes tentam
sabotar as “autofábricas” enviando mensagens de reclamação cheias de palavras
inexistentes, para provocar um “bug”.
("Galaxy", novembro 1955)
O recurso usado pelos personagens de Dick lembra as ações
do detetive Lemmy Caution no filme Alphaville
(1964, Jean-Luc Godard), que ao tentar fugir da cidade dominada por um
onipresente supercomputador começa a recitar poesia, com o intuito de provocar
um curto-circuito lógico na mente antipoética da máquina.
Essa “cegueira” da Inteligência Artificial com que
estamos começando a conviver tem a ver com o seu estágio ainda engatinhante. As
I.A. atuais produzem resultados incomparavelmente superiores ao de máquinas que
vínhamos usando, como Babel Fish, Google Translator e outras. É o instrumento
ideal para o mundo corporativo, para traduzir ofícios, contratos, regulamentos,
estatutos, regimentos internos, relatórios, manuais de instruções.
Serve também para essa prolífica indústria editorial de
aeroporto, em cujas livrarias o que mais se vê são livros tipo Seis Conselhos Para Ser Um Vendedor Campeão,
As Bases do Empreendedorismo, Quem Faz o Sucesso é Você, Nunca Aceite Um Não Como Resposta, Seu Guia Para Técnicas de Vendas, A Administração
Para Todos, Liderando Equipes e Conquistando Resultados, A Arte da Persuasão, Batendo Metas e Expandindo Horizontes, Princípios Organizacionais Para um Novo
Milênio...
Para traduzir textos com essa substância, que não passa
de um purê verbal, a Inteligência Artificial é o melhor instrumento. Porque o
mundo humano-biológico está repleto de instâncias em que pessoas de carne e
osso precisam verbalizar como verbalizam os produtores automáticos de texto. Textos
ansiosamente denotativos, em busca de uma precisão e de uma nitidez que, pelo
seu raciocínio, se alcança usando as palavras mais previsíveis nas construções
verbais mais estatisticamente consagradas.
Tradutores literários (por enquanto) não precisam temer a
concorrência dessas máquinas, porque o purê que uma máquina escreveu em inglês
ou russo outra máquina consegue traduzir em italiano ou português.
E vamos ser realistas, no mundo circulam mais textos
administrativos, jurídicos, informativos, técnicos, burocráticos, etc. do que
textos literários. E, mesmo no interior deste último segmento, a prosa pedestre
é mais numerosa do que a prosa estratosférica. Usam-se mais as fórmulas
consagradas do que as propostas inovadoras. Para cada romancista com voz
própria, existem dez ou vinte sem rosto e sem estilo, meros recicladores do que
já leram.
Surge então uma situação curiosa, e não totalmente confortável.
Quando a Inteligência Artificial erra, é corrigida pelos que a utilizam. Ela
pede desculpas, admite que não compreendeu alguma forma de dizer (por ser excepcional,
inventiva, original, etc.), e transfere essa forma para seu pecúlio de
aprendizado. E com isso torna-se mais flexível, mais perceptiva. Não se torna
mais inteligente. Torna-se apenas um algoritmo que ao invés de lidar com mil variantes
lida com um milhão. Torna-se estatisticamente mais aparelhada para mimetizar a
inteligência humana.
(gráfico
de Sandra Garcia)
Sandra Garcia advertiu, em sua palestra, que as imensas
usinas de dados que alimentam os sistemas de Inteligência Artificial consomem
hoje 14% da energia elétrica produzida, o que é mais do que o consumo total de
muitos países.
Não devemos nos animar pensando que dentro de poucos anos
teremos algoritmos produzindo traduções satisfatórias do Mar Paraguayo de Wilson Bueno, ou do Tarantula de Bob Dylan, ou do Eunoia
de Christian Bok. Não é para isto que tamanha energia está sendo gerada. A
Inteligência Artificial não nos ameaça com péssimas traduções literárias nem
com traduções cada vez melhores.
Esse despautério de energia é para produzir softwares e algoritmos cada vez mais
sofisticados e mais capazes de interagir consigo mesmos e entre si, ou para
calcular estratégias militares, para conceber planejamentos de engenharia e
indústria com melhores relações custo-benefício...
A literatura, para nosso bem e nosso mal, não manda no
mundo. Ela não passa de um molusco agarrado ao casco de um transatlântico e
tentando dar-lhe ordens.