(ilustração: comprimidos)
Tem alguns termos que eu não acho que sejam
necessariamente paraibanos, mas penso neles desse modo porque estão ligados à
minha família, meu tempo de garoto, então pra mim são a cara da “Paraíba réa”.
Têm uma carga afetiva, e acho que isso tem uma certa consequência filológica,
etimológica.
As palavras que têm mais chance de se propagar (e se
metamorfosear) etimologicamente ao longo dos anos são aquelas a que as pessoas
recorrem com mais frequência, por motivos afetivos, inclusive.
Um exemplo: ninguém hoje em dia deve saber o que é
“cachéte”.
(O acento agudo vai aqui para firmar a pronúncia. A gente
deve sempre acentuar palavras pouco conhecidas, e que correm o risco de ser
pronunciadas erroneamente pelos muitos que nunca as viram. Pelo menos nas
primeiras vezes em que as usamos num texto. Danem-se os acordos ortográficos.
Ortografia, inclusive de acentos, também pode, e deve, ser vista pragmaticamente.)
Cachéte significa pílula, comprimido, qualquer
medicamento nesse formato. Meus pais diziam isso o tempo todo. “Tá com dor de
cabeça? Tome esse cachéte.”
Uma vez, quando eu estudava em Belo Horizonte, meu pai
teve que ir de Campina Grande pra Brasília com o reitor da FURNe, resolver
alguma pendenga burocrática, e combinamos que eu ia passar dois dias lá com
ele. Peguei o busão da Cometa e fui conhecer a Novacap. Seu Nilo tinha reuniões
durante o dia, e de noite tomava umas e outras. Um dia amanheceu de ressaca, e
chamou o bellboy do hotel. Ao abrir a porta, perguntou ao rapaz:
– Vocês têm cachéte pra ressaca?
A cara desacorçoada do rapaz está comigo ainda hoje. Ele
disse:
– Ih, senhor... Eu estou por fora de cachéte.
– Cachete, rapaz. Tu sabe o que é. Cachete pra dor de
cabeça.
Ele se apegou a essa frágil tábua de salvação e disse:
– Cachete nós não temos, mas eu posso trazer um
comprimido pro senhor.
Entra aqui uma questão de ordem filológica. Existe uma
diferença (me parece) entre comprimido
e cápsula. Uma cápsula é um cilindro miudinho, oco, de extremidades rombudas,
dentro do qual há um pozinho medicinal. Sua finalidade é ser engolida e
garantir que o pozinho só seja absorvido pelo organismo daí a alguns minutos,
depois que a “cápsula” propriamente dita se dissolva. Por quê, não sei, mas
minha curiosidade científica só vai até aí, daí por diante é fé mesmo.
Já um comprimido
é exatamente isso: um pozinho que foi compactado por alguma pressão enorme até
se transformar num circulozinho espesso, duro. A gente engole inteiro e deixa
desmanchar.
Voltando à raiz linguística, me ocorre imaginar que o
“cachéte” de Seu Nilo vem do francês “cachet” (pronuncia-se “cachê”, como cachê
de músico). A palavra vem do verbo “cacher”, que significa “apertar,
pressionar, comprimir”, e então vualá! – em português torna-se “comprimido”.
Por algum tempo eu pensei que era o contrário. Pensei que
quem deveria com mais justiça se chamar “cachéte” era a “cápsula”. Por que?
Porque “cacher” em francês também significa “esconder, recobrir uma coisa com
outra para que não fique visível”, etc. E na cápsula o pozinho vem exatamente
assim – escondido.
(ilustração: cápsulas)
Vejam o que é o poder etimológico-afetivo de um termo (na
composição do idioma a longuíssimo prazo), porque se Seu Nilo e Dona Cleuza não
falassem o tempo todo em “cachéte” eu não estaria aqui agora, sessenta anos
depois, lembrando desse termo só por tê-lo visto num livro de Raymond Queneau.
Não ficaria cavucando um larusse onlaine em busca desse símbolo froidiano.
Quando eu era pequeno, era chato, luxento, exigente. Me
recusava a tentar engolir um cachete inteiro, alegando que podia me sufocar.
Minha Tia Adiza dava-se então o trabalho de esmagar o cachete com uma colher,
reduzi-lo a pó, misturá-lo com uma pitada de açúcar, e me dar na colher,
acompanhado de um gole dágua.
Essa infância espoilada teve uma consequência
interessante: hoje eu detesto tomar qualquer tipo de remédio, e para mostrar
que não sou mais cheio de fricote, sou capaz de aguentar dor por muito tempo.
Já aos quinze anos eu cheguei a passar semanas inteiras com um dente doendo e
sem dizer a ninguém.
Como é possível? – perguntará a platéia. E eu me lembro
daquela piada sobre os dois hippies. Dois hippies estão, alta madrugada, dando
uma bola no mato, olhando a lua cheia, junto de uma lagoa infestada de
crocodilos. A certa altura da viagem, um deles diz: “Ih, meu irmão... Tou
sentindo uma coisa aqui... Um jacaré tá comendo minha perna.” O outro diz,
calmo; “É mesmo, rapaz? Qual?” E o
primeiro: “Sei lá, véio... jacaré é tudo parecido...”