segunda-feira, 27 de maio de 2024

5066) Cinema ou teatro-filmado? (27.5.2024)



 
“Teatro filmado” é uma crítica que se faz, de vez em quando, a filmes que ficam presos num mesmo lugar, com a câmera paradona, mostrando os diálogos entre um grupo de pessoas. Cinema, por definição, é o contrário disso. O teatro clássico aconselhava unidade de ação, de lugar e de tempo; e quando a câmera cinematográfica se pôs em movimento, quebrou as quatro paredes do teatro e o céu foi o limite. 
 
Alguns filmes que vi há pouco tempo parecem peças teatrais filmadas. Uns por serem mesmo peças, em sua origem, como é o caso de Disque M Para Matar (“Dial M for Murder”, 1954) de Alfred Hitchcock, adaptado por Frederick Knott de sua própria peça. Tudo ocorre numa sala: ali o crime é planejado, depois executado, depois investigado, e ali se dá o desfecho. Poucas cenas deixam esse cenário único, que só tem três saídas: a porta da frente, a porta do quarto, a porta que dá para o jardim. 
 
Isto é curioso porque Hitchcock é conhecido por suas histórias de intensa movimentação física e de perseguições, desde títulos antigos como Os 39 Degraus (1935), The Secret Agent (1936), Young and Innocent (1937), etc, até filmes como Intriga Internacional (1959), O Homem Que Sabia Demais (1956), Os Pássaros (1960) e outros. 
 
Hitchcock se queixa de que muitos diretores, quando vão filmar histórias com origem no palco, atulham o filme com saídas desnecessárias: gente entrando no táxi, se deslocando pela cidade, descendo do táxi, etc., apenas para mudar de ambiente. (François Truffaut comenta que na França se chama a isto “arejar” o filme.) E ele lembra: a vantagem dessas histórias teatrais é justamente a concentração. Concentração de ação, de tensão, de suspense, de significado. 
 
Para explorar mais ao seu modo essa tensão que não relaxa, Hitchcock fez Festim Diabólico (“The Rope”, 1948), que transcorre inteiro dentro de um apartamento, numa festa cheia de gente, com a câmera “costurando” diálogos e ações numa tomada aparentemente única. 




Outro que vi há pouco é uma produção de 2009: Exam (de Stuart Hazeldine). Todo o filme transcorre numa sala, que poderia muito bem ser um palco (e de fato houve depois uma transposição para o teatro, na Índia, em 2011, com o título de Key). 
 
Na sala, oito mesinhas e oito candidatos a uma vaga de emprego numa multinacional. Eles têm 80 minutos para responder um teste que, previsivelmente, é cheio de “pegadinhas”, duplos-sentidos, regras arbitrárias, etc.  
 
Tudo fica por conta dos diálogos, do esforço dos atores, das reviravoltas do enredo. O que há de interessante? É que restrições de orçamento, etc., fazem com que alguns diretores criem filmes que não têm origem no teatro mas adotam, para sua conveniência, as limitações do teatro. Não é uma peça teatral filmada: é um filme teatralizado (com um só espaço, e ação contínua). 




Um terceiro filme foi uma produção recente: O Alfaiate (“The Outfit”, 2022) de Graham Moore, com Mark Rylance (o bilionário de Não Olhe Para Cima), Johnny Flynn (o playboy-vítima da série Ripley) e outros. É outro caso de filme cuja origem não é teatral: foi escrito diretamente para a tela pelo diretor e Johnathan McClain. 
 
The Outfit é a história de Leonard Burling, um alfaiate inglês na Chicago de 1956. Compromissos de amizade e de clientela o aproximam de uma quadrilha de mafiosos que começa a usar sua alfaiataria como ponto de encontros, recados, pagamentos, etc. Os primeiros minutos do filme mostram Burling (Mark Rylance) e o difícil jogo de equilíbrio que ele mantém junto aos gangsters. A partir de um terço do filme, a ação se acelera, e o que vemos daí em diante é uma daquelas noites intermináveis de violência, ameaça, entradas e saídas de pessoas, e a cada instante uma reviravolta na trama. 
 
A alfaiataria tem a “porta da rua” (esse acessório tão indispensável às narrativas do teatro), uma pequena sala de espera, e dois aposentos espaçosos, isolados por portas por onde os atores evoluem, acompanhados pela câmera. 



(The Outfit: Zoey Deutch, Mark Rylance e Johnny Flynn)


Quando se tem um cenário único (no teatro ou no cinema), o principal requisito é que ele possa ser subdividido para efeitos dramáticos – enquanto no aposento A acontece algo, no aposento B acontece uma ação diferente. Graham Moore explora bem essas idas e vindas, a tal ponto que não temos nenhuma sensação de claustrofobia, e na verdade só me vinha à mente o lado teatral daquilo quando a porta da frente se abria para dar entrada ou saída a alguém, e eu lembrava que praticamente não se tinha visto a rua até então.  
 
O roteiro é muito bom (quem quiser confira o filme, no Amazon Prime), mas acaba se contaminando de algumas pequenas irrealidades que aceitamos com mais facilidade no teatro do que no cinema. Um homem ferido a bala e costurado “no cru”, uma hora atrás, está de repente andando e conversando como se nada tivesse acontecido; um cadáver e uma poça de sangue são “desaparecidos” em questão de minutos quando chega um visitante.  
 
No teatro, temos uma certa generosidade em aceitar detalhes assim, pouco plausíveis, porque sabemos que existe um limite físico, presencial, para o que pode ser feito no palco. No cinema, somos mais exigentes. Ora, não têm truques? Não podem interromper a filmagem, e filmar outra coisa? Então, que sejam escrupulosamente realistas! 
 
Mas o interesse das histórias teatrais de crime não se volta para esse verniz realista, e sim para o jogo verbal entre os personagens, o que dizem, o que escondem, o que revelam, as mentiras que contam (ainda melhores quando a platéia sabe que é mentira)... E no jogo de gato-e-rato que os espertos-armados e os espertos-desarmados travam entre si. 



 
Nisto o filme é bom, e lembra certas “peças de crime” filmadas, como Jogo Mortal (“Sleuth”, 1972, J. L. Manckiewicz) ou Armadilha Mortal (“Deathtrap”, 1982, Sidney Lumet). Uma trama intrincada em que nunca se sabe ao certo quem está traindo quem, quem está contando a verdade, e com que intenção certas ações estão sendo executadas. 
 
Todos estes filmes, e muitos outros, dependem basicamente das armas do teatro (ator, diálogo, enredo) com produção de cinema em volta. O desafio para o diretor de cinema é criar em torno dessa limitação, que é quase asfixiante, um senso de tempo e de espaço capaz de nos fazer esquecer o confinamento. 




É o que faz Lars von Trier em Dogville (2003), abstraindo o cenário físico e apenas demarcando o espaço onde os atores fingem estar encerrados entre paredes de verdade. É o que fazem Rainer Werner Fassbinder em Querelle (1982) e Paul Schrader em Mishima (1985), com a criação de cenários explicitamente artificiais, irrealistas, tanto quanto os de certos filmes do Expressionismo Alemão.  
 
O teste, a meu ver, é sempre este: Esse filme poderia ser transposto para o palco teatral sem grande perda, e até com alguns ganhos? Porque os exemplos acima (com exceção do filme de Hitchcock), não vieram do teatro para o cinema. Foram criados para o cinema, e vão na direção do teatro.