1) Qual o
dicionário a gente deve usar?
BT – Uma resposta teoricamente correta seria “um dicionário
para cada assunto possível e imaginável”, mas como em cada assunto há opiniões
divergentes, formações distintas, backgrounds com maior ou menor
confiabilidade, seria melhor dizer “uma boa quantidade de dicionários
diferentes sobre qualquer assunto possível e imaginável”. Ou seja: se conforme,
compre os que seu bolso alcançar, não despreze a Web, tenha um rodízio de
colegas pra encher o saco alternadamente, e boa viagem. Meu dicionário
preferido é o Inglês-Português de
Antonio Houaiss (Ed. Record).
2) É verdade que
existem palavras em outras línguas que não existem em português?
BT – Sim, e o vice-versa também é verdade (embora isto
não nos traga nenhuma compensação, quando estamos traduzindo). Mas uma verdade
essencial da tradução é: A gente não traduz palavras, traduz frases. Traduz
aqueles trechos entre um ponto e outro. O importante é que a frase em português
esteja próxima da frase original, mesmo que para isto seja necessário às vezes
substituir uma palavra difícil do original por uma idéia aproximada, um
circunlóquio, uma pequena descrição, uma nota de pé de página... Deve-se lutar
por uma palavra até o fim, mas sabendo que há casos onde vai ser preciso
deixá-la na beira da estrada e seguir em frente.
3) Você aprendeu
inglês com que idade?
BT – Aprender uma língua não é um acontecimento que pode
ser datado, é um processo, que na verdade não acaba nunca. Para reduzir ao
absurdo: aprender uma língua seria saber o significado de todas as palavras
dessa língua, mas isso nem os nativos do outro país sabem. Nós mesmos não
“sabemos português”, se a definição for essa, porque há milhares de termos cujo
significado a gente não conhece. Aprender línguas é um processo constante de
expansão. Qual o momento em que a gente sabe o suficiente para traduzir? Não há
esse momento. O único critério é o da prática: quando a gente se apresenta numa
editora querendo traduzir profissionalmente, eles nos dão um texto para
traduzir (geralmente m capítulo de um livro), e um prazo. Dependendo do
resultado, eles nos aceitam, ou então nos dizem para estudar mais. Isso varia
de editora para edtora.
4) É preciso ter
morado no outro país para ser tradutor naquela língua?
BT – Não. Morar na França ajuda muitíssimo a entender e
falar o francês, morar na Itália ajuda com o italiano, e assim por diante. Mas
isso não transforma ninguém em tradutor. Um tradutor é, por ordem de
importância: 1) uma pessoa que escreve muito bem em sua língua natal, sendo capaz
de manejar diferentes estilos e diferentes técnicas de escrita; e 2) uma pessoa
que conhece bastante bem uma língua estrangeira. Não é porque um indivíduo
morou 10 anos nos Estados Unidos que automaticamente se transforma num tradutor
só porque “sabe bem o inglês”. Um tradutor é necessariamente, por definição, um
escritor. Cabe a ele reescrever, no
mesmo nível de qualidade, um livro escrito em outra língua por outra pessoa. Se
não for um escritor, não será um tradutor.
5) Não é
anti-ético consultar outras traduções do mesmo livro, feitas por outras
pessoas?
BT – A gente consulta outras traduções como consulta um
dicionário: para esclarecer dúvidas e para ter a segurança de que não está
“comendo mosca”, deixando escapar algo por mera desinformação. Por outro lado,
traduzir é interpretar, e cada tradutor interpreta a mesma frase de um modo
diferente. Nem sempre isso tem a ver com o significado léxico das palavras, mas
com o modo de interpretar o que foi dito. Houve ênfase? Houve ambiguidade?
Houve ironia? Houve um tom tranquilo de afirmação de algo, ou houve um tom de
arrogância, tipo “estamos conversados”? Toda frase (principalmente quando
falamos de literatura, prosa de ficção) pode ser lida de diferentes maneiras, e
às vezes a interpretação anterior de um colega nos ajuda a encontrar o “tom”
exato da nossa frase, que vai ser diferente da frase dele.
É bom lembrar também que nem todolivro é bem escrito, nem
todo escritor diz as coisas com clareza. Às vezes a cena é confusa, tem muita
ação, muitos personagens ao mesmo tempo, e isso pode induzir o leitor (e o
tradutor) a erros. Uma cena com muitas pessoas envolvidas recorre a “ele” ou
“ela” e às vezes não é muito claro a quem o autor se refere. O tradutor precisa
ir com cuidado. Às vezes o sujeito de uma ação não é muito óbvio, é preciso
deduzir. Às vezes a descrição de um ambiente não foi muito clara, pensamos que
a sala era maior (ou menor) do que é de fato, e isso influi na maneira como
vamos descrever a ação.
Sem falar que os outros tradutores também cometem erros. Quem
copia sem entender o que está copiando geralmente dá com os burros nágua.
Quando estou traduzindo um clássico (como H. G. Wells, Raymond Chandler, etc.)
geralmente compro uma tradução brasileira, uma portuguesa, uma em espanhol e
uma em francês. E às vezes uma frase tem 4 interpretações diferentes.
6) Você escreve em
inglês com a mesma facilidade com que traduz?
BT – Não. São duas coisas diferentes. Meu vocabulário em
português é incalculavelmente mais amplo do que meu vocabulário em inglês.
Quando vejo uma frase em inglês, consigo formar várias versões possíveis para
ela, em português: trocando sinônimos, mudando a ordem das palavras, procurando
um ritmo parecido com o do original, evitando cacófatos ou rimas
involuntárias... A amplitude de escolha é muito maior. Quando vou dizer algo em
inglês, conheço poucas palavras. É como se estivesse com as mãos e os pés
atados, e avançasse dando pulinhos. Tenho menos vocabulário e menos
formas-de-frase para me exprimir.
7) O livro mais
difícil de traduzir é o Finnegans Wake
de James Joyce?
BT – Não necessariamente. Os livros de Joyce são difíceis
porque reúnem vários elementos que, isoladamente, já criam problemas para um
tradutor: a) trocadilhos; b) palavras inventadas; c) referências culturais
obscuras; d) gírias específicas locais; f) uso sistemático da paródia de
jargões ou de estilos de escrita. Por outro lado, são livros bastante
coloquiais, com um espírito lúdico muito grande e uma certa indisciplina, o que
de certo modo autoriza o tradutor a arregaçar as mangas e ser criativo também,
sem precisar ter remorsos. Eu diria que na área da literatura (deixando de lado
as traduções técnicas, filosóficas, científicas, que são outro problema) um
livro é difícil na medida em que depende de maneira crucial de certos efeitos
verbais só possíveis de obter na língua em que o livro foi escrito. Por isso a
poesia em geral é mais difícil do que a prosa, quando apresenta exigências de
métrica, rima, cadência, acentuação obrigatória de sílabas, rigidez no formato
da estrofe e assim por diante. Tudo isso é difícil de transpor para outro
idioma, mesmo quando o vocabulário é simples.