Toda vez que eu digo uma palavra inventada, as pessoas
estranham. Falo, por exemplo: “Que comida feia a desse prato, eu é que não vou
comer essas grangranhas.” E alguém
pergunta: “Mas, essa palavra existe?”
Claro que ela sabe que existe, pois acabou de ouvi-la. O
que a pessoa pergunta, na verdade, é se a palavra é oficialmente reconhecida.
Se está nos dicionários, por exemplo. E, principalmente, a pessoa pergunta (bem
baixinho): “Se eu disser essa palava, alguém pode dizer que eu estou falando
errado? Que eu não me alfabetizei? Que eu sou pobre?...”
É essa a preocupação.
Somos um país cartorial, como dizem alguns analistas e historiadores.
Um país burocratizado, onde o Poder se exerce através de documentos: escrituras
de terra, testamentos, acordos políticos, ordens de prisão, contratos
financeiros... O documento é a instância mais importante da existência, e o que
não pode ser confirmado por um documento não existe.
Vai daí que uma palavra não-dicionarizada é como uma
pessoa que nunca tirou certidão de nascimento ou carteira de identidade, e
oficialmente não existe. De nada adianta provar que é de carne e osso. Existe um
Brasil mais elevado, que depende do país de carne e osso, mas que o transcende:
um Brasil feito de papel e tinta. Ou, mais modernamente, de silício e pixels
eletrônicos.
“Grangranha”, por exemplo, era uma coisa que meu pai
dizia nesse contexto acima. Uma comida pouco apetitosa, geralmente de má
aparência. Tem no dicionário? Não sei, e não ligo. Só ouvi essa palavra lá em
casa. Não posso dizer que é uma expressão paraibana: talvez nem os nossos
vizinhos na rua do Alto Branco a conhecessem. Mas para nós, existia, sim.
As palavras brotam desse jeito, inventadamente,
improvisadamente, brincalhonamente, impacientemente. A pessoa quer exprimir uma
idéia, mas as palavras oficiais não lhe servem nessa hora, porque são muito
domesticadas, ou muito sofisticadas... Ele precisa de uma coisa mais forte, que
exprima de maneira mais direta o que quer dizer, e que além disso dê um pequeno
susto no ouvinte.
Darcy Ribeiro usava muito a palavra fazimento: o ato, o processo de fazer alguma coisa. Em inglês se
diz “the making”. Ele fala do fazimento das leis, o fazimento do povo
brasileiro... Muita gente acha que a palavra é canhestra, desajeitada. Não
importa. Em seu lugar teríamos o quê? “Confecção”, “feitura”, “criação”,
“produção”... Palavras sem muita força e pouco claras, porque têm conexões fortes
com outros contextos e outros significados. Darcy se impacientava, e tascava fazimento.
É a palavra ideal para exprimir essa idéia? Talvez não,
mas é uma palavra que existe. Ninguém
é obrigado a usar. Ninguém é proibido de usar.
O lado burlesco da política recente trouxe duas
contribuições interessantes: “motociata” e “lanchaciata”. Esta última parece o
nome de uma grangranha feita na Itália, mas corresponde a uma passeata de
lanchas (e a outra a uma passeata de motos).
Isso mostra como o processo de invenção de palavras é
insubordinado, desregrado, não dá ouvidos à gramática nem à etimologia (nem ao
bom gosto), cria-se por mera associação ou derivação. “Passeata” vem de passos,
os passos que damos com as pernas quando passeamos. Depois dele veio
“carreata”, que mantém uma certa simetria e não precisa de muitas explicações.
Quando surgiu “motociata” o problema ficou maior, até porque deveria se
escrever talvez “motosseata”, para indicar de onde vinha, mas esses dois “SS”,
que vêm de “passo”, já não tinham razão de ser; e “lanchaciata” já soa como
galhofa. O problema é se inventarem um desfile coletivo de homens de negócios,
porque nesse caso a imprensa vai ter que chamar de “negociata”.
E repito: são as palavras ideais para exprimir essas
idéias? Talvez não, mas são palavras que existem.
Ninguém é obrigado a usar. Ninguém é proibido de usar.
Expressões recentes como “mandar um zap” e “maratonar”
não precisam de muita explicação, a não ser para aqueles que não costumam usar
o WhatsApp e não costumam ver vários episódios seguidos de uma série. As
palavras novas são inventadas em contextos onde rapidamente são compreendidas –
é o mesmo processo da formação das gírias. Com o uso constante, acabam
escapando para o mundo de fora, o nosso, que ouvimos aquilo pela primeira vez
quando em alguns grupos já é coisa velha.
Uma vez eu estava trabalhando numa pesquisa e uma moça
numa fábrica se referiu a alguma coisa relativa ao “instrutor” dela, que ajudou
a prepará-la quando ela assumiu a função. E explicou: “Sabe o que é instrutor,
né? É a pessoa que explica pra gente a instrutura do serviço.”
A linguagem não sofre erosão, com essas interferências. Sofre
mutação genética. Não diminui: cresce. Não é um edifício, é um organismo.
Podemos inventar um milhão de palavras por dia, e 99% delas sumirão na poeira
sem ter merecido uma repetição sequer. Só fica o que “pega”. Só pega o que tem
o mesmo DNA, o que não é rejeitado.
E outra – a língua brasileira não é a mesma em todo
canto. Uma palavra nova pode ser facilmente aceita no Nordeste e parecer sempre
estranha a ouvidos sulistas. Numa cidade como São Paulo, deve haver todo um
glossário de jovens da Freguesia do Ó que jovens de Pinheiros não terão
interesse em assimilar, e vice-versa.
O melhor de inventar palavras é quando ela surge como um
improviso no meio de uma fala, como a do paciente de manicômio capaz de
confessar ao jovem médico Guimarães Rosa que estava enxergando “umas
pirilâmpsias”. Poesia pura.